Niara deixou a cozinha apressada, mal limpando as mãos no avental e abandonando os legumes que começavam a ser picados. A grande cozinha demonstrava a grandeza da casa da fazenda onde residia o imponente coronel Vasconcelos. Terrível qual urutu cruzeiro embrenhada na moita. Senhor de muitos escravos e que dominava todo sertão de São Paulo, temido, era quem dava a última palavra em tudo. Decidia sobre a vida e a morte, o caminho de cada um. Casado com Dona Hermelinda Carolina Salto Couto e Silva, não melhor que ele, sanguinária, prazerosa em chibatar os negros até ver o solo banhado de sangue, o que fazia com ardor e um sorriso rasgado no canto dos lábios.
O coronel só se rendia aos encantos da negra Niara, que atendia pelo nome de Maria da Conceição, batizada pela própria Hermelinda, comprada no mercado e escolhida a dedo. Iria cozinhar para a sinhá, responsabilizar-se pelos afazeres da casa e atender os desejos insaciáveis de Vasconcelos.
A moça, trêmula e inquieta, adentrou a senzala apreensiva, mordendo o indicador, como sinal de que algo não caminhava bem. Precisava falar com alguém de confiança e essa pessoa somente podia ser o velho Adebayo, nome esse proibido por ali e rapidamente substituído para Joaquim. Joaquim era um preto velho que caíra nas graças de Hermelinda após cuidar de uma febre que a consumia utilizando-se de um chá que ministrava periodicamente e orações que fazia aos pés da cama para Nossa Senhora da Conceição. Agora gozava de certa liberdade, transitando pela casa e livre de serviços pesados.
- Meu pai, a benção!, rogou a moça constrita.
- Nosso Senhor lhe abençoe!, resmungou o velho levantando a cabeça e saindo de sua concentração.
- Preciso de ajuda, meu pai! Acho que vou ter uma criança! Filho do Coronel! Se Dona Hermelinda souber serei morta... , revelou desesperada.
Joaquim silenciou como se desaparecesse entre seus pensamentos. Pediu que ela se aproximasse, após um vácuo que encheu Maria da Conceição de ansiedade, e disse para sentar-se num toco já antigo e danificado. Enfiou a mão no bolso do paletó surrado de onde retirou alguns cauris e recitando palavras incompreensíveis que trazia da terra de seus antepassados, lançou-os no chão de terra batida. Jogou várias vezes, como se quisesse adentrar ainda mais no destino daquela mulher e da criança que despontava em seu útero. Por fim, deu um sorriso que pareceu triste e longínquo.
- Espere o sofrimento, minha filha. Serão dias de dor, de fuga, de tropeços e lágrimas, incertezas e dúvidas. Mas confie, os orixás vão guiá-la até onde você e o menino poderão crescer e ele brilhará como o sol vencendo a morte.
Hermelinda tivera com Vasconcelos apenas quatro filhas e temia o nascimento de um menino, o que seria com certeza a paixão de seu marido. Por essa razão tratava de extinguir toda e qualquer cria que tivesse com as escravas.
As palavras do velho homem foram proféticas. Sagaz, Hermelinda logo percebeu que algo acontecia com a jovem escrava e passou a humilhá-la de todas as formas, fazendo a lavar várias vezes a mesma louça acusando ter detectado sujeiras, refazer a arrumação de camas ou lustrar móveis. À medida que se percebia a barriga da moça arredondar-se mais abusos sofria, inclusive sendo levada ao açoite. Certa noite a alucinada senhora levou-lhe um chá para beber para fazer descer a criança. Maria da Conceição foi obrigada a engolir a amarga poção.
Naquela noite a moça sonhou que caminhava pela areia branca da praia. Estava só e o mar era só dela. O ruído do mar a fazia sorrir e brincar correndo pelas ondas. Sentiu então uma terrível dor no ventre, temeu pela criança. Clamou a Deus para que não perdesse seu filho.
As águas do mar agitaram-se e Iemanjá emergiu soberana rodeada de muitos peixes. Tinha os seios fartos e olhar penetrante, trazia ricos colares de conchas e pérolas, num manto de escamas multicoloridas. Aproximou a mão do ventre da moça e disse: “Ele viverá, será difícil, mas ele viverá. Acorde agora e fuja!”
Maria da Conceição despertou atordoada, levantou-se e embrenhou-se na mata rumo a qualquer lugar que fosse. Andou a noite toda até cair exausta junto a um morro que formava uma reentrância que a protegeria temporariamente.
Logo um grupo de homens saíra para procurá-la. Hermelinda queria apenas o corpo da escrava. Deveriam trazê-la morta após a terem feito sofrer todos os terrores que um ser humano pudesse suportar.
Não demorou a que se ouvisse as vozes e xingamentos dos rudes capatazes derrubando a mata e criando passagens. Assustada e temendo ser encontrada, Maria da Conceição saiu às pressas arranhando-se nos cipoais, urtigas e outras plantas da mata selvagem. De repente uma mão agarrou-lhe os ombros, fazendo-a gritar. Olhou aterrorizada e deparou-se com Ossayn abrindo um caminho entre as folhagens e levando-a, mudo e introspectivo, para onde não pudesse ser vista. Logo os homens passaram em algazarra, tecendo ameaças a ela.
Solitária caminhou pela mata alimentando-se de frutos que encontrava. Chegou a um pequeno povoado de negros fugidos que a acolheram. Eram quatro casas de pau a pique mergulhadas na floresta, próximas a uma bela cachoeira. Foi na beira dela, sob os cânticos a Oxum, que o menino nasceu e anunciou sua chegada ao mundo. Recebeu o nome de Simbovala.
O menino cresceu forte e, rapidamente, corria por entre as casas e era o tesouro maior daquela gente simples.
Certa tarde, a pequena aldeia mostrou-se tumultuada. Abeeku, um jovem, fora picado por uma cobra. O rapaz sofria terrivelmente, se contorcendo e exibindo o hematoma inchado em seu pé direito. À medida que adentrava a noite aumentava a sudorese e os vômitos, revelando a situação dolorosa vivenciada. Os ungüentos e beberagens oferecidas pelos anciãos não mostravam reação. Todos lamentavam o ocorrido.
Simbovala o tinha como uma referência. Praticamente o adotara como seu pai, saindo para caçar com ele e o acompanhava em tudo o que podia. Chegou-se ao leito de palha onde o jovem delirava. Uma lágrima rolou de seus olhos de ônix. Ajoelhou-se e beijou a ferida, olhando-o profundamente. Algumas vezes o silêncio diz muito mais coisas. O seu olhar e seu silêncio tinham o poder de uma oração, de uma declaração de amor, carinho, respeito e desejo de que sobrevivesse.
Na manhã seguinte a febre havia diminuído e alguns dias corria pela floresta com seu pequeno filho. A aldeia passou a respeitar o menino como uma divindade.
Foi o próprio Abeeku que trouxe a notícia de que um grupo de homens armados se aproximava da aldeia, já haviam incendiado outras e matado todos os seus moradores. Deveriam refugiar-se na floresta. A aldeia foi devastada. Todos, porém, foram salvos. No entanto, dispersaram-se.
Abeeku, Maria da Conceição e Simbovala seguiram pela mata até a proximidade de uma fazenda. Ficaram receosos, uma vez que já haviam sofrido nas mãos de um senhor de engenho. Acomodaram-se entre as raízes de um imenso flamboyant e acabaram adormecendo, apenas despertados por uma senhora rodeada de capatazes.
- Venham comigo, é perigoso permanecerem aqui..., disse a mulher demonstrando clara preocupação.
Tratava-se de Dona Merenciana do Castro Monteiro e Lima, senhora daquelas terras e que após o falecimento do marido dirigia toda a propriedade com força e coragem. Tinha um imenso coração. Acolheu os três com extremo carinho dando-lhes roupas novas e comida, propondo que permanecessem ali com ela.
Era um conto de fadas que se realizava. Abeeku recebeu o nome de Francisco e Simbovala foi batizado como Bernardino.
Anos se passaram e o menino cresceu auxiliando na fazenda, com despojamento e alegria. Não era possível vê-lo triste. Cuidava de tudo e todos, curava animais com ervas e benzimentos. Quando indagado sobre onde aprendia tais coisas ele logo informava “Nosso Sinhô que me insina”.
Maria da Conceição apaixonou-se por Francisco e logo um novo filho se formava em seu ventre. Já era o terceiro.
Bernardino dormia profundamente quando recebeu um chacoalhão que o fez despertar num salto. Diante de si havia um homem coberto de palha. O homem apontou-lhe a casa grande, indicando para que se apressasse. Entrou na casa como que teleguiado. Entrou no quarto da senhora e a viu com as mãos no peito, com dificuldades para respirar, tentando puxar o ar, até cair inconsciente. O jovem colocou as mãos na cabeça da senhora, em profunda prece, depositando-a na cama.
Heitor, filho de Merenciana, odiava Bernardino, embora sem razões para isso, constituindo apenas desprezível ciúmes por ver a mãe manifestando tanto apreço ao rapaz. A entrada de Bernardino no quarto da senhora em alta madrugada e encontrá-la morta pela manhã foi motivo suficiente para espalhar que Bernardino a matara. Foi açoitado e permaneceu vários dias sob o sol causticante. Heitor tornara-se terrível algoz.
A placidez de Bernardino ainda mais o irritava. O tronco e o vira-mundo, as algemas, cepo e peia, as máscaras de flandres, os anjinhos, o bacalhau e a palmatória passaram a ser companheiros do escravo. Em suas sessões de tortura, públicas, Heitor exigia que todos aplaudissem enquanto se extasiava em suas barbaridades.
Enquanto sofria, Bernardino orava. Pedia a Deus pela alma de Heitor. Essa afronta fez com que o herdeiro da fazenda preparasse uma vingança ainda mais cruel. Estamparia o nome “Heitor” com ferro e brasa nas costas do negro. A data seria na noite de São João, quando outros senhores e senhoras se reuniriam na fazenda para as comemorações do santo.
Os escravos imploravam que Bernardino fugisse, mas resignado subiu ao morro para orar. Mergulhou em seu costumeiro silêncio. Acordou assustado com um golpe como se tivessem rachado a rocha. Diante de si vislumbrou a altiva figura de Xangô. Surgiu e despareceu como um raio. Entendeu que deveria seguir seu destino.
Seguiu a estrada de terra sem saber para onde ir. A noite ia alta e alua cheia iluminava como o sol. Em uma encruzilhada deparou-se com Exu. Apresentava-se com estiloso fraque, cartola e fumava demoradamente um charuto de odor doce e atrativo.
- Salve!, saudou Bernardino entendendo tratar-se de um ser espiritual.
- Salve, Bernardino ! Demorou pra chegar! Vai reto nesse caminho, lá em frente fica a Vila de São Sebastião dos Coqueiros, é lá que tu vai se firmar. Lá vamos construir um terreiro. Vou estar na tua frente. Não tema nada..., disse entre gargalhadas o homem.
No caminho encontrou um homem ao lado de um cavalo deitado no chão.
- Bom dia, o que aconteceu, senhor?, disse Bernardino sempre buscando ajudar.
- Bom dia, não sei, de repente caiu e está respirando forte..., disse o homem intrigado.
- Ele está envenenado, comeu o que não devia...peço que aguarde e vou curá-lo, assim falando adentrou a mata voltando algum tempo depois.
Colheu água na mina da margem da estrada e preparou uma beberagem.
- Ficará bom!, definiu com extrema convicção.
Foram derramando a beberagem na boca do cavalo até que ele ergueu-se vacilante.
O homem o convidou a acompanhá-lo e o empregou. Precisava de alguém que cuidasse do sítio. Tornaram-se amigos.
As estórias de Bernardino começaram a correr pela Vila. Ora um benzimento contra o cobreiro, outro para erisipela, torcedura, icterícia e logo pela manhã já se formava fila diante do barraco do negro.
Mendonça dispensou-o do trabalho para que cuidasse das pessoas e doou-lhe o pedaço de terra para o que desejasse. A popularidade crescia.
Estava sentado, em uma noite quieta diante da fogueira, quando viu aproximar-se o Exu que se apresentara na encruzilhada. Apresentou-se como Exu Rei das Sete Encruzilhadas. Falou-lhe sobre os fundamentos do terreiro que deveria abrir e apontou-lhe outros guias que trabalhariam ali: Caboclo Pena Branca, Pai Joaquim de Angola, entre outros. No dia seguinte, oito horas da noite ele receberia em seu corpo o Caboclo Pena Branca para fundação do terreiro.
No outro dia, no horário marcado um grupo imenso de pessoas aguardavam. O Caboclo Pena Branca deu as boas vindas e começou atender as pessoas. Entre elas algumas começaram a receber seus guias, posteriormente fazendo parte do terreiro.
As paredes se ergueram, os atabaques começaram a tocar. Não havia dia ou hora, Bernardino acolhia os sofredores, mesmo que para ouvi-los. Penalizava-se com a dor dos outros e desejava imensamente que todos fossem felizes e saudáveis.
Em pouco tempo surgiram problemas, em especial promovidos pelo pároco local, Padre Honório do Menino Jesus. O padre, utilizando-se de suas influências, resolveu “dar um susto” no curandeiro.
A sessão estava para começar quando Pai Bernardino, como passou a ser chamado, anunciou que o Caboclo Pena Branca queria que se reunissem na mata. Assim, todos se retiraram do terreiro.
Quando retornaram depararam-se com a devastação produzida pelos policiais. Enraivecidos por não encontrarem ninguém, destruíram imagens, bancos e decorações. A ocorrência uniu mais os fiéis que se mobilizaram para reconstruir o terreiro.
Vendo que não atingira seus objetivos, Padre Honório buscou outra alternativa: pagou uma mulher para dizer que seu filho morrera após passar pelas mãos do “feiticeiro”. A denúncia levou Pai Bernardino para a prisão. Ali permaneceu em oração.
Na madrugada a mulher despertou diante da figura do homem coberto de palha que lhe tocou o rosto e desapareceu. Ao amanhecer estava repleta de ulcerações, crostas e secreções purulentas na face. Aos poucos as lesões foram se estendendo para todo corpo. Desesperada procurou o padre que não só recusou-se recebê-la como ordenou enxotá-la dali. Sem auxílio, definhou até a morte.
Por influência de autoridades, Pai Bernardino foi libertado, ainda retornando à prisão várias vezes em razão das articulações do padre.
Cada vez que retornava havia festa com todos vestidos de branco, muitas palmas, lírios e copos de leite. Cada vez que saía da prisão uma chuva fina caía sobre a cidade. Cada vez que saía da prisão mais pessoas o procuravam e eram curadas ou tinham seus problemas resolvidos de maneira quase mágica.
Antes de iniciar a sessão acendia uma vela aos pés da aroeira que havia do lado de fora do terreiro e pedia proteção. Durante as tardes era ali que estava sentado, em seu banco tosco, fumando seu cachimbo e abençoando a todos.
Foi numa dessas tardes, com o tempo nublado e nuvens carregadas circundando a cidade, que um tumulto na frente do terreiro chamou-lhe a atenção.
Dona Jandira, ajudante do terreiro, e que também o apoiava em suas necessidades, chegou esbaforida:
- Corre, Pai, que estão trazendo o padre !
O velho levantou-se vagarosamente, pitando seu cachimbo, como se já esperasse o momento. Diante do portão uma charrete com o padre e o sacristão. O padre não estava falando coisa com coisa, visivelmente perturbado. Ao avistar Pai Bernardino começou a gritar:
- É ele, é ele, o demônio que quer me pegar! Valha-me Deus, Nossa Senhora, me tirem desse lugar!
Pai Bernardino virou-se de costas e pediu que o seguissem, adentrou o terreiro, foi até o altar, ajoelhou-se, rezou, permanecendo em silêncio por longo tempo. Enquanto isso o padre praguejava e insultava a todos. De repente, o velho voltou e colocou a mão na cabeça do padre, altamente concentrado e “puxou” a entidade que o perturbava.
Padre Honório despertou do transe assustado, olhando dos lados, sem saber onde estava e ao avistar Pai Bernardino procurou recompor-se simulando desprezo e altivez.
- Já está bom, padre... mas é bom se cuidar !, resmungou o velho com sorriso irônico.
Antes que o padre saísse, continuou:
-... e, olha padre, deixe as crianças em paz...
O padre empinou-se, subindo na charrete sem olhar para trás. Desde esse dia nunca mais perturbou o preto velho.
Várias foram as curas realizadas por ele. Morreu aos 109 anos e até hoje, passado tanto tempo, ainda podemos encontrar inúmeras placas em seu túmulo agradecendo as graças recebidas.
†††
Desolada, Ana Cristina caminha pelo cemitério. O crepúsculo se aproxima. Caminha absorta em seus pensamentos e ali está para acostumar-se com o local. Estava desenganada pelos médicos, a morte era questão de dias contados.
Triste, sentou-se em um túmulo, refletindo sobre a própria vida, e não resistindo entregou-se a um choro convulsivo. Sentiu uma mão delicada em seu ombro.
- Por que choras, minha filha?, disse o velho, olhando-a com ternura.
- Minha vida acabou, chegou ao fim, nada mais o que fazer..., disse irrefletidamente olhando o homem com os olhos nublados de lágrimas.
- Tenha fé, minha filha, amanhã não haverá mais nada...complementou o homem.
Concentrada em sua dor, pensou “realmente, amanhã não haverá mais nada”, sem aperceber-se que estava novamente sozinha.
O dia amanheceu de um azul límpido, sentia-se ótima, cheia de energia. Uma estranha felicidade a tomara por completo e não sentia mais dores. No terceiro dia, sentindo-se vigorosa, retornou ao médico. Exames, novos exames e uma exclamação duvidosa: “Você não tem mais nada!”. Estava curada.
Grata e feliz retornou ao cemitério, certamente aquele homem trabalhava ali e precisava encontrá-lo, agradecê-lo. Perguntou sobre ele a algumas pessoas que encontrou ali e ninguém conhecia a descrição. Voltou ao túmulo onde esteve sentada. Na placa: Bernardino. Juntamente com vários agradecimentos.
Mais uma vez ele retornara para fazer o bem.
Eu amei tudo isso pois sou filha de xango..salve meu pai...
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