afresco egípcio
Ele passou rápido pela roleta de acesso ao metrô. Estava agitado e ansiava chegar em casa, teria, contudo, que enfrentar toda a aglomeração e o empurra-empurra das pessoas. Era sua rotina diária, mas que insistia em não se tornar normal, corriqueiro, até mesmo um hábito. Recusava-se. Queria paz, sossego. Ao chegar em casa buscou exorcizar todo aquele tumulto com uma música serena, que podia ser New Age ou algum outro estilo entre seus surrados CDs. Morava em Pirituba e trabalhava em uma confeitaria incrustada na República.
O elevador subiu num impulso, não via o momento da porta se abrir e vislumbrar seu apartamento. O tempo parecia não passar. Uma senhora tossia persistente e irritante ao seu lado. Pensou em enforcá-la umas duas ou três vezes. E enfim o cheiro de seu lar. Era seu odor. Sentiu, respirou profundamente, abrindo os braços e deixando-se bombardear pela deliciosa energia de estar em casa. Despiu-se e de cuecas jogou-se no sofá. Liberdade. Sossego. Paz. Ligou a televisão e os canais enumeravam as tragédias do dia, desenterrando uma ou outra polêmica, geralmente um assassinato, um caso de pedofilia, um estupro e outras notícias que em nada o estimulavam a ouvir. Após percorrer vários deles, lançou o controle remoto sobre o tapete felpudo malhado de cinza e branco e acendeu um cigarro. Dirigiu-se até a janela. A cidade lá embaixo se digladiava. Sorriu irônico.
Decidiu tomar um banho. O chuveiro esguichou a água morna em seu corpo, ensaboado. Sentou-se enquanto a ducha chovia sobre seu corpo. Esfregou aqui e ali de olhos fechados, sem preocupação com o tempo. Em geral procurava economizar água, energia, separava o lixo...mas naquele dia deu-se o direito de extravasar. Merecia aquilo.
Enxugou-se como que realizando um ritual e lançou-se sobre a cama despreocupadamente. Despertou de sobressalto vendo os carros se desviarem de seu corpo estendido no centro da Paulista. Completamente nu não sabia se protegia-se dos carros, dos transeuntes ou escondia seu corpo despido. Correu o quanto pode avistando uma praça e nela mergulhou. A mata densa o surpreendeu e aliviou simultaneamente. Apenas o som dos pássaros, cigarras e zumbido de um besouro que voava por perto. As sombras se sucediam quietas. Nenhum sinal de civilização. Estava ou não estava em São Paulo ? Adentrou cada vez mais profundamente a mata. Deparou-se com uma belíssima cachoeira. Banhou-se, já aliviado do susto inicial. Sentou-se no lajeado deixando a correnteza fria investir contra seu corpo.
Entendeu que sonhava. Aquele cenário não poderia estar ali. O ar puro, a paz, a tranquilidade e a natureza exuberante. A qualquer momento acordaria, então era necessário curtir ao máximo aquele momento único.
Andou, seguindo o riacho. Era realmente o paraíso. Em seu dia de Adão deixou-se seduzir pela energia do lugar.
- Então esfolará o holocausto, e o partirá nos seus pedaços. (Levítico 1:6)
Ouviu a voz ressoar em som ribombante. Olhou curioso ao redor e ao alto. Estava só. Apenas o grito agudo de algum pássaro enfronhado entre as densas árvores. Mais alguns passos e viu o rio tingir-se de um vermelho escarlate. Pedaços de animais e pessoas encharcavam as águas e coloriam as pedras. O céu, já entardecendo, também refletia o rubor das águas. Desesperou-se. Adentrou por uma trilha invadindo as trevas da floresta.
E novamente a voz retumbou:
- E por tendas pôs as trevas ao redor de si; ajuntamento de águas, nuvens dos céus. (2 Samuel 22:12)
Andou por lamaçais escorregadios, afundando e pintando-se com a argila negra. Temeu perder-se para sempre naquela floresta inóspita. Gritou por socorro inutilmente. Beirou-se ao pânico. A escuridão invadia tudo. Sabia que alguém o observava. Não estava só. Mas não conseguia identificar onde a pessoa se encontrava.
- Tem alguém aí ?, berrou várias vezes sem resposta. Apenas o eco da própria voz.
Estaria apenas consigo mesmo. No auge de sua solidão ouviu chamar seu nome.
- Eder ! Eder ! Eder!
Seu nome ecoava por entre as árvores e samambaias. Estaria enlouquecendo ?
- Porque os seus pés correm para o mal, e se apressam a derramar sangue ( Provérbios 1:16)
A voz repercutiu na escuridão e somente então notou os cortes em seus pés que sangravam deixando um caminho salpicado de rubis. A lua os iluminava. Uma clareira se abrira no mangue. A lua tudo iluminava. Alva e majestosa. Sentou-se em um tronco. Estava exausto. O que estava acontecendo afinal ? Meditou sobre as frases, buscou uni-las, relacioná-las. Qual seu significado ? Centenas de perguntas borbulhavam desconexas. Onde estaria ? Por que não acordava daquele terrível pesadelo ? E novamente ouviu a voz soturna:
- Os montes tremem perante ele, e os outeiros se derretem; e a terra se levanta na sua presença; e o mundo, e todos os que nele habitam. (Naum 1:5)
Das trevas ao seu redor surgiram vultos. Pequenos seres corriam, talvez duendes. Pirilampos piscavam incessantes como uma cortina de pó dourado. Um ruído como de um pica-pau batendo persistente em algum tronco. Um mocho piou arrancando arrepios. Alguém pisava nas folhas secas.
- Alguém aí ?, arriscou inutilmente.
Novamente o silêncio tumular. Algo havia despertado os seres invisíveis da floresta. Talvez deuses milenares esquecidos naquelas matas. Talvez seres lendários concebidos ao longo das civilizações e que habitaram determinado tempo e agora vagavam ocultos por entre as sombras. Ou talvez as próprias sombras de cada ser humano em seus sonhos, delírios, desejos e maldades tenham se refugiado naquele espaço intangível no meio de uma cidade movimentada. Para onde iriam os pensamentos criados pelos homens? Se não se diluíssem talvez continuassem vivos passeando pelos submundos. Tantos desejos, tantos sonhos!
Estaria vagando nos recônditos da consciência ? E aquelas palavras ressoantes ? Seriam elas suas próprias sombras ?
- Vou respirar o doce hálito da tua boca. A cada dia vou contemplar tua beleza... Dê-me tuas mãos, carregadas de teu espírito, a fim de que eu te receba e viva por ele. Chama o meu nome no decorrer da eternidade: ele jamais faltará ao teu apelo ! (inscrição no Túmulo de Amenotep IV)
Por um instante ouviu seu próprio coração. Tocou a si mesmo. Encontrou-se. Um insight. Compreendeu sua vida como se pudesse relacionar a colcha de retalhos de sua existência e enxergar o amanhã em um espelho mágico. Sabia o que desejava. O quebra cabeça de sua vida começava a fazer sentido.
Despertou em sua cama. Sorriu olhando o teto e relaxado por estar em seu quarto. Espreguiçou-se demoradamente. Já anoitecera. Levantou e acendeu a luz. Seu corpo estremeceu ao ver os lençóis sujos de lama e sangue. Onde estivera ? O que acontecera ?
Sentou-se transtornado na poltrona surrada próxima a janela. Estava confuso. Pegou aleatoriamente um livro que estava sobre ela. Ele abriu-se deixando cair um pedaço de papel. Apanhou-o despretencioso. Nele estava escrito:
O que lavra a terra com dedicação tem mais mérito religioso do que poderia obter com mil orações sem nada fazer (Zend-Avesta)
Novamente o chuveiro e saiu para caminhar pela madrugada. Precisava refletir.
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