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Ela entrou na sala furiosa com um indescritível olhar de excomunhão para todos, arremessou-se na cadeira e despejou sobre a mesa um calhamaço de papéis desalinhados. Seu olhar era fulminante. Mastigou as palavras durante certo momento como que as escolhendo ou buscando controlar a emoção que saltava qual foguete em festa junina. Estava com as bochechas carmesim e as mãos trêmulas. Por fim, encorajou-se, empertigou-se, de súbito foi até a lousa e escreveu, apertando o giz na tentativa de exterminar ali toda sua raiva, o título da redação que solicitara e recolhera três dias antes, na aula anterior. O tema versava sobre a obra Fogo Morto, de José Lins do Rêgo. Os alunos deveriam tecer comentários e fazer alguns paralelos com a realidade atual.
Sua primeira pergunta foi Se alguém havia lido a obra. Mãos hesitantes se elevaram. Alguns poucos tiveram a curiosidade de buscar o resumo da obra pela internet. A maioria não havia tocado no livro. Foi aí uma chuva de justificativas: poucos livros na biblioteca, falta de dinheiro para comprar o livro, falta de tempo em razão de provas e trabalhos dos outros professores, e outras tantas um pouco forçadas e que não convenceram a professora. Dona Eugênia era austera, brava, exigente, o demônio personificado. Enfrentá-la significava colocar em risco a própria existência. Não seria possível conceber o dia seguinte.
Dona Eugênia fez um longo discurso sobre a importância da leitura e, com ares ameaçadores, questionou o futuro de cada um. Os jovens não leem mais! Além dos vestibulares havia a questão da própria cultura pessoal, o aprimoramento do vocabulário, da interpretação, da argumentação, do ato de escrever. Quem não lê não saberá escrever. Não conhecerá mais nada, não terá como se sair bem em qualquer outra matéria. Esmurrou a mesa e decidiu que daria mais quinze dias para a leitura do livro. A partir daí todos sentiriam o tsunami de sua fúria.
Todas as segundas-feiras, religiosamente, havia chamada oral de vocabulário e a leitura mensal de uma obra relevante, dentro dos critérios que estabelecia. Desenvolvia saraus e incentivava a produção literária de cada um, respeitando seus estilos, mas inflexivelmente fiel à língua portuguesa.
Estava na escola há poucos anos. Mas em poucos anos arrematou o respeito e certo temor de todos os demais professores. Era seca, franca e distante. Talvez a distância em que se colocava diante das pessoas a cobria ainda mais de um certo pavor. Não falava de si mesma e quando questionada delimitava que ali era apenas seu local de trabalho. De trabalho falava ali. Com tal comportamento o corpo docente e discente se dividiu: era amada e odiada. Amada pela dedicação, comprometimento e fidelidade ao seu trabalho. Odiada por aqueles que não eram favoráveis a tantas exigências, cobranças e postura tão regrada.
Dona Eugênia detestava a fofoca e diante do fuxico punha pra correr o mexeriqueiro. Pior do que pudesse falar dela era a pessoa que se propunha a contar. Contar nem sempre verdades ou verdades modeladas para atender a interesses quase sempre obscuros e que inexoravelmente bailam na doentia personalidade humana. Sabia que falavam bem e mal dela. Todos estavam certos e todos se equivocavam. Tudo dependia da motivação intrínseca de cada um.
Um pouco do mistério de Dona Eugênia começou a diluir quando sua filha, Eurydice, foi matriculada na primeira série do Ensino Médio, em nossa escola. Isso era um indício de que era casada e tinha filhos. A questão detonava a possibilidade de ser ranzinza por não ser casada. Diagnóstico alimentado durante muito tempo. Eurydice era muito bonita, delicada, tímida, mas gradualmente foi ampliando a amizade com os alunos. Era estudiosa, mas não nerd. Aproximei-me dela no intervalo e aos poucos fomos materializando nossa amizade. Eurydice é aquele tipo de pessoa que vai se abrindo à medida que vai confiando nas pessoas. Não demorou a mostrar-se alegre e descontraída.
Através de Eurydice soube que morava com a mãe. Nunca falava do pai. Uma pulga atrás da orelha. Na divisão de grupos para um trabalho de Física que nos impelia a buscar suas contribuições no avanço tecnológico, acabei sendo um componente da turma da filha de Dona Eugênia e mais: o trabalho seria feito na terça-feira, à tarde, em sua casa. Entrei em parafuso e as pernas perderam completamente a obediência ao meu comando cerebral. Tremia dos pés à cabeça. Me imaginava chegando a casa e dando de topo com a figura daquele ser subterrâneo. Cheguei a ter pesadelos. Adentrava a casa escura e ela, descabelada, me perseguia pelo labirinto dos corredores.
Às treze horas eu já estava sentado na esquina esperando dar a hora e havia botado para fora todo o almoço. Sorri quando vi Regina, Emanuel e Dirce se aproximarem. Disse que havia acabado de chegar. Foi Dona Eugênia quem nos recebeu. Tinha um sorriso brilhante no rosto que me fez duvidar de suas reais intenções. Havia postado uma mesa repleta de guloseimas e sucos, mas advertiu que estaríamos liberados para o banquete somente após a conclusão do trabalho. Pensei em poções mágicas, soníferos e outras tantas possibilidades dignas de criar uma nova versão de Harry Potter.
Apesar de minha ansiedade e insegurança a tarde transcorreu tranquila e a fome mostrou-se superior aos receios. Somente após fartar-me dei-me conta de que não deveria ter provado aqueles alimentos. Esperei por um tempo transformar-me em sapo, caranguejo, urubu ou despertar em uma gaiola em seu porão. Contudo, a ida até a casa de Dona Eugênia favoreceu um diálogo mais aberto com Eurydice e ela, por si mesma, talvez na intenção de desabafar, revelou que não conhecera seu pai. Quando sua mãe havia engravidado saíra de casa para enfrentar o mundo sozinha. Meu coração pesou. Eu tinha pai, mãe e um irmão pequeno. Provavelmente estaria nisso a ira de Dona Eugênia.
Eurydice lia muito e repassava para mim cada obra lida, realizando uma minuciosa chamada oral ao receber o livro de volta. Isso nos uniu ainda mais. Na verdade estávamos sendo impelidos um para o outro apesar de minha terrível rejeição pela mãe dela. Estava condenado a ter Dona Eugênia como sogra? Esse assunto me empalidecia e me levava ao sanitário com vômitos incontidos. Mas pela tradicional visão do que se tem de sogra ela atendia perfeitamente ao perfil.
Eu estava apaixonado. Sonhava com Eurydice e tinha pesadelos com Dona Eugênia. A paixão, o namoro, o noivado e o casamento estavam selados de minha parte. Porém, na escola havia o Galo. Galo era apelido. O nome dele era Petronilo. A própria família devia ter tomado consciência e apelidado o garoto, fazendo com que não encarasse o próprio nome. Era atlético, corpo bem modelado pelo esporte, olhar confiante, galanteador. Eurydice, como todas as demais garotas, encantou-se por ele. Eu preferia tê-lo matado no berço. Meu sangue concentrou-se todo no topo de minha cabeça quando, na saída da escola, os vi se beijando. Tive uma indescritível vontade de dar meia volta, invadir a sala dos professores e conclamar Dona Eugênia para que também presenciasse aquele cena avassaladora. Entre o pensamento e a ação fui chorar no meu quarto, escondido de tudo e todos.
Na manhã seguinte, ao entrar na sala de aula, Dona Eugênia pediu que eu me levantasse e ficasse em pé na frente, diante de todos. Um turbilhão de pensamentos se debateu rapidamente, atropelando uns aos outros. O pensamento que predominava, no entanto, era que ela havia percebido que eu estava de quatro pela Eurydice e iria fazer com que eu passasse a maior vergonha diante de todos. Ela, então, em tom solene, levantou-se. Pensei em escavar rapidamente um túnel, desmaiar, sair correndo, fugir dali para sempre, até voar, mas estava enrijecido, petrificado. Olhou-me com seus olhos sempre fulminantes e sorriu. Aplaudam, disse. Foi o único a tirar dez. Parabéns! Mostrou ter lido e conhecer muito bem o livro Saraminda, do escritor José Sarney. Houve uma euforia na classe. Aplausos. Assobios. Gritos. Diante da cena quase desfaleci. Eurydice levantou-se e beijou-me a face esquerda. Fiquei sem lavar essa parte do rosto por vários dias.
Daquele dia em diante apaixonei-me também por Dona Eugênia. A defendia furiosamente. De bruxa transmutou-se na mais bela fada. Não alimentando mais ojeriza por ela temi que não pudesse mais ocupar a posição de sogra. Temi perder Eurydice, que parecia estar encantado pelo Galo ainda. Meu destaque nas aulas de Língua Portuguesa atraiu o olhar de Eurydice e de Fabiana, que já não trazia consigo todas as belezas de minha amada.
No baile de formatura exagerei um pouco na cerveja e estava determinado a revelar meus sentimentos. Aproximei-me várias vezes de Eurydice, mas a cada momento eu era interceptado pelas amigas dela ou pelos amigos meus. Na hora da valsa eu havia sido escolhido pela Fabiana. Eurydice dançaria com o Galo para inveja quase coletiva. Após a dança os vi se beijando. Retirei-me para fora do salão buscando recompor-me. Na verdade queria fugir dali. Dar uma garrafada na cabeça dele. Arrancá-la dele e beijá-la. Afundado em meus desejos interiores não percebi que Fabiana havia se aproximado e calada permanecia ao meu lado. Olhei-a incógnito. Ela nada disse, apenas beijou-me. Um beijo quente. Intenso. Um beijo que mexeu muito além dos meus sentimentos tendo repercussões físicas. Abracei-a fortemente e adentramos o salão.
Eurydice correu até nós demonstrando uma felicidade exacerbada. Cumprimentou-nos efusivamente. Revelou estar feliz por nos ver juntos. Disse saber o quanto Fabiana gostava de mim e que seríamos muito felizes. Comentou que estava se mudando. Sua mãe havia sido transferida. Mas enviaria o novo endereço. Permaneceriam em contato através das redes sociais. Olhei assombrado para as duas. Estavam felizes. Nesse ínterim Olavo, Pedro, Galo e Fred me arrastaram para uma mesa fazendo-me enfrentar várias rodadas de cerveja. Cheguei em casa não sei como.
No próximo mês me caso com a Fabiana e pasmem: Dona Eugênia e Eurydice serão nossas madrinhas. Eurydice está noiva de um rapaz que ainda vou conhecer. O namoro começou na faculdade de medicina que ela estava cursando. Eu, por minha vez estou aqui debruçado lendo as redações de meus alunos, indignado e inconformado: os alunos não leem!
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