foto: Geraldo Gabriel Bossini
Vencidos os transtornos da
mudança, procura isso e aquilo, arruma aqui e ali e pouco a pouco as coisas
foram se posicionando em seus lugares. Casa nova, cidade nova, outro recomeço.
Minha vida parece obedecer ao ritmo de um eletrocardiograma. Entre altos e
baixos, etapas que findam e outras que eclodem, sigo semelhante a uma Fênix.
Enfim, lá estava eu me alojando na casa localizada na Rua Barão Almeida Cravo,
num bairro afastado, mas muito bonito, onde fui recepcionado com flamboyants
floridos e o canto de muitos pássaros. Claro, também fui ameaçado pelo latido
de vários cães defendendo suas moradias.
A ideia era assumir aulas de
Matemática em uma escola próxima. Uma escola pequena, bem organizada, limpa e
povoada de pessoas simpáticas, excetuando-se os funcionários da secretaria que
me fulminaram com o olhar e não esboçaram qualquer sorriso. Um intruso! Mas
interpretei a postura deles como enfrentei aqueles indivíduos que ladraram para
mim nas ruas. O fato é que ali estava pousando e pretendia permanecer por
longos anos. Estava animado.
Chegando a casa, após caminhar
pelo bairro, decidi comemorar abrindo um vinho. O primeiro copo depositei ao
lado da imagem do preto velho na cozinha. Devia muito a ele. Liguei a televisão,
estirado no sofá quando observei um objeto voador cruzar a sala. Caminhou pela
cortina, outro voo e vasculhou o quadro antigo pintado por minha avó, Cenira.
Era uma barata. Estampou-me o terror. Não sei quais sentimentos fluem em mim
quando as vejo. Paralisado olhando aquele ser monstruoso, busquei
estrategicamente o meu chinelo. De forma provocativa ela voou uma vez mais para
encontrar minhas costas. Gritei, correndo pela sala como que deparado com um
fantasma. Tirei a camisa, olhei em minha volta, andei sorrateiro pelo corredor
e espiei na sala. Ela devia estar me olhando aos risos.
Sentei-me novamente no sofá com
ar de espreita, como um cão farejador atento à sua presa. Ocorre que naquele
momento a presa era eu! Tentei acalmar-me e prosseguir com a taça de vinho e a
novela que era transmitida. Trêmulo e inseguro.
Aos poucos me acostumei com ela.
Voava aqui e ali. Digamos que ficamos amigos. Desisti de extingui-la desse
adorável planeta. Afinal, ela já residia ali. Eu era seu inquilino. Chamei-a de
Jandira. Jandira era o nome da secretária da escola. Éramos amigos... mas, nem
tanto!
Retornando à casa procurava
atualizar Jandira sobre o que havia feito naquele dia, reclamava de alguns
alunos, criticava alguns pais ou a postura de alguns professores, falava de
política e economia. Jandira ouvia e quando se cansava abria as asas e
desaparecia.
A casa tinha muitos esconderijos
para ela. Tinha um forro de madeira com algumas entradas estratégicas e porão.
Um parque de diversões. Jandira parecia solitária como eu. De certa forma,
agradecia a ela por isso e a incentivava a não acreditar nos homens. Todos
malandros. Nenhum prestava! Na realidade temia um casamento próspero e uma
penca de filhos volitando pelos cômodos de casa.
Meu sossego e minha vida tranquila
com Jandira agitaram-se quando recebi o telefonema de minha irmã, Celina, que
desejava passar um final de semana e conhecer a casa. Desesperei-me. Viria ela
e o pequeno Arthur. Duas pessoas que amo, mas que certamente eliminariam
Jandira. Jamais compreenderiam essa amizade e as relações interpessoais que
surgiram e se alicerçaram ao longo de meses de convívio.
Ensaiei inúmeras vezes
confidenciar-lhe meu respeito e carinho por Jandira, mas temi não ser
compreendido. O fato é que Celina e Arthur chegaram. Desceram do taxi e se
alojaram. Ficariam uma semana. Com certa impaciência procurei estar atento a
qualquer manifestação de minha amiga para interceder por sua vida.
Jandira resolveu aparecer à
noite. Estávamos na sala tomando sorvete quando ela efetuou seu voo rumo à
cortina. Arthur gritou com uma inocência apaixonante “olha, um helicóptero!”. Celina
levantou-se senhora de si e pronta para o baraticínio. Em pânico, coloquei-me a
frente e pedi que sentasse. Foram momentos tensos, pois Celina estava fora de
si e convicta de que sua missão na terra era exterminar aquele inseto. Em quase
meio a um MMA, Celina concedeu a oportunidade de ouvir-me. Silenciou-se
inconformada e apreensiva. Desconfiava de minha lucidez e sanidade. Percebi que
havia cedido temporariamente, mas tramava uma tocaia à Jandira. Perdi a vontade
de trabalhar. Minha ausência poderia ser fatal. Roguei que se comprometesse não
fazer mal a ela.
Todo dia saía inseguro e ao
retornar aguardava impaciente o voo de Jandira. Recebi críticas ferrenhas,
admoestações diversas e ameaças constantes. Arthur logo se apaixonou por
Jandira e ela realizava voos especiais para ele.
- Nojenta!, exclamava Celina ao
compartilhar na sala a nobre companhia de Jandira.
Mantinha o chinelo próximo.
- Se ela voar em mim ou no Arthur
eu espatifo ela!, vaticinava furiosa.
Em uma noite calorosa, Celina
decidiu dormir com a janela aberta, embora ciente de que seria a porta para
Jandira penetrar no quarto. Por essa razão, deixou o chinelo ao alcance. O fim
estava próximo e seria naquela noite.
A madrugada já ia alta quando
Celina sentiu algo percorrer seu rosto. Levantou-se num impulso. Era a maldita!
Ameaçadora, correu acender a luz do quarto e então viu que Arthur estava tendo
uma convulsão. Hospital. Urgência. Cuidados. Arthur reagia. De volta para casa.
Alivio!
- Se não fosse Jandira acordá-la,
talvez fosse tarde... , comentei alegre.
De alguma forma, após o episódio,
Jandira passou a ser da família, com direito a sobrenome.
Jandira Boina Vato. Mais até que isso, tornou-se uma celebridade. Agora todos querem conhecê-la! Mas estou desconfiado de que ela arranjou um
namorado...outro dia apareceu voando toda de branco pela sala. Noiva?
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