foto: Geraldo Bossini
A noite chegou silenciosa. Era mais um dia na vida de Belmira. Chegou exausta após um dia de trabalho. Há tempos atuava como recepcionista em um Hotel de luxo na cidade litorânea em que residia. Paralelamente ao trabalho dedicava-se a cursos diversos a distância buscando aprimorar-se, engordar seu currículo, e assim buscar um novo emprego e melhoria salarial. Em seus sonhos queria conhecer o mundo, viajar, ter sua casa, cuidar de seus bichinhos de estimação e ser feliz com essas coisas. No trabalho tinha um bom relacionamento com todos e muitos a procuravam para desabafar, revelar suas insatisfações mais íntimas e incertezas perante a vida. Como boa ouvinte, Belmira cativava. As pessoas queriam ser ouvidas, alguém que dispensasse alguns minutos para que pudessem confiar, confidenciar e desabafar.
Evidentemente, havia quem não gostasse dela, assumida ou dissimuladamente. Eventualmente ficava sabendo daquela boa e velha estória “ fulano está falando tal coisa de você...”, mas Belmira sabia relevar. Estava apostando em sua carreira. Como recepcionista, simpática e atenciosa, havia conquistado o carinho e amizade de várias pessoas, inclusive grandes empresários. Por essa razão desdobrava-se também no estudo do espanhol e inglês, queria falar fluentemente. Um dia a sorte bateria em sua porta.
Assim os dias se sucediam. Visualizando o potencial de sua funcionária, Edeogar Pontes, gerente do Hotel a promoveu. Foi uma festa. Foram todos comemorar em uma edícula, com carne à vontade, além de cerveja gelada, piscina e descontração. Alguns, naturalmente não compareceram e dispensaram os cumprimentos e votos de sucesso, até mesmo por que realmente não alimentavam tal desejo.
Passada a festa, a rotina diária com seu corre-corre, sufoco, nervosismos, preocupações, tensões, pressões, além dos cursos que Belmira freqüentava com a desaprovação de alguns. Não passava de uma louca, “a gente morre e fica tudo aí” – justificavam. “Vá curtir a vida enquanto resta” – profetizavam vários. Mas Belmira sentia imenso prazer no que fazia.
A moça não dispensava, contudo, seus momentos de oração e meditação. Recolhia-se no Santuário do Bom Jesus Flagelado e lá permanecia, de coração aberto. Somente Ele sabia e compartilhava os reais pensamentos e sentimentos que borbulhavam no palpitar daquele coraçãozinho meigo. Sabia da competitividade, das amizades nem sempre verdadeiras e das muitas pessoas que a tratavam bem simplesmente pela grande amizade e afinidade com o gerente. Muitas vezes era convidada para jantar com ele e a família, a ponto de surgirem comentários maldosos, em geral injetados por aqueles que entendiam ser mais fácil dinamitar o caminho dos colegas do que construir uma ponte segura para si mesmos.
As coisas se tornaram mais explícitas quando Edeogar anunciou que iria se aposentar. A vaga despertou ou evidenciou desejos incríveis de muitos. Alto salário e status era o que grande parte dos funcionários almejava. A escolha, no entanto, ficaria a cargo de Dona Manoela Crispiniano Del Cobre, dona da rede de hotéis. O nome cogitado era de Belmira, afinal era a grande “puxa-saco” de Edeogar. E para alegria de uns e desespero de outros, Belmira foi chamada pela poderosa senhora, rígida, mal encarada, fria e competente Dona Manoela. Horas de conversa e Belmira saiu tremulejando as pernas, suada e pálida. Seria a gerente !
Novos compromissos e responsabilidades, cuidadosa e perfeccionista, Belmira passou a dar o melhor de si. Evidenciou-se ainda mais pelo trabalho. Para recepcionista fora contratado Basilides, jovem, bonito, de olhar negro e profundo, que chamou a atenção da gerente. Em breve saboreavam um chopp gelado e como aperitivo a atração que os mantinha ligados. Basilides era casado com Cleide e com a qual tinha uma filhinha de nome Larissa, de um ano e meio, mas choramingava com Belmira as decepções de seu casamento. Logo Belmira e Basilides passeavam juntos com Larissa nos braços. Assim despesas para a casa, roupas e brinquedos foram sendo conseguidos com certa facilidade. Segundo Basilides, visando evitar desconfianças da esposa, em alguns jantares e passeios levava Cleide, moça simples, que Belmira precisou levar a um cabeleireiro e comprar algumas roupas para que pudesse freqüentar alguns lugares.
Não demorou para que Belmira também liberasse algum dinheiro para aluguel, gás, contas de água, luz ou telefone. Sentia-se, contudo feliz com o carinho e maneira atenciosa do companheiro. Simultaneamente buscava novos cursos, agora tinha outra meta, ganhar mais, conquistar mais para que Basilides também recebesse esse bônus. Incentivava-o a estudar para que ocupasse posições melhores e conseqüentes melhorias financeiras, mas ele alegava que não tinha a inteligência da “mulher da vida dele”.
Certa manhã e Dona Manoela visitou o Hotel para conversar com Belmira, saber do andamento do negócio e fazer-lhe uma proposta : queria que assumisse a gerência da rede de hotéis no litoral. O impacto foi grande. Belmira não julgou-se capaz para encarar tal desafio, mas Dona Manoela soube conduzir a conversa e obter o sim.
Basilides tentou chantageá-la emocionalmente dizendo que não poderia desfazer o casamento agora, que tinha a filha, que não poderia acompanhá-la, entre outros argumentos que pudessem garantir sua estabilidade. Belmira, contudo, soube analisar seu íntimo.
- Meu garoto, você não me ama, você ama o que proporciono a você, sua esposa e filha, agora é o momento de você assumi-las, cuidar delas, respeitá-las. Sei que Cleide sabe de nós dois e aprova por que também convém a ela. Quanto a mim, vou continuar meus sonhos...
- Você está me ofendendo ! Não sou essa pessoa que você está dizendo...eu te amo !, esbravejou o rapaz defendendo-se.
- Você me ama como ama Nathália, a camareira, e como ama Leonardo, da recepção. Sei que você usa com eles a mesma estratégia, embora comigo o ganho seja maior. Mas se achar que deve investir, Leonardo será o novo gerente. Só acho que ele não merece ser tão usado, enganado e magoado. Agora você pode sair.
- Você disse que me amava, você me usou ! disse levantando-se apontando o dedo e fingindo-se magoado.
- Ambos fingimos, cada qual com um propósito...estamos quites. Pode sair, não gostaria de vê-lo sair carregado pelos seguranças.
No Hotel pululavam votos de sucesso a Belmira. Abraços, beijos e cartões, presentes e lembrancinhas para que não fossem esquecidos. Nos bastidores, no entanto, soavam comentários “ainda bem que ela vai sair”, “agora vai ficar bem”, “não suportava mais ela”, “precisamos de alguém mais exigente, as camareiras não trabalhavam direito” e coisas similares que todos conhecem quando se reúne mais de uma pessoa para fofocar.
O caos estabeleceu-se quando Belmira informou que Leonardo seria o gerente. Diante dele abraços comovidos, sorrisos, votos de sucesso, lágrimas banharam o rosto dos mais dissimulados, depoimentos emocionados se sucederam. No café outras avaliações, que exteriorizavam os reais sentimentos de alguns, apontavam “mas esse viado vai assumir a gerência!”, “um puxa-saco ! só podia ser ele!”, “vocês vão ver o que vai virar isso aqui!”,”o certo era Alzira ser a gerente!”.
O fato é que Belmira saiu em férias, rumo a Paris, depois Zurique, Roma, enfim faria uma turnê pela Europa antes de ocupar seu novo cargo. O aprendizado das línguas e demais cursos a ajudara muito. Aproveitaria para conhecer a filial do Hotel que estava sendo instalada em Londres. Esse era seu mais novo desejo.
Em um café em Paris, distraída, não viu aproximar-se Aimée. De calças jeans e camiseta, de uns quarenta e poucos anos.
- Sozinha? Posso apresentar-me?
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