Sentado na varanda arborizada de minha chácara, enquanto esfumaceio o meu cachimbo regado com fumo e alfazema, admiro os cedros, ipês e jacarandás, entre tantas outras árvores já centenárias que rodeiam a casa. Para alguns se trata apenas de madeira, madeira de lei, algumas que tem se tornado raras, mas para mim são seres que fazem parte de minha história. Bodoque, meu fiel amigo, tão velho quanto eu está estirado no cimento gelado buscando aliviar-se da melhor forma do calor insuportável que parece crescer a cada ano. Somente no final da tarde uma brisa mais carinhosa e refrescante percorre a região dando-nos uma sensação de serenidade, untada com os odores da mata e do riacho não muito distante.
É possível sentir também o cheiro bom da comida, provavelmente uma sopa com muitos legumes, que religiosamente Cosma e Damiana, minhas irmãs, preparam com imenso carinho como se fosse a primeira vez que a fizessem. Assim são elas pulando da cama por volta das cinco da manhã, cortam lenha, preparam o fogo, fazem pão, escolhem o arroz e o feijão, colhem brotos de abóbora para a cambuquira, recolhem ovos, em dias especiais matam uma galinha gorda para festejar.
Sou o mais velho, Cosma e Damiana vieram logo depois juntas, gêmeas univitelinas, após elas Carlito e Celina que não resistiram, também não resistiu nossa mãe, Linda. Linda era linda mesmo, com cabelos castanhos muito escuros encaracolados até abaixo dos ombros. Foi cedo. Era boa demais, como dizem! Ficou meu pai, Zeferino, que talvez por ser um pouco ruim tivesse que ficar mais tempo. E ficando mais tempo não queria ficar sozinho. Casou-se com Yacê. Dona Yaya como ficou sendo conhecida. Índia que diziam ter sido caçada no laço. Tinha a doçura do mel e a picada da vespa. Contava-nos muitas estórias que trazia de seus ancestrais, em especial nas noites de lua cheia deitávamos aos pés dela na escadinha da varanda, esticados na terra, para ouvir suas cantigas e lendas. Assim nossa infância se fez permear de um constante enfrentar a dureza da roça e viajar por mundos intangíveis, onde somente a imaginação pode cavalgar.
Foi com Yacê que aprendemos a utilizar da terra o necessário e respeitá-la, respeitar todos os seres que a habitam. Dizia sempre que não morreria que estava encantada. De forma enigmática, passados cinco anos da morte de meu pai, ela entrou na mata e por mais que a procurássemos nunca foi encontrada. Ficávamos olhando o céu, no movimento dos urubus, sinalizando algum ser em decomposição. Nossas buscas nos levavam a uma vaca ou cavalo morto, um cachorro ou uma raposa, mas nenhum vestígio daquela adorável anciã, que caminhava já curvada, lenta e insegura de seus passos. Cosma diz vê-la pela casa. Damiana disse várias vezes tê-la ouvido. Eu nada percebo, nem uma brisa mais gelada que pudesse associar a uma carícia sua.
Com Yacê aprendemos a admirar dois amigos guerreiros. Purá e Murá. Dois homens solitários que não envelhecem e nem morrem. Talvez até por essa razão tenha me mantido solteiro. Ainda na infância conheci Jandiro, que morava no sítio ao lado. Uma amizade brilhante se estampou rapidamente. Jandiro tinha uma vida difícil, apanhava muito do pai, em especial quando decidia beber uma branquinha a mais. Aparecia surrado, com vergões, cicatrizes, hematomas. Diferente de meu pai, Antenor não quis se casar. A mãe de Jandiro, Concheta, abandonou Antenor e foi embora com o capataz. Levou consigo um pequeno baú com jóias da família de Antenor e moedas de ouro que ele guardava. Assim, descontava as mágoas em Jandiro.
Com Jandiro vivemos momentos dos mais fascinantes e dos mais aterrorizantes. Vasculhávamos a mata, nadávamos nos rios, caçávamos passarinhos, também o consolava nos momentos de dor. Juntos descobrimos o mundo, a nós mesmos, nossos corpos, os prazeres e os temores. O pior dia foi quando Yacê derramou muitas lágrimas após uma conversa com meu pai. Antenor, descontrolado pela bebida, havia estrangulado o filho. Estava preso e o menino sendo velado na casa. Fui levado até ele, apesar de minha resistência, diziam que eu devia vê-lo para que ambos pudéssemos viver em paz. Estava desfigurado. Sua imagem nunca mais saiu da minha cabeça. O caixão com um fundo roxo, um véu roxo, várias flores onde se destacava uma que chamam de “coração roxo”. Até hoje a cultivo ao redor da casa e tornou-se um elo entre nós dois, onde a vejo imediatamente revive a figura alegre, companheira e frágil de Jandiro.
Yacê contava que Purá esculpiu os homens em madeira e deu-lhes vida. Mas os homens não souberam respeitar uns aos outros e atenderem as ordens supremas de amor e, então, decidiu dar-lhes uma lição que pudesse mostrar sua fragilidade. Lançou fogo dos céus e o fogo consumiu a maioria dos homens. Assim esperava que o homem percebesse que não é superior a árvore, nem ao macaco, nem ao besouro, nem ao seu próprio semelhante. Todos queimam, todos podem morrer. Meu pai sempre advertia, com a Bíblia em punho, condenando Yacê por falar em deuses falsos, mas sem perceber lia trechos como “De sua boca saem tochas, faíscas de fogo saltam dela” (Jó 41:19) ou “por que nosso Deus é um fogo consumidor” (Hebreus 12:29). Justificava que Deus censurou a humanidade com água, através do dilúvio e não com fogo. Jandiro e eu nos entreolhávamos cúmplices esperando a próxima frase e ela vinha “subiu fumaça de suas narinas, e da sua boca um fogo devorador, carvões se incendiaram dele” (2 Samuel 22:9). Nessas imagens víamos a fúria de Purá. Purá era bem mais próximo para nós, presente na figura de nossa mãe Yacê.
O fogo sempre cativou o homem e foi associado a Deus. No Bhagavad Gita há um trecho que diz: “Eu sou a oblação, o sacrifício, a oferenda aos antepassados, a erva bendita, o hino sagrado, a manteiga purificada, o fogo e também a vítima consumida em holocausto.” Muito similar ao que encontramos no Antigo Testamento e nas crenças erroneamente classificadas como primitivas. Em geral as religiões de cultura oral são consideradas sem fundamento, fruto da ignorância. Por essa razão, passei longo tempo de minha vida estudando-as. Uma curiosa espiral que nos leva a um constante encontro com a mesma verdade. Apenas quem tem maior poder econômico e maior acesso a mídia acaba se mostrando como exclusiva verdade. Além de antigas maneiras de impor, bastando um pouco de dedicação a um estudo sério para compreender.
Talvez por essa razão, Purá reserva outro momento purificador para a humanidade, novamente o fogo consumindo o homem. “E a morte e o inferno foram lançados no lago de fogo. Esta é a segunda morte”. (Apocalipse 20:14).
O fogo tradicionalmente purifica, transforma. Purá espera que o homem se transforme, mude suas maneiras de agir perante si mesmo, perante toda manifestação de vida, perante a espiritualidade. Seja verdadeiro consigo mesmo, sinta sua essência, sua alma. E isso nada tem a ver com conceitos de auto-ajuda, mas de perceber a magnífica teia em que vive e que é impossível tocar uma das cordas sem que tudo vibre. Vibre nesse mundo e no mundo de nossos ancestrais.
“E formou o senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente.” (Gênesis 2:7). Seja feito do pó da terra ou da madeira das árvores o homem é um elemento da natureza, filho dela, filho da terra e filho das árvores. Digo isso sentindo o delicioso odor que vem dos eucaliptos.
Agora devo me deter em minhas reflexões. Damiana me chama para saborear a fumegante sopa. E esse momento eu não posso perder.
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