“É a agulha que carrega a linha”
(Sentença do Odu Ofun Meji)
A mulher saiu descontrolada, não suportava mais os desaforos do marido. Casara-se cedo. Feliz e entusiasmada. Apenas dezesseis anos. Acreditava ter encontrado o príncipe de seus sonhos. O primeiro filho não demorou a chegar e logo o segundo e o terceiro. Abandonara os estudos. Seria dedicada esposa e mãe. As rotinas da casa e do cuidar dos filhos não a enfastiavam. A vida era assim. Monótona algumas vezes, repetitiva como o som hipnótico do tambor. O marido, ciumento igual a só ele, não lhe permitia grande mobilidade. Uma rápida corrida até o mercado e nada de bate-papo aqui e ali. Ele não gostava. Queria que ela estivesse ali, entre os limites da casa em que residiam. Temerosa de perdê-lo e receando confrontos evitava mostrar-se em público. A simples compra de algumas verduras quando Seu Joaquim passava com sua bicicleta era quase um trabalho de ninja.
Assim as crianças começaram a crescer. Viam a mãe resignada, paciente e submissa. O pai trabalhava o dia todo. Coisa de homem. Voltava tarde para casa. Não viam carinho entre os pais. Ele chegava, quase sempre tenso e ríspido, de cara fechada e poucas palavras, tomava o banho e trocava-se. Queria a comida quente, a casa limpa, as roupas perfumadas. Nos aniversários e Natal sabia presentear os filhos. Eram momentos de festa, geralmente churrasco, onde se reuniam amigos e familiares. O pai bebia bastante nestas ocasiões, procurava apontar todos os defeitos da mãe e humilhá-la diante de todos. Estava ficando gorda e desleixada. Cabelos desalinhados, roupas baratas e em desuso.
Apesar de tudo, aceitava. Os homens são assim. A vida é assim. As coisas hão de melhorar. Com frases assim se sustentava, alimentava esperanças de um futuro que chegaria. Mas não chegou. Percebeu que o marido tinha outras mulheres. Enquanto ela cuidava da casa, dos filhos, da roupa lavada e passada, da comida saborosa, ele se divertia. Com o tempo algumas pessoas romperam o silêncio e o delataram a ela. Nascera o filho dele com fulana. Com a outra já tinha dois.Vencendo os medos discutia, brigava. Aos poucos ele próprio dizia que estava saindo com essa ou aquela.
Quando percebeu que estava com uma doença venérea, compreendeu que bastava. Passaram a viver em quartos separados. Perdera um filho em razão disso. Mas não tinha suficiente coragem para terminar o relacionamento. O que faria sozinha? Sem estudos, sem emprego, sem parentes e sem o sustento do marido. As humilhações ampliavam a cada dia. Era preciso resignação. Algumas pessoas enunciaram que se tratava de um carma e que deveria suportar com grandeza.
Desconsolada buscou uma pessoa que lia cartas muito bem. Hélio. Diziam que ele tinha uma cigana fantástica que revelava tudo através do baralho. Era a esperança ou a desilusão total. Era no meio da tarde quando chegou até onde ele morava. Bateu palmas várias vezes até que uma mocinha atendeu. Parecia que ela estava fazendo faxina na casa. Disse que ele estava atendendo uma pessoa e que aguardasse. Esperou na sala. Um sofá de tecido cor de vinho desgastado. Uma mesinha com um cinzeiro abarrotado de tocos de cigarros e um vaso com rosas artificiais vermelhas. Uma cortina em tom de goiaba. A casa era pequena pelo que pode perceber. Simples como a sua.
Ele bateu palmas, invocou a cigana, concentrou-se. As cartas foram se abrindo e relatando sua vida com uma impressionante riqueza de detalhes. A cigana sabia o que se passava.
- “Pegar água num cesto é trabalhar inutilmente!”1, disse o homem com sua aparência gorda e debochada.
Voltou para casa ansiosa e repleta de sonhos.
Meses se passaram. As agressões verbais a minavam. Resolveu separar-se. Ele gritou e ameaçou. Mas esgotada decidiu gritar mais alto. Ele fez menção de agredi-la fisicamente.. Ela avançou com um castiçal de pedra sabão sobre ele. Semanas de ofensas. Os filhos contra ela. Certamente haveria outro homem. Os filhos optaram pelo pai. Com dinheiro contado para o ônibus rumou para casa de seus pais.
A notícia da separação à princípio foi uma bomba. O pai a condenou e a mãe a absolveu. Sabia o que a filha sofria. Teve seus cardos também.
Passou a estudar e foi trabalhar de doméstica, arte que dominava com galhardia. Era importante mudar sua vida. Sofria com a ausência dos filhos, mas estava certa de que o tempo resolveria tudo. Saberiam quem era verdadeiramente o pai deles.
O curso de secretária abriu um outro horizonte. Atenciosa, dedicada e cuidadosa rapidamente conquistou a todos na empresa em que fora empregada. E foi assim que conheceu um dos clientes. Gentil, cavalheiro e carinhoso. Rendeu-se. Foram morar juntos sob o protesto do pai e receio da mãe. Um filho. Viagens pelo Brasil e Europa. A vida mudara. Sentia-se viva. Sentia-se mulher. Sentia-se amada. Já havia se esquecido dessas sensações.
Certa manhã enquanto caminhava desligada pelo calçadão olhando uma e outra loja, um sapato, uma bolsa ou um novo modelo de óculos de sol, foi interceptada por uma velha cigana querendo ler sua mão. Resistiu, buscando ignorar a mulher. Mas perante a insistência, estendeu-lhe a mão para que a anciã caminhasse pelas linhas ali delimitadas.
A senhora sorriu enigmática. Falou sobre a mudança que ocorrera com o novo casamento. Anunciou que o ex-marido morreria em um acidente de automóvel, que os filhos retornariam a ela, exceto um que jamais a perdoaria por ter se separado do pai e a condenaria por sua morte. Mas alertou que as nuvens se movimentavam rapidamente e teria uma surpresa muito desagradável. Curiosa insistiu para saber o que aconteceria.
- “Ninguém conhece tudo o que existe no fundo do mar...”2 , declarou com um certo sorriso.
Abriu a bolsa e lhe deu algum dinheiro.
O marido chegou mais cedo e pediu para conversar. Revelou de súbito, tremulando as mãos, com a voz embargada, que estava apaixonado por outra pessoa. Por acaso, a pessoa era sua melhor amiga. Tinha metade de sua idade. Uma garota. O mundo veio abaixo. Sem maiores explicações disse que providenciaria uma nova casa para ela. A providência parecia já estar planejada, pois três dias depois, desceu do taxi e rumou para o apartamento em que passaria a residir. Entrou em profunda depressão.
Voltou a buscar trabalho. Idas e vindas. Não estava fácil. Meses de procura e nada. Tanto insistiu que conseguiu ser recepcionista em um hotel internacional, aproveitando sua habilidade de se comunicar em inglês e espanhol com certa fluência.
Coincidentemente recebeu a notícia da morte do ex-marido e a chegada dos dois filhos. Ficariam no apartamento. O mais velho, Pedro, havia viajado para Nápolis e dificilmente retornaria para junto dela. Havia espaço para todos.
Estava assustada. Ao passar por uma casa de artigos religiosos divisou uma imagem de Santa Sarah Kali. Comprou-a. Sua história com a energia cigana era indescritível. Resolveu ler, estudar, conhecer mais assunto.
A vida estava para lhe preparar outra cilada. Ao parar para tomar um capuccino, encantou-se com a beleza de um homem que conversava animadamente com o balconista. Riu de várias intervenções do homem, de suas considerações inteligentes e alegres. Logo estava inserida na conversa e pode apresentar-se. Seu nome: Jorsca. Sangue cigano. Nova paixão, novas esperanças, nova vida.
Reação negativa dos filhos à princípio e uma grande amizade em seguida. Jorsca e seus dois filhos tornaram-se unha e carne. Um risco. Nova gravidez já em idade não aconselhada. Nascia Richenda. Uma menina paparicada. Inclusive pelo filho do segundo casamento.
Despertou suada pela madrugada. No estranho sonho a terra se abria diante de seus passos. Das valas uma voz emergia cavernosa:
- “Se pretendes me comer, deves apressar-se, senão, o que abre a boca aos teus pés, te impedirá de comer.”3
Sabia que seu filho havia retornado ao Brasil. Foi ao encontro dele. Várias tentativas de conversar e a frieza, a resistência e a indignação do rapaz. Escreveu-lhe doce carta manifestando seu amor e pediu que lhe fosse entregue.
A areia da ampulheta escorria rapidamente.
A areia da ampulheta escorria rapidamente.
Ao deixar o prédio, sem saber de onde um carro em alta velocidade a lançou metros adiante. Estava morta.
1- Sentença do Odu Owónrin Meji
2- Sentença do Odu Irosun Meji
3- Sentença do Odu Oxê Meji
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