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As paredes emboloradas traçavam inconscientes figuras exóticas que se similarizavam a cenas cotidianas, rebuscadas de um sentimento idílico. O quarto sem forro deixava vislumbrar as telhas envelhecidas, as teias de aranha tecidas há tempos, empoeiradas, e já desabitadas. O cheiro de bolor nauseante se mistura a outros odores fétidos dificultando a permanência no local. Mas ali, estirado na cama, distante de oferecer qualquer conforto, jazia um corpo moribundo. Apenas a cama e um guarda roupas onde se acumularam pequenas caixas amareladas, poucas roupas e restos de alimento compartilhados por ratos e baratas famintas.
- Oraiza! Oraiza!, balbuciava ele sem forças, quase inaudível, entre suores e um olhar estatelado. A febre o consumia. Feridas purulentas disputavam áreas não atacadas no corpo magérrimo.
A porta se abre ruidosa e uma mulher arredondada, forte e de feições símeas dispara impropérios, ofendendo o ancião em agonia.
- Já lhe trago a sopa! Está fervendo!, esclarece impiedosa desatenta a tentativa de um último diálogo.
Ele geme e tenta acomodar-se melhor, mas sem forças e com o corpo dolorido resolve permanecer como está.
- Sente-se aqui, Oraiza – arrisca ele em insistente busca de despedir-se.
Sem interesse e demonstrando insatisfação em sentar-se na cama que emanava um odor podre, a mulher sentou-se sem entregar-se inteiramente ao ato. Intuiu ter chegado o momento derradeiro e sentia alívio. Ele permanecera dezoito anos naquele leito, trancafiado naquele quarto mal vendo o exterior a não ser pela janela entreaberta. Durante as noites era tomado de delírios, gritando e pedindo que o socorressem. O corpo do homem parecia ser uma escultura de sebo, onde se inscrustaram grandes olhos verdes.
Fora um belo homem. Nascido de um nobre casamento descendia de uma abastada linhagem de barões. Desde jovem mostrar-se senhor de um corpo atlético, atraente e sensual atraindo a atenção de homens e mulheres com os mais variados interesses. A morte dos pais levou-o para longe de seu local de nascimento, encravando-se em densa floresta junto a um tio solitário e estranho, único familiar a oferecer-se cuidar do rapaz, após a falência familiar. Contrariado seguiu em um coche desconfortável, adentrando as sombras de seculares árvores. A Floresta do Enforcado. Um lugar amaldiçoado. Na época das Cruzadas vários moradores foram enforcados ali e segundo afirmavam os mais velhos não era difícil deparar-se com a alma de um morto vagando pelas terras úmidas da floresta.
O tio, Lugonar, se isolara naquele local ermo e quase inacessível, cercado pelos mistérios dos enforcados, há décadas. Agora recebia seu rebelde sobrinho para educar. Mas não temia o desafio. Soturno e misterioso sorria internamente ao assistir o espernear o menino. E assim ocorreu. As desobediências levavam o garoto a conhecer grutas escuras perpassando noites frias e receber tarefas complexas de encontrar determinado fruto, raiz ou capturar uma ave ou animal. Por vezes precisou encontrar seu próprio alimento e encontrar água potável em áreas pantanosas.
- Pegue a caixa, Oraiza. Pegue a caixa cor de vinho...ordenou, embora soasse como um pedido desesperado.
A mulher vasculhou o velho guarda roupas até encontrá-la. O odor de poeira acumulada infestou o ambiente.
- Esta?, indagou ela segurando uma caixa talhada de corpos nus entrelaçados.
Ele assentiu quase imperceptivelmente. Acariciou a caixa como se ali estivesse aprisionada sua própria alma. Pareceu vacilante em abri-la.
Oraiza arregalou os olhos ao conhecer o interior da caixa e precisou sentar-se rapidamente para não desfalecer.
Um Skoda Octavia passou rápido na estrada forrada de pequenos pedregulhos. A tarde chegava ao fim, de maneira que os tons avermelhados já preenchiam o horizonte criando figuras fantásticas. Edgar adquirira uma casa nas montanhas, que sempre fora seu sonho. Agora poderia levar sua esposa, Lívia, e seus filhos: Ednei, de 12 anos, e Lionza, de oito anos.A casa exigia reformas, estava bastante degradada, mas localizava-se em um lugar privilegiado, propiciando uma incrível visão paradisíaca.
As crianças extasiaram-se com a beleza do lugar e a possibilidade de correrem pelos vastos campos, subirem em árvores, pescarem e se divertirem em inesgotáveis formas.
A reforma incluía os porões e entre escombros identificaram um velho guarda-roupas repleto de caixas e roupas antigas. Sem atentar-se, Edgar determinou que se queimasse tudo. Como sempre vazia, a passos felinos e de maneira delicada, Lívia propôs-se explorar o conteúdo das caixas antes de se tornarem irremediavelmente cinzas. Sentou-se na grama enquanto abria cada uma delas. Em algumas haviam pergaminhos com várias receitas, em geral para cura de certas doenças, outras traziam sementes, cascas, pós, certamente utilizados como ingredientes para dissipar diferentes mazelas.
Repentinamente viu-se atraída por uma caixa talhada ricamente e ornamentada com corpos entrelaçados em posições eróticas similares ao kama sutra, porém denunciando relações não apenas entre homens e mulheres, mas entre o mesmo sexo e animais. Suas mãos tremularam acariciando a misteriosa caixa. Quando a abriu viu-se transportar-se além do tempo.
Viu-se presente no momento em que Lugonar recebia os segredos da Ordem de Fridora. Uma seita secreta que reunia templários que se ocultaram naquela região. Um anel de ouro e sílica-gema fora colocado em seu anular pelo antiquíssimo ancião, pronunciando palavras incompreensíveis. O viu dominando as tempestades, caminhando sobre as águas e entre as chamas de uma fogueira. Viu, atemorizada, que a casa – sua casa – era protegida por vários enforcados.
Sentiu, então, como se fosse um velho fraco e debilitado segurando a caixa antes de sua própria morte.
- Preserve o segredo!, recomendou ele.
Edgar encontrou-a desmaiada agarrada à caixa.
Ao despertar, atordoada, Lívia solicitou a caixa que havia sido colocada sobre a cômoda do quarto e a guardou, cuidadosamente.
A noite trouxe ruídos inesperados. Vozes e lamentações emergiam vez ou outra ao redor da casa. Edgar dormia placidamente, assim como Ednei. Já Lionza parecia ter as mesmas percepções da mãe.
Gradualmente as aparições, vultos pela casa, estalidos e murmúrios se intensificaram. Edgar ironizava os comentários e alertas aflitos de Lívia. Aos poucos, Lívia foi empalidecendo, esgotada pelas preocupações, sono perturbado e falta de alimentação. Lutava, quase sem forças. Sabia que estava sendo sondada, vigiada e algo extremamente ruim estava para eclodir. Temia pelos seus filhos. Lionza despertava pela madrugada dizendo sobre pesoas no seu quarto ou que havia ouvido chamá-la por diversas vezes.
Acreditando as reações da esposa e filhas ser fruto do isolamento da montanha, Edgar surgiu com um cãozinho. Um Golden Retriever. Após votações e desentendimentos chegou-se ao nome de Eloá. A cachorrinha logo se apropriou da casa e conquistou a todos pelo carinho com que se comunicava.
A presença de Eloá parece ter mudado o ambiente. Alegria, brincadeiras, passeios ao ar livre e uma intensa atração sexual entre Edgar e Lívia. Nenhum ruído estranho, nenhuma presença fantasmagórica vagando pelos cômodos. Paz. A vida retomava seu curso e Edgar estava ciente de que havia resolvido o problema.
No mercado da cidade, Lívia conheceu, através de uma conversa informal na fila do caixa, uma senhora simpática, grande em atenção e simpatia, além de avantajada em toda sua extensão física. Uma senhora alegre, risonha que logo a conquistou. A conversa perambulou pela mudança, a casa da montanha e a necessidade de alguém para cuidar da casa. A senhora entusiasmou-se e foi logo convocada para uma entrevista junto ao marido de Lívia. Praticamente estava contratada.
O carisma da mulher contagiou Edgar e as crianças. Parecia da família. Cuidava da casa com uma atenção desmedida. Contava causos que envolvia a casa, já bastante antiga e que remontava o tempo das Cruzadas. Antes ali fora uma sombria floresta, chamada em tempos antigos de Floresta dos Enforcados. Falava como se lembrasse das lendas envolvendo Santa Ada e outras estórias que deixavam os pequenos entusiasmados e boquiabertos.
Certa noite narrou a lenda da caixa de fogo. Uma caixa misteriosa talhada do Sagrado Lenho e banhado com o sangue de Judas Iscariotes. A caixa fora talhada pelo próprio Arcanjo Uriel e trazia dentro dela a chave de São Pedro. A chave abria a porta do outro mundo, controlando a entrada e a saída de todas as almas. Quem possui a caixa tem em suas mãos imenso poder.
Lívia empalideceu com a narração da anciã, visualizando a caixa que guardava cuidadosamente em sua cômoda. Insegura resolveu chamar a mulher ao seu quarto e apresentar a relíquia que mantinha envolta em uma toalha de pura seda escarlate.
- Sempre soube que você a possuía e não apenas isso, sei que a abriu e desde então vinculou-se aos seres da floresta. A caixa assegura seu pacto, mesmo que não o tenha feito consciente dele, asseverou a idosa olhando pensativa para o pequeno baú. Após alguns minutos em silêncio a abriu e dela retirou a anel de ouro e sílica-gema de onde se notavam inscrições místicas. Dê-me o seu dedo.
Lívia, pálida e desconfigurada, estendeu-lhe a mão. Rápida a senhora picou seu dedo com uma agulha de ferro que havia na caixa e deixou que a gota rubra cobrisse a pedra azulada. Colocou-lhe, então o anel. A pedra metamorfoseou-se em um tom púrpura e Lívia foi arrebatada para o passado.
- Pegue a caixa, Oraiza. Pegue a caixa cor de vinho...ordenou, embora soasse como um pedido desesperado. Protegi os segredos da Ordem até hoje e fui consumido pelas almas dos enforcados. Alimentei-os com meu fluido vital. Agora querem meu corpo ou o que restou dele. Conheça o passado, abra a caixa.
Oraiza arregalou os olhos ao conhecer o interior da caixa e precisou sentar-se rapidamente para não desfalecer.
- Torno-te guardiã deste conhecimento. A floresta será devastada e restará somente esta casa, protegida e defendida pelos mortos. Serás consumida e permanecerá tua alma presa neste baú até que alguém de alma limpa a encontre e te liberte. Então trará a Floresta de volta e a fará Senhora da Floresta. Recusei-me assumir esse poder e ele me consumiu. Dou-lhe a eternidade!
Lívia olhou Oraiza por longo tempo. Na vida nada é por acaso. A transferência do marido para aquela cidadezinha, a casa apresentada para comprar após inúmeras tentativas infrutíferas visitando diferentes imóveis, o encontro com ela no mercado, o interesse pela caixa. Algo a impelia a trazer o passado de volta.
No alto da montanha, rodeada por um bosque impenetrável, governa um mundo sobrenatural, uma porta entre os mundos, está velha e cansada. Em seu colo acaricia o baú. Olha ao redor e relembra o dia em que pisou naquelas terras pela primeira vez.
- Lionza, pegue esta caixa. Abra-a. Meus dias findam. Devo deixar um legado a você...
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