Habitavam eles as fendas e grutas nos sopés das montanhas, um reino temido composto por homens que assemelhavam-se a feras em seus ataques. Sua chegada era prenunciada por um berrante de chifre de bode e ao seu som as aldeias agitavam-se impactadas e tinham a certeza de que seriam dizimadas. Chegavam aos berros, num ruído ensurdecedor que aturdia a todos. Seus corpos vestiam-se apenas com pinturas corporais assustadoras, anunciando terror e sangue. Iam em busca de um objeto preciso: mulheres jovens.
As mulheres escravizadas não podiam fazer parte da comunidade, eram cuidadas à distância, no vale de Agha-Bor. Ali atuariam como as mães dos futuros guerreiros. Seu tempo de vida era curto e estava condicionado a gerar meninos. Gerariam e amamentariam os Mutins, como eram conhecidos. Todos os membros recebiam em seu nome o prefixo Mutim. As mulheres, por sua vez, perdiam o direito ao nome, sendo chamadas genericamente de Elan. Em alguns lugares não era permitido se quer pronunciar seu nome sob pena de atrair desgraças múltiplas. As mulheres que se recusavam ou que não concebiam eram levadas dali para experenciarem os maiores tormentos.
Os Mutins eram formados apenas por homens. Assim que a criança já podia deixar a mãe era levada para a comunidade onde era iniciada nos preceitos do grupo. Apenas aqueles que demonstrassem grande coragem e poder tinham o direito de raptar uma mulher e gerar seu filho. O menino recebia um nome ao nascer e a partir dele acrescentava títulos que se associavam a ele, destacando características pessoais ou ações de destaque.
No grupo haviam aqueles homens consagrados ao Deus Mahu-Chabah, não guerreavam, pintavam o rosto de azul celeste e preparavam os alimentos, teciam, faziam cerâmicas, realizavam as pinturas corporais, sendo inclusive responsáveis pelos prazeres sexuais dos guerreiros. Eram os maús, homens sagrados.
No grupo haviam aqueles homens consagrados ao Deus Mahu-Chabah, não guerreavam, pintavam o rosto de azul celeste e preparavam os alimentos, teciam, faziam cerâmicas, realizavam as pinturas corporais, sendo inclusive responsáveis pelos prazeres sexuais dos guerreiros. Eram os maús, homens sagrados.
Naquele dia em que o céu da tarde se tingia de um rosado sereno, o choro de um bebê anunciou a chegada de mais um membro. A Elan era muito jovem e não resistiu. Mutinja seria cuidado pelo seu pai e uma cabra foi levada a ele para amamentar a criança. O bebê seria cuidado por um maú.
O garoto destacava-se entre os demais pela agilidade, valentia e intuição. Tornou-se o orgulho dos aldeões. No tempo das chuvas demonstrou que adentrava a fase adulta. O ingresso nessa nova fase exigia sacrifícios. A partir dos rituais poderia reunir-se aos homens adultos, com exceção dos anciões que constituíam um grupo fechado e marcaria um novo ciclo de sua existência...caso chegasse até a idade necessária, o que era desafiador. Os perigos rodeavam-nos o tempo todo, animais, os perigos da selva e da montanha, outras tribos, doenças, entre inúmeros outros que poderiam extinguir sua vida a qualquer momento. O próprio rito de iniciação poderia condená-lo a morte.
A noite iniciou-se com danças, algumas cabras assadas e uma bebida alcoólica fermentada a partir de um fruto ácido que emergia nas encostas. Mutinja estava nu, inteiramente pintado em um tom de verde musgo e pintas brancas – a cor dos espíritos. Naquela noite deixaria sua vida de menino para se tornar homem. O velho feiticeiro a todo instante o incensava, batia-lhe ervas pelo corpo, pronunciava palavras incompreensíveis, gritava algo que o fazia tremer embora não pudesse entender o significado de tudo o que estava vivenciando, nem podia imaginar o que o aguardava. A lua estava brilhante e redonda. Bebeu um suco acre de ervas e entrou em transe. Passou a comportar-se como uma siriema, em sons e gestos, cacarejando, enquanto os participantes aclamavam o espírito ali presente, até que caiu em sono profundo.
Despertou em plena escuridão. Chamou, gritou, chorou. Sentia a umidade e o frio adentrar-lhe as carnes. Buscou uma saída, um raio de luz, mas nada apontava onde estava e como deveria sair dali. Tateou pelas trevas sentindo que provavelmente estava dentro de uma gruta. Sentia a água fria correndo pelos seus pés. Não sabia se buscava a saída de onde a água vinha ou para onde ela ia. Procurou sentir o vento, mas o ar parecia estagnado. Buscou sons e encontrou o mais profundo silêncio. Notou morcegos no teto da gruta. Havia uma entrada. Resolveu ir contra a correnteza, escorregando, ferindo-se, caindo em valas. Sentia fome e frio. Horas ou talvez dias se sucederam. No alto avistou raios de sol, como se passasse por uma peneira. Tentou escalar e não obteve qualquer êxito. Apoiando os pés em cada parede começou avançar até encontrar o espinheiro que tapava a abertura.
Arranhões, perfurações e queimaduras produzidas por ervas urticantes. Mutinja venceu a primeira prova. Estava, contudo, sozinho na floresta. Devia levar uma siriema viva para a aldeia. Lembrava-se disso. Sentia-se fraco e o corpo ainda nu parecia ressentir-se da própria brisa da manhã. Precisava se alimentar. Buscou pequenos frutos e larvas. Avançando mais e mais avistou um casal de siriemas. Era sua chance. Criou armadilhas, imitou-os, até que quase mediante a desistência conseguiu capturá-lo.
A questão que se desdobrava era descobrir a localização da aldeia. Precisava ser ágil, a siriema deveria chegar viva.
Sentou-se desalentado aos pés de um jequitibá. Foi quando Ecuzo, o deus das sombras da floresta, apareceu-lhe apontando para sua esquerda. A visão foi repentina e poderia jurar que nada havia visto, porém uma alegria e certeza brotaram férteis em seu interir. Entardecia quando chegou a aldeia sendo saudado por todos com o nome Mutinjupi. Agora era reconhecido como homem.
Tornou-se um guerreiro implacável e tantas foram as vitórias que o velho feiticeiro anunciou que deveria garantir sua existência. Um grupo de oito guerreiros cortou a madrugada rumo a terra de Norh, onde o povo que vivia em palafitas, mantinham virgens que zelavam pela Deusa Anciã, Shabunã. Aquele era o dia da consagração de três meninas a Deusa. Uma delas geraria o seu filho. Espreitara o lugar há meses, conhecera seus hábitos, rotinas e escolhera a Elan.
O fogo se alastrou rapidamente pelo templo de palha. Mutinjupi tinha o seu troféu. Na estrada, contudo, foi surpreendido pela presença da Anciã. Ela soprou-lhe um pó de odor estranho e despareceu da mesma forma com que surgiu, sem ser percebida. Os homens temeram a maldição da deusa, mas o guerreiro sorriu. Nada o fazia recuar.
A moça era de extraordinária beleza. Altiva declarou chamar-se Kadan e jamais aceitaria ser chamada de Elan como todas as outras mulheres escravizadas. Domar a donzela tornou-se a principal meta do destemido guerreiro. E as insensíveis maneiras de domesticação logo a tornaram submissa.
Kadan engravidou e deu a luz a uma menina. Isso era uma desonra para os Mutins. Foram feitos ritos propiciatórios. Mutinjupi foi purificado e deveria permanecer recluso, com o consumo de determinadas ervas até o sacrifício da menina e da mulher. Na gruta, relembrou os momentos vividos com a moça ao mesmo tempo em que se condenava. Nenhum Mutin se apaixonava, mas ele não concebia a ideia de oferecer sua filha e aquela Elan em holocausto. Algo acontecia em seu interior que o impelia defendê-las.
Desafiando todas as regras, planejou a fuga. Deveria ocorrer no dia anterior ao sacrifício quando Kadan seria levada a cachoeira para banhar-se iniciando os ritos de sacrifício.
Com a fúria de uma tempestade, Mutinjupi atacou os guardiães da moça, desencadeando uma luta feroz. O sangue fecundou as areias que circundavam a cachoeira. A água tornou-se escarlate.
Lembrava-se da Anciã em seu caminho. Estava certo de que ela o havia enfeitiçado. Suas ações eram irracionais, contrariavam a tudo o que havia aprendido. Aquela Elan não podia merecer o sangue derramado de seus amigos. Nesse leve lampejo de consciência pensou em matá-la e assim conter a magia, mesmo sabendo que seu ato já o havia condenado a morte. Percebeu que a Elan havia fugido. Sua fúria tornou-se incontrolável. Ela tentava resgatar a menina. Chegaria antes e a mataria.
A menina estava deitada em uma manjedoura enfeitada de lírios do brejo, guardada por dois Mutins chamados de invencíveis. Mutinjupi contornou o lugar caminhando entre arbutos, silencioso como a sucuri. Aproximava-se sorrateiro quando uma cabra pôs-se a berrar atraindo a atenção dos homens para ele. Uma luta se desencadeou, sendo ferido, embora em fuga com a menina nos braços. Novamente agia impensadamente. Estava ali para exterminá-la e não para salvá-la.
Nas margens do grande rio, exausto, viu a Elan aproximar-se e tomar a menina. Deu-lhe algumas folhas para mascar. Elas iriam aliviar a dor. Um grupo de mulheres o levou para as palafitas.
A recuperação foi lenta. Tornaria as mulheres de Norh hábeis na arte da guerra. O objetivo: dizimar os Mutins.
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