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Lá fora apenas o pio de alguma ave
noturna oculta na escuridão. O céu sem lua tornava o ambiente pavoroso. Vez ou
outra o cricrilar de um grilo ou o coaxar de sapos na lagoa um pouco distante
dali. Eu, sozinha, esquecida naquele fim de mundo, cercada por mata nativa
quase indevassável.
Lembro-me pouco de como cheguei
até aquela casa abandonada. Quando dei por mim caminhava a esmo por uma estrada,
afundando meus pés descalços na areia. Era o final da tarde e o crepúsculo
revelava tons avermelhados no horizonte. O vento chicoteava-me com os grãos de
areia. Por intuição decidi tomar uma trilha que adentrava a mata. Enquanto
caminhava a noite cobria a vida com seu manto de seda negra. Afundei-me na lama
diversas vezes, feri-me com espinhos e, atordoada, de medo e insegurança
avistei a velha construção. A princípio acreditei ser a residência de alguém,
mas o silêncio e a decrepitude revelou o abandono.
Aconcheguei-me como pude e o
cansaço prevaleceu levando-me ao torpor do sono. Despertei com o voo de algumas
borboletas sobre mim. Olhei a casa, examinei-a. Alguns móveis permaneciam.
Alguns armários na cozinha, um sofá velho na sala, um guarda roupas e uma cama
com um colchão surrado. Caixas se organizavam empilhadas. Sorri quando vi uma
panela de ferro. Decidi organizar a casa, enquanto buscava nos porões de minha
memória algum registro sobre o que estava acontecendo e o principal: quem era
eu.
Com a ajuda de pequenos arbustos
construí uma vassoura improvisada para tirar o pó e as teias de aranha que se
acumularam. Andei ao redor, nas proximidades da casa, e localizei uma lagoa que
me saciou a sede. A fome, contudo, me consumia. Olhei ao redor na busca insana
de encontrar algo para comer. Vi alguns pequenos frutos muito rubros sendo
devorados por um pássaro e me fartei deles. Tive vômitos e diarreia o resto do
dia. Por sorte divisei um cacho de bananas.
Aos poucos me habituei. Passei a
conhecer a mata, coletar frutos, ovos e pequenos animais. Intrigava-me quem se
escondia dentro de mim. Olhava-me demoradamente no espelho d´água. Acariciava
meu rosto, tentava descobrir-me. Nenhuma cena do passado, nenhuma lembrança,
nenhum nome.
Naquela noite escura despertei
sobressaltada. Ouvia um toque repetido como as investidas do pica pau no tronco
de uma árvore, porém de forma ensurdecedora. Via pessoas e parecia que todas falavam
ao mesmo tempo. Luzes coloridas se sucediam. Enfim, identifiquei-me. Moara.
Esse nome ressoava. Todos me chamavam simultaneamente. Despertei num salto,
perturbada e feliz. Sorri.
- Moara!, repeti várias vezes.
Uma tempestade se iniciava. Ventos
fortes, truculentos, assoviando por entre as árvores, acompanhados por raios e
trovões. Moara. Era o nome que acompanhava o assovio do vento. Passei parte da
noite observando as árvores e arbustos serem chacoalhados e sendo aspergida
pelas gotas frias da chuva.
Ao amanhecer deparei-me com um
rapaz, nu, estendido em uma poça d´água. Estava embarreado. Fitei-o demoradamente.
Tinha os cabelos louros, corpo bem feito e de pele muito clara, como se o sol
nunca a tivesse atingido. Somente, então, preocupei-me. Poderia estar morto. Usei
de toda minha força para despertá-lo. Ele abriu os olhos.
- Quem é você?, indagou, confuso
e curioso.
- Moara, respondi sem pestanejar,
ansiosa em revelar que sabia quem eu era.
Ele me olhou assombrado,
levantando-se agitado sem importar-se por estar sem roupas.
- Você não pode ser Moara, disse
quase que para si mesmo...
- Quem é você?, perguntei sem
nada entender.
Ele olhou-me duvidoso,
desacreditando do que estava acontecendo. Fiz sinal para que me desse às mãos e
me acompanhasse. Ele o fez pacificamente, como que querendo proteção. Estava
com muito frio e precisei cobri-lo com alguns sacos de estopa para aquecê-lo.
Revelou que se chamava Rafael. Todas as suas ações denunciavam me conhecer, mas
era nítida sua recusa em chamar-me de Moara.
Após alguns dias, sentindo-se
mais forte, desapareceu. Ao amanhecer não estava mais lá. Fugiu nu como chegara
e permanecera nesses poucos dias. Mergulhei em um estranho sentimento de
solidão.
a solidão do mundo
parece me aquecer
e nesse vácuo que me
abraça, me aconchego
um estranho vazio que
não preenche, um desassossego
uma dor que pulsa
latejante e inquieta que não quer ceder
em cada canto em que
me arrasto, na ânsia nua de me proteger
novo vazio se
emoldura, mudo e cínico, se enclausura
engaiolando-me em um
cesto inefável de indiferença
e nessa apostasia me
entrego, absorta, como se fosse marca de nascença
queria ser bolha de
sabão vagando tola ao sabor do vento
revelando cores como
se fossem minhas
frágil e fulgurante,
resplandecendo como um cometa
e desaparecendo em
milhares de gotinhas
emergindo dessa
letargia queria conhecer-me, saber quem sou,
vasculhar-me pelos
meus cômodos, porões e sótão
descobrir-me
apaixonante em defeitos e qualidades
abraçar-me tal qual
sou, um nome, uma vida, uma história.
Vi-me rascunhando com um carvão na
mão um poema pelas paredes amareladas do casarão tão esquecido quanto eu mesma.
Ele próprio não se reconhece. Pode ter tido seus momentos de glória e tudo faz
parecer que um dia abrigou gente nobre. Assim como eu, talvez muita gente viva
esquecida de si mesma.
O sol se fazia alto quando uma
camionete estacionou na estrada e um grupo composto por quatro pessoas se
aproximaram da casa. Uma moça me abraçou em prantos. Conduziram-me até o carro
alertando que ficaria tudo bem. Pensei em resistir, mas pareciam boas pessoas.
No hospital um médico, já de
idade avançada e sorriso contagiante, disse-me que presenciei o atropelamento
de minha filha, entrando em choque.
- Moara não resistiu, informou
ele.
Comecei a chorar sem saber por
que.
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