Após dois dias de ônibus, compartilhando a má acomodação com mais quarenta pessoas, além de crianças chorando, outros roncando e o mau cheiro de tantos outros, acreditei que não chegaria jamais ao meu destino. Praticamente atravessei o país. No entanto era o esforço para o primeiro emprego. Recém saído da faculdade, ainda cheirando a forno, vi o anúncio no mural próximo à Secretaria. Nada motivador para meus colegas. Acreditei que não teria concorrentes. Quem iria se aventurar a sair do conforto de seu lar, sua caminha fofa e cheirosa e buscar um emprego em sei lá onde, no meio do mato, com pessoas sem credenciais e disposto a riscos dos mais variados ? Falavam em mortes, assassinatos em série naquela região. Entendi, contudo, que seria uma experiência e tanto, colocaria a prova o que havia estudado durante anos a fio na faculdade.
Não sei se poderia chamar aquilo de cidadezinha, era muito pequena para esse título, na rodoviária pessoas mau encaradas, nem um sorriso, nem uma delicadeza. Em segundos duvidei de minha escolha. Seria realmente uma grande experiência. Seria eu e mais eu e mais ninguém. Teria que me virar. Na lanchonete onde os salgadinhos pareciam comemorar as bodas, uma mulher de sotaque arrastado, de testa cerrada e olhar firme me atendeu e ouviu-me atentamente, expus a ela que estava ali para trabalhar na Albinta & Anataze, empresa que estava realizando pesquisas e a lavra de minerais nobres próximo ao Rio Alepeleko. Ela me olhou , longamente, com seu olhar desconfiado como se medisse as palavras ou procurasse ler em mim algo mais do que havia dito. Por fim, após minutos de espera, ela disse que deveria seguir a estrada que surgia ao final daquela rua, deveria seguir até uma grande seringueira, e aí veria uma estradinha à direita, então chegaria à mineradora.
Em minha inocência e contando com minha jovialidade segui em frente conforme orientado pela senhora. Andei horas e a noite havia chegado quando a luz do luar indicou-me a velha e majestosa seringueira. Deveria ser muito velha, envolta em muitas raízes que despencavam ao seu redor. Estava exausto. Resolvi me abrigar aos pés dela. Ali estaria seguro e protegido.
Despertei sentindo focinhadas e rosnados. Eram três cães aparentemente nada amigáveis. Encolhi-me junto ao tronco, ainda tonto e adormecido. O comando de um homem determinando que Noé, Eva e Adamastor – os nomes dos cães – se afastassem preveniu que me mordessem. Levantei-me cambaleante protegendo os olhos do sol já alto e causticante. Ele advertiu-me sobre a imprudência, disse haver muitas cobras por ali e foi sorte acordar inteiro. Apresentou-se como Orivaldo, mas preferia que o chamassem de Valdo. Estava trabalhando na mina e o responsável pediu que ele fosse até a cidade buscar o geólogo que já tardava em chegar. Achou-me magro e franzino demais e profetizou que eu não aguentaria uma semana lá. Fui na garupa de seu cavalo. Uma bela caminhada. Os cães seguiram como guardiães.
Fui recebido por Chico Paineira, responsável por tudo ali. Olhou-me incrédulo, como se analisasse cada músculo e cada osso; achei que fosse pedir para eu me despir, mas resumiu sua avaliação entre dentes com a frase “vamos ver o que vai dar” e mostrou-me o alojamento que eu ficaria. Segui o caminho que me separava de minha nova casa ouvindo os gritos “não dá pra parar não”, “precisa mais”, “não quero moleza aqui” enquanto olhava para homens rudes, marcados pelo sol e trabalhos pesados.
Abri a porta curioso para conhecer o interior do alojamento. Na verdade um retângulo onde mal cabia um beliche, um pequeno guarda roupas, uma mesinha com um pote de barro com água e duas canecas, dois pratos e dois garfos. Joguei minha mochila sobre o beliche, sem perceber que havia mais alguém no quarto, sentado ao lado do guarda-roupas. Dei um salto, ouvindo assustado quando ele perguntou se havia feito boa viagem. Era um negro alto, forte, como um sudanês. Apertou-me a mão, olhando-me profundamente nos olhos. Disse que era bem vindo. Fiquei, pela primeira vez desde que chegara, feliz com a receptividade. Saí às pressas ouvindo Chico Paineira berrar meu nome. Deveríamos começar o trabalho imediatamente, segundo ele as coisas estavam muito atrasadas e não havia tempo para descanso.
O laboratório era muito bom, diferenciando-se da simplicidade e modéstia dos quartos. Segundo Chico Paineira o meu quarto era o melhor. Pensei no quarto daqueles homens que o dia todo e algumas vezes parte da noite carregavam pedras e terra sem parar.
À noite Valdo me chamou para o jantar. Na verdade uma enorme panela erguida sobre uma fogueira de onde se extraía um arroz misturado com feijão e pedaços de carne seca. Alguns tinham potes de farinha que misturavam a esse alimento. Nos primeiros dias esforcei-me para comer um pouco, uma semana depois já disputava um bocado a mais com os colegas.
Valdo era um excelente contador de estórias e logo depois de todos se fartarem, os reunia ao redor da fogueira para falar sobre almas penadas que rondavam aquele lugar. Dizia que ali era uma aldeia indígena e que o pai de Chico Paineira com seus homens haviam exterminado a todos. Mas o pajé havia amaldiçoado aquelas terras e desde então muitos homens passaram a morrer nas minas pela malária, por afogamento no rio ou simplesmente desaparecendo levados pelos espíritos dos índios. Todos ouviam atentamente, alguns ficavam apavorados e outros, mostrando que eram machos, desafiavam os poderes sobrenaturais gritando na mata que viessem buscá-los.
No alojamento meu companheiro de quarto estava deitado sem camisa, com os braços servindo de travesseiro, cruzados atrás da nuca. Falei a ele das estórias de Valdo, do medo de alguns e daqueles que queriam se mostrar. Ele apenas riu, enigmático, caindo em seu costumeiro silêncio. Adormeci igualmente, pois deveria despertar com as galinhas na manhã seguinte, como se dizia.
Naquela manhã duas mortes estavam registradas. O solo havia desmoronado abrindo uma cratera no chão que tragara Damião, forte e valente, enquanto arrastava um saco de pedras. O outro, Elesbão, escorregara no limo liso e fora levado pelas caudalosas águas do rio. Valdo acalmou-me dizendo que isso acontecia diariamente e que bastaria chamar mais dois, pois muita gente queria trabalhar. Imaginei que se fosse eu, apenas contratariam outro geólogo.
Para minha sorte meu trabalho começou a ser respeitado por Chico Paineira, identificando jazidas e orientando os demais trabalhadores. Uma conquista difícil que se iniciou com o desprezo e desconfiança geral, várias vezes falando e não sendo ouvido, alertando e sendo zombado. Esse respeito produzia uma certa proteção e cuidados de todos.
O local era muito perigoso. Por duas vezes somente não caí no rio por ser puxado pelos braços fortes de Dinka, meu companheiro de quarto. Outra vez ele também advertiu-me de uma explosão na mina, causada por uma dinamite ali colocada para matar Chico Paineira. Até achei que ele estava na mina com essa finalidade. Por outro lado, parecia ser meu anjo da guarda alertando-me, socorrendo e curando. Surgia do nada e eu sabia que ele estaria ali. Acabei ficando confortado, sentindo-me seguro ao lado dele.
Mas eu sempre aguardava as noites em que Valdo estava disposto a contar suas estórias. Inspirado pela lua cheia ele contou que naquelas minas há muitos e muitos anos, o pai de Chico Paineira havia comprado um escravo. O maldito escravo era um terrível feiticeiro e aos poucos o velho se dobrava para ele, estava encantado pelo negro. Todo de branco o escravo subia no alto da montanha para admirar a lua cheia e fazer suas magias. Quando satisfeito a mina prosperava, quando irritado ou desafiado as pessoas morriam. A malária, certa vez matou mais de cem homens e quase dizimou a mina. Havia sido uma praga dele. Exausto das manipulações do escravo, o velho Paineira colocou veneno na água e o trancou no quarto, fechando por fora sem que percebesse. A madrugada ia alta e ouviam-se as palavras mágicas sendo entoadas pelo sudanês. Muitos caíram mortos na mesma hora.
- Ele morreu agonizante em seu quarto, mocinho !, disse Valdo apontando para mim, com ar de ameaça e deboche ao mesmo tempo.
Minhas pernas tremiam e minha língua parecia travada, mas vencendo o torpor que se apoderara de mim, atrevi-me a perguntar o nome do escravo e a resposta ressoou clara e traumática para mim.
- Dinka, o filha da puta se chamava Dinka...e dizem que sua alma penada ainda vaga por estes alojamentos.
Então complementou que o velho Paineira tivera uma morte horrível. Não se sabe como uma dinamite explodiu e pedaços do corpo nunca foram encontrados. Espalharam-se por toda a mina. O homem era experiente demais para deixar isso acontecer.
Vacilante dirigi-me ao alojamento. Sabia que Dinka estaria lá. Estava dominado pelo pavor e não poderia dizer isso a ninguém. Lembrei-me as muitas vezes que me salvara e só então atentei que somente eu podia vê-lo e falar com ele. Por alguma razão ele gostara de mim. Mas mesmo assim sabendo agora que era um fantasma não me imaginava deitando e dormindo no beliche em que ele morrera.
Abri a porta lentamente, buscando divisar na sombra a figura robusta do sudanês. O quarto estava vazio. Avaliei cada espaço, cada fresta, cada sombra. Nada ! Foi quando senti a pesada mão dele em meu ombro. Congelei-me instantaneamente, sem coragem de olhar para trás. Milhares de coisas passaram pela minha cabeça em milionésimos de segundos. Voltei-me para trás, buscando toda coragem que pude resgatar em meu íntimo.
- Você esqueceu seu prato e garfo lá fora !, disse Valdo, rindo alto, -ficou assustado com a estória?
Acenei negativamente com a cabeça, com um sorriso amarelo e sem forças para emitir uma palavra que fosse. Ele saiu desejando boa noite e dizendo que às cinco horas viria me buscar.
Sentei-me no beliche, ainda receoso das sombras. Na manhã seguinte eu estava parecendo uma assombração. Não dormira quase nada, saltando a cada mínimo ruído e tendo a certeza de estar sendo observado.
Até hoje não sei o que aconteceu exatamente e qual a ligação entre eu e Dinka. Trabalhei na mina por mais dois anos, antes de encontrar um novo emprego, e nunca mais ele apareceu para mim. Lembro-me apenas de uma noite em que estava sentado embaixo de uma jaqueira e dois homens iniciaram um tiroteio. Fui violentamente empurrado para o chão e uma bala cravou-se no tronco da árvore, um segundo a mais e ela teria penetrado meu coração.
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