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Feriado prolongado. Chega na cidadezinha cercada de grutas e cachoeiras, encerrada entre montanhas e neblina, o fotógrafo Eurípedes Ataulfo Corredeira, sexagenário, experiente na profissão e disposto a coletar imagens das flores que brotam naquela região visando organizar mais uma exposição. Já havia o projeto de expor em uma turnê pela Europa. Procurou a Pousada das Pedras onde passaria os dias necessários para vasculhar a região. Ao chegar na recepção depara-se com outro futuro hóspede o escritor Auriclênio Pacífico atribulado e irritado.
Naquele momento o escritor insistia na busca de um quarto que o alojasse, porém a negativa da moça que o atendia era inflexível. A Pousada não tinha mais espaço disponível. Auriclênio sentou-se no sofá de couro desgastado onde algumas almofadas de veludo caramelo tentavam adornar o móvel. Olhando para o imenso aquário refletia para onde iria considerando o avançado da hora. Já era a terceira Pousada que buscava e como não havia garantido reserva antecipada encontrou as portas fechadas e sem perspectiva de se abrirem.
Nesse ínterim, Eurípedes voltou apressado informando na recepção que em seu quarto havia mais duas camas e não se incomodaria de compartilhar uma delas com o escritor. A moça resistiu a princípio, mas chamou-o para dar a boa nova. Auriclênio agradeceu repetidamente ao fotógrafo, exageradamente grato. No quarto puderam se conhecer, apresentando-se mais formalmente. Conheciam-se de nome através dos trabalhos que realizavam.
Em seu primeiro passeio pela pequena cidade o fotógrafo assustou-se com o grande número de cães desfilando pelas ruas de pedra. Mesmo no restaurante rústico em que parou para degustar uma comida feita no fogão a lenha percebeu o trânsito de cachorros, em geral grandes, que entravam e saíam sem cerimônia das portas que davam para a rua. Pareciam todos muito amigáveis, aproximando-se como se já o conhecessem e alguns o acompanharam em seu percurso na busca de espécimes que se destacassem na flora local.
No alto da montanha, entre brumas, localizava-se o cruzeiro que podia ser avistado em qualquer parte da cidade, exceto nesses dias em que um manto etéreo o ocultava por inteiro. Ali conheceu outras duas pessoas que coincidentemente estavam hospedadas na mesma Pousada que ele. Um era um ex-padre, deixara a vida sacerdotal para viver novas experiências. Queria conhecer o mundo, em especial as cidades conhecidas como místicas. Baltazar era seu nome. Longos cabelos e barbas alvíssimas davam a ele um aspecto de eremita e que se encaixava perfeitamente naquele ambiente. Com ele estava seu amigo, Alvo Pirangueiro, um sertanejo que não se desprendia de sua viola um momento se quer e a dedilhava a cada instante espalhando sua melodia pelo monte silencioso. Uma contagiante amizade se acendeu e daquele momento adiante passaram a excursionar juntos.
Baltazar estava em busca de inscrições rupestres de que ouvira falar e que segundo ele traduziam-se em mensagens que apontavam para uma outra cidade energeticamente imantada, um chacra planetário. Ali encontraria o sinal que buscava. Ao longo de sua trajetória estivera na Europa e além do caminho de Santiago de Compostela, os dolmens e catedrais, excursionara também pela Ilha de Páscoa e Machu Pichu. Agora perambulava por uma cidadezinha brasileira de reduzidas proporções e sem os atrativos de ter abrigado antigas civilizações. O tema interessou Eurípedes e Auriclênio de maneira que se juntaram ao grupo, estabelecendo além de relações de sintonia e amizade, um forte desejo de que aquela busca chegasse ao seu cume.
Apelidaram os cães que os ciceroneavam de Adamastor e Juanita. Onde quer que fossem os cães os acompanhavam e de alguma maneira apontavam caminhos.Isso os divertia e intrigava simultaneamente, mas de qualquer forma uma afinidade se estabelecera. Eram seus guardiães.
No famoso restaurante de pedra Alvo Pirangueiro conheceu Valéria, que com seu jeito despojado, com roupas indianas e uma filosofia hippie, embora antagônico ao estilo de alvo o conquistou. Valéria conhecia bem a região, passava muito tempo caminhando, meditando e seguindo abandonada aos seus propósitos de curtir a vida em plenitude. Por sua sugestão visitaram o Pico do Gavião, ponto mais alto da cidade e dessa forma o ponto que permitia tocar o firmamento. Lá era possível contracenar com as nuvens.
Na longa caminhada, exaustos, sentaram-se na grama macia e de onde podia-se avistar não apenas a cidade, mas a devastação causada pelas mineradoras. Baltazar mostrou um mapa traçado em pergaminho, nitidamente antigo e já meio apagado, onde via-se um mal traçado de linhas formando um pentágono, e dentro dele uma grande forma ovalada circundada por retângulos irregulares, cruzes e figuras humanas estilizadas. No alto do vértice um sol irradiava. Por todos os caminhos, Baltazar matutava sobre o mapa e nada se enquadrava ao desenho ali proposto. Tentaram analisá-lo sob vários ângulos. Mas foi Valéria quem num insight sugeriu direcioná-lo para a rocha que tinham a poucos metros de onde estavam.
Posicionando o mapa podia-se ver que a rocha, já desgastada, aparentava ter tido uma ponta esculpida e direcionada para o alto da montanha. No mapa a figura desenhava-se para onde brilhava o sol. Baltazar tremulou entusiasmado e um olhar de curiosidade mobilizou a todos. O sol brilhava no alto da montanha. O alto da montanha era ponto mais perto do sol. O sol era o grande deus nas antigas civilizações. Todas as culturas incentivaram as pessoas a buscarem a luz em contraposição às trevas.
As coincidências eram impactantes. Diante deles um imensa rocha de forma ovalada. Exatamente o centro da figura. Porém nada indicava as outras referências como os retângulos e sem qualquer indicativo do que poderiam ser as tais cruzes. Vasculharam inutilmente. Retornaram a Pousada desanimados. Mas combinaram de retornarem ao local pela manhã e refletirem a noite sobre o local. Cada um desenhou como pode a réplica do mapa.
O mapa havia sido entregue a Baltazar em uma iniciação. Através do velho mestre a tefromancia apontou ser ele uma pessoa especial, um eleito e cabia a ele guardar e zelar pelo mapa por ele chamado Estela de Canis. Os rituais periódicos com grandes restrições alimentares e exercícios de concentração, êxtase e transes, motivados pela ingestão de certas ervas constituíram sua preparação para recebesse o título de Eremite Maculatus. Em sua lapela ostentava a insígnia da Ordem: dois chifres de impala cruzados tendo ao centro a lua minguante.
Os dias prosseguiram sem grandes resultados. Sentados na grande pedra ovalada Auriclênio atirou uma pedra aleatoriamente resvalando em um tronco e vindo a cair na grama. A pedra caiu liberando um som abafado, como se caísse sobre algo oco. Entreolharam-se e dispararam para o local. Outros testes e tudo indicava que havia um poço ali. Quase instantaneamente retornaram com enxadas, rastelos e pás. Depararam-se com uma placa de quartzito. Novo desafio. O som prosseguia mais abafado misturando-se com a ansiedade que tomava conta de todos.
Algumas marretadas e nada. E se explodissem ? Mas como explodir ali sem chamar a atenção? Eurípedes com seu jeito gatuno, incumbiu-se de furtar uma dinamite.
Alvo Pirangueiro exasperou-se, não concordava com aquilo. Era um absurdo explodir o local e ainda roubar uma dinamite. Colocaria a vida de todos em risco. Irritado e agressivo por não conseguir reverter a situação saiu pisando duro. Valéria foi em sua busca tentando convencê-lo a manter-se unido ao grupo. Porém, sem êxito. Alvo afastou-se apressadamente desaparecendo entre os troncos retorcidos das candeias.
Sozinhos agachados diante do quartzito recém desenterrado, Auriclênio e Baltazar buscavam captar os sons emitidos a partir do choque com as pedras. Adamastor e Juanita mostravam-se agitados movendo-se e rosnando. Baltazer passou a pular sobre a pedra. Subitamente a pedra partiu tragando-o para o interior. Auriclênio desesperou-se. O buraco fundo e escuro, úmido e escorregadio, engolira o amigo. Após várias tentativas chamando, Baltazar respondeu estar bem. Retirou o isqueiro do bolso e constatou a existência de galerias. Mais ainda havia uma escada rusticamente esculpida que subia até a abertura ao alto. Pediu, assim, que Auriclênio descesse até ele.
Munidos do isqueiro e uma pequena lanterna passaram a examinar o local.
Eurípedes travou-se ao perceber que alguns cães o seguiam latindo. Diante do imprevisto não teve como se apossar da dinamite. Tentou seguir pela estrada que levava para a pedra oval mas outros cães estavam fechando o caminho. Retornou à cidade. Na cidade os cães estavam furiosos, atacando pessoas e algumas haviam sido mortas. Fechou-se no quarto, apreensivo e sem saber o que fazer.
Sentados próximos a uma cachoeira Alvo e Valéria se beijavam quando três cães os abordaram agressivamente. Buscaram escalar as pedras escorregadias da cachoeira, ferindo-se e procurando agarrar-se às saliências. Estavam atemorizados. Alvo buscava a todo custo manter Valéria segura, porém um passo em falso e a moça escorregou batendo violentamente na água. Sob a água uma pedra se ocultava. A queda produziu sério ferimento no joelho, quase a imobilizando. Os cães avançaram pela água para alcançá-la. Alvo desceu rápida e corajosamente buscando pedras para atirar nos cachorros. O olhar deles era feroz e brilhante. Valéria gemia e chorava de dor. Um pedaço de pau garantiu que subissem por uma trilha paralela a cachoeira. Teriam pouco tempo.
Dentro da gruta percorrendo os labirintos, Baltazar e Auriclênio se surpreenderam com um grande salão. Em uma espécie de altar estava um escudo de ouro, ricamente trabalhado. Era o tesouro que Baltazar buscava. Ao se aproximarem alucinados foram interceptados por dois cães negros. O pelo ébano refletia uma estranha luz azulada, entre o anil e o violeta.
Os gritos das pessoas e os uivos dos cães apavoravam Eurípedes, que abriu a janela dando de topo com um imenso cão. Trancou-se novamente. Seus amigos certamente estariam mortos. Ajoelhou-se contrito e afogou-se em profunda oração.
Na mata, Alvo Pirangueiro e Valéria tentavam proteger-se. Valéria se arrastava, com o joelho muito machucado. Outros três cães e Alvo não teve saída. Saltaram sobre ele e o teriam matado se três tiros certeiros não tivessem matado as criaturas diabólicas. Um homem emergindo da floresta fez os disparos e os levou para sua cabana de pedra.
Treinado por anos para aquele momento, Baltazar proferiu palavras enigmáticas que fizeram os cães retrocederem. Falava com eles em um dialeto estranho, porém parecia se fazer entender.
Os dois cães negros ergueram-se transmutando-se em duas figuras humanas. Trajavam mantos negros e apreciam os temidos feiticeiros quimbandas. O mais velho os saudou e anunciou aguardar Baltazar. Há mil anos ali estavam como guardiães da Estela Canis.
Revelaram que a Estela era a conexão entre a luz e as sombras, e através delas a manutenção da vida. Com a Estela as pessoas do vilarejo haviam se imortalizado. Assim que a forma humana morria todos tomavam a forma canina e assim podiam viver eternamente. Se a Estela fosse entregue a alguém e deixasse o altar os cães se tornariam a poeira dos quartzitos. Voltariam ao pó e o equilíbrio conquistado nestas centenas de anos seria rompido.
O mais jovem tendo em suas mãos a Estela aproximou-se de Baltazar. A beleza era exuberante. Ao redor havia uma inscrição com letras desconhecidas. O sacerdote pronunciou: “muita luz é como muita escuridão – não deixa ver”*.
Esse era o tesouro. Talvez não o ouro da Estela, mas a mensagem.
Baltazar e Auriclênio escalaram até a saída. O escudo de ouro deveria permanecer onde estava. Ao saírem a pedra se fechou como se nada tivesse a perturbado. Retornaram até a cidadezinha. Estava tudo tranquilo. Encontraram-se com Alvo Pirangueiro e Valéria e nada entenderam sobre os cães.
Surpresa maior foi abrir a porta do quarto e encontrar Eurípedes de joelhos em oração.
A cidade voltara ao equilíbrio. Alguns latidos estremeceram Alvo, Eurípedes e Valéria, porém eram Adamastor e Juanita, abanando a cauda e felizes por reencontrá-los.
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