O sobrenatural sempre contracenou com o homem desde tempos imemoriais. Deuses, monstros, demônios e seres fantásticos vez ou outra rompem o fino véu que nos separa das dimensões onde vivem, mundos paralelos, entrelaçados ao nosso mundo e se apresentam das mais variadas formas alterando nosso cotidiano. Ou ainda pessoas ou grupos de pessoas, através de seus rituais os acessam e entram em contato com seres aparentemente mortos e esquecidos. A chave desses rituais é obter a freqüência vibratória da dimensão onde reinam esses seres e então entrar em comunhão com eles. Essa freqüência é conseguida através de mantras, invocações, objetos, odores, sons e outros mecanismos que alteram a percepção, permitindo outros estágios de consciência. Algumas vezes nem isso é preciso, sendo a própria pessoa a porta para mundos inimagináveis.
N
Elizabeth despertou com o sol morno incidindo sobre o seu rosto. Remexeu-se na cama e puxando o lençol para junto do rosto tentando buscar a penumbra, mas Cereja despertou-a com amplas lambidas no seu rosto e rolando sobre a cama. Cereja é um cãozinho vira-latas que a garota encontrou abandonado na rua, sobre uma caixa de papelão e uma pequena vasilha de água. O cãozinho logo se adaptou a nova vida, agora bem mais tranqüila, tratado como um rei.
Levantou-se como se carregasse o mundo sobre seus ombros. Enfim era sábado e poderia ter um tempo mais livre, apesar dos trabalhos que deveria fazer a pedido de sua exigente professora de Língua Portuguesa e Literatura. Irritou-se somente em lembrar disso, afinal não teria o direito de descansar pelo menos no final de semana? Cruz e Souza parecia ter se apossado de sua mente e seus poemas bailavam alheios à vida cotidiana, absorvendo a atenção e energia que pudesse ser dispendida.
“Infinitos espíritos dispersos,
Inefáveis, edênicos, aéreos,
Fecundai o Mistério destes versos
Com a chama ideal de todos os mistérios.”1
Inefáveis, edênicos, aéreos,
Fecundai o Mistério destes versos
Com a chama ideal de todos os mistérios.”1
Ligou para Clara, no sentido, de ficarem livres daquele fardo logo pela manhã. Fariam o trabalho, encadernariam e o entregariam na segunda-feira, terceira aula, sem qualquer atraso, para não desafiarem a inflexível e ditadora docente. O bom da internet é agilizar essas consultas e o famoso copiar e colar são meios rápidos e, quase sempre seguros, para um trabalho volumoso, que enchesse os olhos de Dona Jubilosa. Esse era realmente o nome daquele ser mefistofélico. Afinal, pairavam dúvidas se ela realmente lia os trabalhos que pedia. Importante era ter muitas páginas.
Para dar cabo disso, pegou sua pesada mochila e foi até a casa de Clara. Saiu rápido com sua bicicleta, acenando aos vizinhos com popularidade. Sempre fora muito espontânea, comunicativa, daquelas pessoas que faz muitos amigos onde quer que esteja. Clara era sua melhor amiga, confidente. Era uma menina mais tímida, quieta, de pouca conversa, excetuando quando estava com Elizabeth, e então eram capazes de falarem o dia todo e os assuntos não se esgotariam. Clara tinha uma paixão secreta por um colega de classe, João, bastante cobiçado pelas garotas e para o qual acreditava não ter nenhuma chance. Essa paixão algumas vezes consumia Clara e era motivo de muitas lágrimas, em especial quando o via com alguém. E esse sábado a fria sofrer muito.
Após terminarem o trabalho sobre Cruz e Souza foram até uma sorveteria, alegres e descontraídas, aliviadas daquele peso.
“Carnes, virgens e tépidas do Oriente
do Sonho e das Estrelas fabulosas,
carnes acerbas e maravilhosas,
tentadoras do sol intensamente...”2
do Sonho e das Estrelas fabulosas,
carnes acerbas e maravilhosas,
tentadoras do sol intensamente...”2
Mal chegaram ao lugar e avistaram João e Carina saboreando um Sunday, o que fez Clara estacar. Um nó na garganta quase a asfixiou ao mesmo tempo em que um ódio mortal imantou cada célula de seu corpo. Voltou-se num ímpeto correndo para a praça logo em frente e sentando-se aos prantos segurando a cabeça entre as mãos.
Elizabeth segurou-lhe nas mãos, aconselhando-a esquecê-lo ou lutar por ele de uma vez por todas, pois aquela situação apenas a fazia sofrer.
- O que é do homem o bicho não come !, proclamou Elizabeth sem saber o que dizer diante da prostração da amiga, - Se vocês tiverem que ficar juntos, ficarão...
Clara olhou-a como se não compreendesse. Levantou-se e agachou-se rabiscando a terra. Um círculo e outros sinais.
- Queria que ela morresse !, exclamou como que possuída, eriçando os pelos do braço de Elizabeth e subindo um frio pela espinha.
Mal acabou de pronunciar a frase e ouviu-se uma brecada, pessoas gritando, gente se amontoando próximos à sorveteria. Carina havia sido atropelada, apresentava várias escoriações e precisava ser levada ao hospital. João estava desesperado. As amigas se aproximaram, dizendo a ele que ficaria tudo bem.
Naquela noite Clara teve sonhos estranhos. Alguém se aproximava e perguntava se ela realmente queria o João. Com medo, ela fugia, mas era sempre perseguida ou de parava-se com uma sombra que lhe repetia a pergunta. Despertou gritando “eu quero !”. Ligou para Elizabeth que também não havia dormido bem. Acordando várias vezes durante a noite e pensando insistentemente na amiga.
Elizabeth havia chegado da igreja, todos os domingos compareciam a missa, apesar de tentar desligar-se. Os pais, contudo, não permitiam qualquer outra reposta que não fosse “vamos”.
Clara revelou que estava vendo vultos, mas a amiga não prosseguiu com o assunto apenas dizendo que na hora do acidente ela havia ficado muito estranha. Foram ao cinema.
Curiosamente João passou a perceber Clara. Aproximou-se, passou a conversar mais com ela, decidiram fazer o próximo trabalho juntos, agora seria de História. Assim os três reuniram-se na casa de Elizabeth.
“Astartéia, Astar, Astarte ou Tanit foi cultuada em Tiro, Sídon e Elath, importantes portos mediterrâneos. O rei Salomão introduziu o culto da deusa em Jerusalém, de onde foi banido mais tarde por Josias. Astartéia/Astarot é a Rainha do Céu, em louvor de quem os cananeus queimavam incenso. Astartéia era cultuada com esse nome no Egito, em Ugarit e entre os hititas.”3
O trabalho versava sobre deuses antigos e Clara escolheu falar sobre Astartéia, a deusa fenícia do amor. Entusiasmou-se ao descobrir que se tratava de uma divindade bíblica herdada dos sumérios e acádios, bastante popular. Diziam que os prostitutos sagrados queimavam caroços de azeitona para ela. Era a grande deusa mãe, cultuada desde o Neolítico, representando a vegetação e a fecundidade.
Propositadamente, Elizabeth serviu-lhes umas azeitonas e suco de uva para saborearem enquanto realizavam a pesquisa. Logo depois sugeriu queimarem os caroços para a deusa, invocando-a e pedindo a proteção dela para o amor. Acharam a idéia muito louca e Clara logo assumiu ser a sacerdotisa. Entre baforadas de fumaça e libações de suco de uva, Clara concluiu “Astarte, Aquela Que Brilha, envolva-nos com seu Poder”. Por efeito da magia ou a sedução do momento, João beijou Clara, para surpresa das amigas.
Nos dias seguintes, Clara e João passaram a ficar juntos. Ele parecia magnetizado, um verdadeiro grude, não deixando a menina solitária um só minuto. Elizabeth brincava dizendo o quanto o ritual havia dado certo, provavelmente quando Clara feriu o dedo em uma lasca de madeira da mesa e deixara pingar uma gotas de sangue, sem planejar, no copo de João. De uma forma ou de outra, Elizabeth ficara impressionada com Astartéia. Recortou uma figura e colou em seu caderno, na expectativa de que ela também trouxesse um namorado, se fosse Leo, melhor ainda.
Aproximou-se dele, corria um boato que ele não gostava de meninas, mas resolveu descobrir isso por si mesma.
A mãe de Clara, bastante liberal a autorizou montar um altar para a deusa, contendo flores, frutas e ramos de trigo, vinho e onde a menina acendia suas velas e fazia suas orações. A casa parecia ter sido abençoada com a prosperidade, tudo dava certo. A mãe que era cabeleireira tinha cada vez mais clientes e que pagavam bem. Clara e João estavam apaixonados. Um verdadeiro conto de fadas.
Elizabeth não teria o mesmo espaço.
Depois de despedir-se de João, Clara foi deitar-se e os sonhos vieram. Novamente perseguida pela sombra que lhe indagava “quer que eu uma Elizabeth e Leonardo?”. Fugas, receios, dúvidas...via a amiga perdida pelas sombras, como num pântano gritando pelo Leo, estava desfigurada. Acordou e foi para a escola. Narrou o sonho e pediu que fosse até sua casa, no altar, e fizesse ela mesma o pedido para a deusa.
A lua estava bela, brilhando como uma moeda de prata fincada no céu. Elizabeth levou velas verdes, acendeu uma diante do quadro onde figurava a deusa, as ofertas. Ajoelhou-se contrita, pensando nos carinhos que seriam trocados entre os dois. Porém, flashs de um acidente a perturbava, impedindo concentrar-se. Insistiu, pedindo em voz alta que ela fosse unida a Leo.
Passaram-se dias.
Na missa o padre abriu o sermão dizendo “porquanto deixaram o Senhor, e serviram a Baal e a Astarote”4, fazendo a garota enrijecer-se no banco de madeira. De alguma forma, ele parecia saber o que estava acontecendo. Pensou em contar para seus pais, em confessar-se, em ajoelhar-se ali pedindo perdão, mas retornou ao lar com a alma perturbada.
No dia seguinte não viu Leo na sala de aula. Logo veio a trágica notícia. Fizera uma rápida viagem com o pai no dia anterior e um acidente ceifara a vida de ambos. Um ar pesado desceu sobre a sala. Todos choravam, inclusive a durona Dona Jubilosa. Contudo, mais desesperado parecia Gabriel. Ficava nítido que haviam sido mais que amigos. Elizabeth culpou-se imediatamente. Clara aconchegou-a ao peito, temendo ainda mais a deusa.
Temerosa, pensou em desfazer o altar, mas não sabia como proceder. Como que sentindo a rejeição a deusa pareceu romper o laço que unia Clara e João. A menina ao sair da escola rumo a sua casa, viu João abraçado a outra garota recostado a um muro de uma residência. Aproximou-se destemida dando-lhe violento tapa no rosto.
Chegou em casa irada e possessa. Dirigiu-se ao altar, mas no lugar de desfazê-lo agradeceu a deusa por ter mostrado quem ele era e que ele recebesse o que devia por tê-la traído.
Aos poucos o rapaz envolveu-se com as drogas, alterando seu comportamento, baixando seu rendimento escolar e tornando sua vida instável e infeliz. Era comum ele no portão de Clara pedindo que voltassem. Mas a resposta era não. Clara estava namorando Alex e estavam felizes.
Elizabeth afastou-se de Clara, procurando freqüentar mais a igreja na ânsia de proteger-se. O final do ano se aproximava, em breve iria cursar a faculdade em outra cidade, faria novos amigos.
- Você não precisa seguir a deusa para sermos amigas, Beth !, disse Clara buscando reaproximar-se.
- É melhor assim, sinto-me culpada, atormentada...às vezes penso em morrer...por favor, me compreenda...esclareceu, segurando o choro.
Clara sorriu acenando a cabeça negativamente, como se não a entendesse. Virou as costas e foi embora, apenas retornando para visitar a amiga no leito do hospital. Um acidente havia feito com que perdesse os movimentos. Não morrera, mas quase. A recuperação seria lenta e difícil. Ao lado dela estava Gabriel, de quem se aproximara para compartilhar a dor da perda de Leo.
Clara começaria seu almejado curso de Psicologia, talvez através dele pudesse entender mais as pessoas e ela própria, entender as relações entre as pessoas e os deuses.
1- Antífona – Cruz e Souza
2- Dilacerações – Cruz e Souza
4- Juízes 2:13
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