- Pegue uma sirigüela pra mim ?! – insinuou Hanna, fazendo trejeitos simuladamente tímidos ao rapazinho que se equilibrava entre os galhos da frondosa árvore salpicada de frutos maduros.
Hanna era uma bela garota de cabelos dourados e repletos de cachinhos cintilantes ao incidir do sol. Sua mãe, Nancy, dizia que ela era “cheia de nove horas”, sempre fora extremamente mimada pelo pai. Uma menina após uma sequência de cinco homens foi tudo o que Antenor esperava. “É um anjo !”, classificava ele, realizando todos os caprichos e desejos, como humilde serviçal. O que não esperava era encontrar uma surucucu enquanto capinava. Na fazenda distante e sem recursos, quando chegou ao hospital na cidadezinha mais próxima já era tarde. Para todos a morte de Antenor foi um choque, para Hanna uma fatalidade, uma cicatriz que a acompanharia pelo resto da vida.
A menina tornara-se caprichosa, cheia de dengos, muitas vezes antipática e mandona, malcriada com a mãe e irmãos ou qualquer outra pessoa que não a colocasse no pedestal em que se acostumara estar. O único que parecia substituir o pai falecido era Anibal, Anibalzinho como era chamado, um ser devotado à menina. Era capaz de ficar horas apenas fitando a beleza da amiga, em sua inocência e puro sentimento.
Mas a morte de Antenor também promoveu uma terrível comoção em Daniel, o filho mais novo dentre os homens. Seu espírito atordoado passou de um asco e ódio incontido pelas cobras a uma adoração fiel e comprometida, assumindo as mesmas a posição de divindade. Não demorou para que mantivesse em uma caixinha de madeira, envolvida em um tecido negro, a cabeça de uma serpente. Tratava-a como uma relíquia sagrada.
O tempo passou rápido, dando corpo àquelas crianças franzinas e tornando-as adolescentes vigorosos. Logo no início da puberdade Hanna e Anibalzinho já estavam ensaiando um namorico, sem muita consciência do que aquilo significava. Gostavam um do outro, eram cúmplices. E as coisas caminharam felizes até o dia em que uma família mudou-se para um sítio ao lado. No grupo familiar estava Flávia. Flávia tinha um perfil mouro, de olhar profundo e cativante, sorriso enigmático e aos poucos desencadeou avassaladora paixão de Anibalzinho, que inconscientemente foi abandonando o convívio com Hanna.
Esse comportamento do rapaz patrocinou a ira incontida de Hanna. Um arsenal de humilhações foram reservados para ele. A todo momento e nas menores oportunidades, Hanna sabia com extrema habilidade feri-lo, magoá-lo e desprezá-lo. Algumas vezes a postura da menina arrancava sentimentos de comiseração dos ouvintes, mas não conseguiam censurá-la, pois tinha sempre na ponta da língua uma resposta calculada para calar seu interlocutor.
Em suas maquinações criava estórias e induzia as pessoas a se separarem do rapaz, com malícia, maldade e sagacidade sem precedentes. Em momentos mais críticos defendia-se com lágrimas, postando-se como vítima de um rapaz que a usou e agora estava com outra. Anibalzinho era apenas um rapaz sem coração, sem escrúpulos, que a machucara e continuava ferindo desfilando de mãos dadas com sua próxima vítima pelos pastos. Articulou a criação da imagem de uma prostituta a sua concorrente, que nem imaginava à princípio que fosse.
Hanna, contudo, encontrara em Flávia uma personalidade não menos feroz, que não se abaixava ao menosprezo, respondendo com sorriso irônico e um olhar que feria mais que qualquer adaga. A fúria de Hanna explodiu quando após várias indiretas ofensivas a Flávia, recebeu como resposta um tremendo tapa no rosto, deixando em sua pele alva os dedos vermelhos da moura.
O entardecer traria ainda mais vigor ao seu ódio. Anibalzinho e Flávia ficariam noivos.
Buscou o aconchego e amparo de sua mãe Nancy. A mãe vivia visitando videntes, cartomantes e quaisquer outras pessoas que pudessem “ler sua sorte” e dessa forma conhecia muitas pessoas que seriam capazes de interferir naquele relacionamento e devolver o moço a sua filha. Dentre as pessoas conhecidas estava uma cigana de nome Mira, diziam ser terrível em seus vaticínios e conseguia fazer uma jaqueira encher-se de jabuticabas, andava sobre as brasas e domava serpentes. Não havia o que não conseguisse. Por essa razão, as pessoas nutriam por ela temor e respeito.
Nancy e Hanna chegaram a casa da cigana ao final da tarde e uma lua já se erguia no céu. Sentaram-se diante da mulher. Hanna parou um instante analisando os movimentos e fisionomia daquela mulher. De rosto quadrado e nariz adunco, queixo proeminente, uma pele parecendo envernizada e próxima ao caramelo, cabelos desalinhados com abundância de fios brancos, chegando quase até a cintura. As unhas eram grandes e bem feitas. Toda beleza dela parecia concentrar-se nas mãos. Dispôs as cartas após conhecer o nome e as intenções da consulente.
- Você deseja muito um rapaz, disse reticente. Já tiveram um namoro e agora ele está engraçado com outra mulher. Está seduzido, encantado por ela. Ela é uma feiticeira, mas ainda não descobriu seus talentos...
- Não quero saber dessa desgraçada, quero saber dele, dele e de mim...quero ele para mim, interferiu Hanna visivelmente descontrolada.
- Cale-se, menina, cale-se e ouça. Para destruir um inimigo é preciso conhecê-lo e conhecê-lo tão bem, tão mais que ele próprio de maneira a utilizar seus dons e fraquezas contra ele próprio. É preciso conhecer o terreno onde se pisa se não quiser parar no fundo de um poço desavisadamente. As cartas mostram que ele não será seu.
- Mas estou aqui para que ele seja meu, faço o que a senhora quiser para que ele não fique com essa mulher. Ou ele fica comigo ou não fica com ninguém...determinou Hanna com convicção.
- O que você pede é muito perigoso, menina, e pode ter muitas conseqüências. Está certa do que deseja? , indagou maliciosa Mira, olhando-a profundamente enquanto segurava o queixo com os dedos indicador e polegar.
- É isso que eu desejo: ou comigo ou com ninguém... reafirmou Hanna.
- Farei o que deseja, mas o preço pode ser muito alto...comentou a cigana levantando-se de súbito e pegando um punhal, me dê sua mão esquerda.
Mira cantarolou algo em língua estranha, acariciou a mão suave de Hanna, passou-lhe um perfume extremamente doce percorrendo a linha da vida e olhando tão profundamente que parecia conseguir ver cada momento que o futuro reservava. Repentinamente o punhal teceu um leve corte na mão da moça, fazendo o sangue escorrer e ser colhido em uma taça de bronze, repleta de símbolos cuidadosamente talhados.
- Lembre-se de suas palavras: “ou ele será seu ou de ninguém”, alertou Mira.
- Como posso ter certeza disso ?, questionou Hanna.
- Vendo com os seus próprios olhos...agora me dê o dinheiro, complementou a cigana.
Nesse ínterim, Daniel havia conhecido Odália e estavam namorando seriamente. Namorando em casa. Mostrava-se feliz. Odália era trabalhadora e desde cedo ajudava a mãe lavando roupas, passando e aos poucos foi conquistando seus próprios clientes. Era bastante simples, carinhosa e sonhava ter muitos filhos.
A alegria do irmão incomodava Hanna que passou a desferir-lhe alguns golpes através de sua língua ferina.
Dos outros irmãos Adamastor casou-se e foi embora com a esposa, pretendia trabalhar na empresa de confecções do sogro em outro Estado, Zeferino também se casou partindo para outra cidade. Gabriel queria conhecer o mundo, um dia saiu de casa de malas prontas e nunca mais voltou. Querubin vivia embriagado, passando a vida em jogos e prostituição. Era um bom homem, de coração imenso, mas perdera-se na bebida e na farra com as mulheres. Nancy anunciava que haviam feito um trabalho contra ele, talvez uma das mulheres com quem saía. Por essa razão, percorria muitas pessoas no desejo de salvar o filho daquele mal.
Anibalzinho estava cada dia mais apaixonado por Flávia. A noite de lua cheia propiciava um passeio. Em seu cavalo, Atro, passou pela casa de sua noiva e partiram pela estrada. Era muito habilidoso. Conhecia aquele lugar com a palma de sua mão e Atro estava com ele desde que era um potro. Conversavam, sorrindo e admirando a beleza da noite quando o cavalo se assustou lançando-os no chão. Flávia caiu sobre uma moita de capim-colchão e Anibalzinho próximo a uma valeta. Embora atordoada, Flávia levantou-se, cambaleando, e foi até o noivo que permanecia imóvel, talvez desmaiado. Chamou-o em vão, chacoalhou o corpo, gritou desesperada. Em suas mãos banhadas de sangue, viu que ele havia batido a cabeça em uma pedra. Estava morto.
Hanna recebeu a notícia quase que paralisada. Furiosa dirigiu-se a casa de Mira. Frustrando-se ao ser informada pela vizinha que a cigana havia se mudado dali há meses e desconhecia para onde fora. Uivou aos céus amaldiçoando a cigana, a vida e todos os seres viventes. Havia, contudo, uma ponta de felicidade que não conseguia disfarçar: Flávia não se casaria com Anibalzinho.
O dia do casamento de Daniel e Odália chegou após muitas economias e preparativos. Havia construído uma casinha modesta para morarem com o trabalho intenso de ambos, renunciando a tudo e guardando moeda a moeda para realizarem seu sonho.
Na igreja Hanna conheceu o filho de um dos clientes de Odália, Gervão. Apesar do nome era rico o suficiente para chamar a atenção da moça. A sedução e o corre-corre de Nancy atrás de pessoas que pudessem amarrar aquele homem, garantiram que meses após novo casamento se concretizasse.
Odália e Daniel tiveram três filhos: Aleomar, Eunice e Antônio. A família humilde mostrava-se muito feliz. Mas o destino tinha outros planos. Enquanto arrumava o rancho das galinhas uma viga que o sustentava despencou sobre ela. O golpe no crânio foi fatal.
O mundo perdeu-se para Daniel. Odália era o seu sustentáculo, sua felicidade, sua razão de viver. Passou muitas horas amuado em um canto, agachado, com a cabeça entre os joelhos, entre lágrimas.
Na madrugada para velar o corpo tinha ele, Nancy e os seus filhos. Pediu que Nancy levasse as crianças para a casa dela, após muitas recusas, acabou concordando que era melhor as crianças descansarem.
Vendo-se a sós com sua esposa, tomou-a nos braços e dirigiu-se a sua casa. Colocou-a na cama, cobriu-a como se estivesse dormindo. Deitou-se ao seu lado placidamente e adormeceu. Despertou com fortes batidas na porta. Eram várias pessoas, o padre e um policial. Foram resgatar o corpo e enterrar a falecida. Muitos homens precisaram se juntar para segurar Daniel. E lá foi novamente o féretro, agora diretamente para o cemitério.
Odália foi sepultada, mas foi novamente resgatada pelo marido e levada para a cama do casal.
Dessa vez, Daniel foi preso e a mulher novamente enterrada. O guarda do cemitério foi avisado para se manter atento e impedir que a sepultura fosse violada.
Três dias depois Daniel foi solto. Em sua cama o esperava o corpo de Odália.
Foi Nancy que quase desfaleceu ao levar o almoço para ele e ao adentrar o quarto para organizá-lo deparou-se com a morta na cama.
A dúvida em toda a cidade foi como isso teria ocorrido, pois o túmulo estava lacrado e não demonstrava qualquer sinal de arrombamento. Foi aberto e a mulher novamente depositada em seu leito final.
Porém, misteriosamente o corpo reaparecia na cama na noite seguinte. E assim foi até a missa de primeiro mês, quando não mais retornou. Diziam que a casa estava assombrada e Daniel orientado a sair de lá, mas recusou-se.
Enquanto isso, os filhos cresciam. Aleomar foi trabalhar na roça, mostrando-se tão esforçado quanto a mãe e o pai. Antônio não gostava de pegar no pesado, cheio de dar ordens, e já que não queria trabalhar foi posto para estudar. E nisso ele se deu bem. Queria ser advogado e passou dedicar-se a isso.
À medida que Eunice se desenvolvia mais se parecia com a mãe. Daniel via Odália em seu olhar, em seus cabelos, em seus trejeitos. Tornou-se o motivo de tudo. Tudo o que fazia era para a filha. A quem passou a chamar “filha de Odália”.
Certa tarde, estando Eunice na casa de sua avó, fez com que Nancy percebesse mudanças físicas na menina. Calou-se em seu desespero. Falou com o filho que sorriu tranqüilizando-a. Seu coração, no entanto, dizia outra coisa. E tanto disse que não demorou para que a barriga aparecesse e fosse levada para o hospital para ter uma criança.
Enquanto Eunice paria, Daniel se enforcava em uma paineira não distante de sua casa. Nascia um menino que foi chamado João.
Na madrugada o menino foi levado por Nancy a um acampamento cigano. Seguiria com eles, como filho deles. Sidra havia perdido o filho em razão de uma infecção e adotava agora o menino como seu. Esse era o preço do casamento e felicidade de Hanna junto a Gervão.
Eunice foi para um convento para viver uma vida de renúncia e oração. Precisava disso. A vida terrena perdera o sentido.
Somos da Editora Novas se precisar da gente estamos a sua disposição.
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