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Mais uma vez deixou a casa sob uma chuva de beijos e abraços da esposa. Pegaria a estrada com seu pesado caminhão de carga. Desde pequeno acompanhara seu pai e pegara gosto pela coisa. Era um apaixonado, mesmo refletindo sobre os riscos que enfrentava atravessando o país de ponta a ponta. Casara-se tarde. Com Patrícia. Bem mais jovem. Procurava tratá-la como uma rainha oferecendo a ela a melhor casa, o maior conforto, o melhor de si. Era mais uma despedida.
Estimulada pelo longo tempo em que ficava sozinha, motivada pela solidão ou traços ocultos de sua personalidade simulava estórias de descaso e maus tratos do marido, em especial para seu primo, Nando. As lágrimas nos olhos, a expressão de rejeição e sofrimento logo cativaram o moço, que se dividiu entre pena e vontade de protegê-la. O fato é que as viagens do marido promoviam encontros amorosos e ardentes, na cama do casal. A voz rouca e chorosa de Patrícia encantava não apenas Nando, mas quem desejasse, até mesmo o motorista do ônibus de estudantes que a levava diariamente para a faculdade. Fazia cara de nojo quando o assunto era o marido que se alongava pelas estradas.
Os encontros foram se tornando mais frequentes e intensos. A desculpa de Nando era o dó que sentia da prima desolada. Nando era jovem. Frequentava ainda o Ensino Médio, embora fosse encorpado e chamasse bastante à atenção. Comportava-se, contudo, com discrição perante o assédio natural das colegas, de maneira a gerar insinuações sobre sua sexualidade.
Costumava confidenciar-se com seu amigo Vadinho. Confidenciava-se ingênuo como quem faz em quem confia. O amigo atento espremia-se na ânsia de contradizer, mas calava-se opaco qual vidraça que recebe o vapor de nosso sopro em dia gelado. Juntos saíam, os dois, para uma cerveja gelada ou algum evento cultural, uma vez que Vadinho era ligado a cultura e conhecia os melhores locais para saborear esses momentos na cidade. Esse convívio fez notar que Vadinho nutria outros interesses e ciente disso dissimulava necessidades quase sempre prontamente atendidas. Vadinho apesar de todo envolvimento com eventos locais era solitário em si mesmo. Temia, por sua vez, revelar-se e perder definitivamente a oportunidade de estar ao lado de Nando.
Nuvens gordas se arrastavam pelo céu, pesadas e cheias, em certa tarde e nessa tempestuosidade Vadinho trêmulo e inseguro gaguejou que estava apaixonado. Os raios que lampejavam lá fora ecoavam dentro de si. Seria tudo ou nada. Assim como as nuvens estavam encharcadas e deviam explodir-se em chuva, assim ele precisava desaguar todo aquele vendaval que o estava consumindo. Nando fez-se de surpreso. Alardeou que gostava de mulheres, que saía com a prima e que se sentia lisonjeado. De qualquer forma quando a Imperatriz Leopoldinense sagrava-se campeã do carnaval carioca com o enredo “Brasil mostra sua cara”, Nando descobria algo mais sobre sua sexualidade e despertava em si a percepção de novas oportunidades.
O marido de Patrícia também se dividia. Tinha uma mulher e dois filhos em uma cidade próxima. A mulher era Sílvia. Os filhos. Tarso e Thiago. Após deixar Patrícia, em geral passava para ver Sílvia e os filhos e quando retornava sempre tinha alguns mimos para distribuir para as crianças que o esperavam ansiosamente. Sílvia sabia de Patrícia.
A oportunidade visualizada por Nando era financeira e projeção social. Assim Vadinho seria um investimento. Por outro lado, não intencionava deixar Patrícia, uma vez que ela mesma declarava-se apaixonada e incapaz de viver sem ele, diante das intempéries da vida e os sofrimentos materializados por seu algoz e marido. Os olhos gotejantes de Patrícia faziam Nando vacilar, mesmo diante da certeza de deixá-la.
O caminhão estacionou ao lado de um extenso seringal. Almejava descansar. Acomodava-se na boleia para um cochilo quando sentiu que precisava liberar algum líquido já em desuso pelo seu corpo. Desceu olhando para os lados assegurando-se estar só naquele lugar em que as árvores cerceavam os poucos raios de sol que se atreviam furtar-se das nuvens. Um ato normal tentava ele executar se não fosse ter sido chamado a atenção por um farfalhar produzido pelo vento ou um animal. Talvez. Mas havia quase certeza de tratar-se de uma pessoa. Apressou-se de volta ao caminhão.Tentou sair várias vezes, mas o veículo parecia estar emperrado. Insistiu até conseguir.
Pegou a estrada sentindo a pele áspera do asfalto, com estilhaços de pedras espargindo-se enquanto os pneus a cutucava. Vez outra pelo canto do olho acreditava visualizar alguém no banco ao lado. Não estava só. Um vulto esfumaçado e negro havia pegado carona. Arrepios se sucediam eriçando-lhe os pelos. Lembrou-se de que dias antes, embriagado, enquanto visitava Sílvia invadira a casa do vizinho, de facão empunho, ameaçando-o. Sílvia havia confabulado com o vizinho e revelado seu caso com ele, o infortúnio é que o vizinho era Vadinho e este conhecia Patrícia. O receio de Vadinho revelar o relacionamento para Patrícia levou-o a invasão.
Na casa de Vadinho a alegria contagiava. Muitas pessoas. Era festa de Xangô. Diante da aparição do homem investido de vingador afastaram-se alguns e produziu-se murmúrio e medo entre as pessoas; mas Vadinho, com uma autoridade irrepreensível, ordenou que ele saísse. Perturbado e confuso, deixou a casa, não sem antes deixar claro que mataria Vadinho se Patrícia soubesse. A festa prosseguiu. Nando afundou-se na cadeira reflexivo e absorto diante do ocorrido.
Por fim, o caminhoneiro abandonou os pensamentos sobre isso. Certamente não havia relação e ficara apenas impressionado.
Patrícia percebeu pelas reações orgânicas que vinha enfrentando, que estava grávida. Estava em dúvida se o filho era de Nando ou do motorista do ônibus. Achou por bem garantir que todos soubessem e, em especial, seu marido, que esperava um filho dele, do motorista de caminhão. A alegria do caminhoneiro era grande e esperava uma menina, afinal já tinha dois meninos.
As noites do caminhoneiro, mesmo ao lado de Sílvia ou Patrícia estavam agitadas. Sentia-se fugindo de algo e despertava sentindo mãos os agarrando. A sensação física de mãos fortes o segurando o fazia saltar de um único pulo, gerando pânico também nas mulheres. Que consideraram estar estressado, cansado demais.
A gravidez de Patrícia era de risco, permanecendo muitas vezes deitada, com medicamentos e muitos cuidados médicos. O caminhoneiro via com simpatia a preocupação de Nando que lentamente aproximou-se e foi se alojando na casa.
O celular anunciou um telefonema de Sílvia. Tarso havia sido atropelado e estava sendo levado para o hospital. Quando avistou Sílvia, chorosa e desencantada, percebeu também a mesma sombra vagueando ao redor dela. Era preciso rezar. Mas não rezou. O médico como quem em dúvida para falar arremessou sobre o casal a morte do menino. Não resistira. Muitos ferimentos. O motorista havia desaparecido sem deixar pistas.
- Você terá uma filha, revelou Patrícia percebendo que perdia Nando a cada dia. Embora procurasse manter uma relação discreta com Vadinho a percepção da amante identificara sagazmente o que vinha acontecendo. Jogar-lhe uma filha no colo era amarrá-lo a si.
O moço empalideceu por instantes. Sorriu e aplaudiu. Depois esmurrou a parede e questionou que a menina nunca poderia ter o nome dele. Planejou fugirem. Viverem apenas os três, longe dali. Mas Patrícia não abandonaria todo o conforto apesar do fogo que a incendiava por ele. Criou desculpas. Pediu calma diante do marido violento.
Vadinho observou atentamente Nando quando este lhe contou sobre a filha. Não disse nada. Mudou de assunto como se não tivesse ouvido. Falou sobre uma viagem a Florianópolis que fariam. Entre a filha e a viagem, Nando passou a conversar animadamente sobre Floripa.
De madrugada, Patrícia foi levada rapidamente ao hospital. A menina não nasceria. Foi a sogra de Patrícia que anunciou ao filho o que acontecera. Estava distante demais para chegar. Desesperou-se. Chorou. Pela primeira vez chorou. Convulsivamente. Esmurrou a direção. Amaldiçoou deus e a vida, o destino e as estradas.
Vendo a vida fácil que conquistara com Vadinho, as roupas de marca, as viagens, os contatos que estabelecera, Nando entendeu que poderia ir além. Dentre os conhecidos de Vadinho estava Tito. Fotógrafo, muitas viagens e trabalhos nos Estados Unidos. Resolveu visitá-lo. A visita prosperou em algo mais. Deixou a casa certo de ter fisgado alguém ainda melhor que Vadinho.
Na estrada o caminhão apontou um problema. Pensou em buscar um lugar seguro para estacionar, mas encontrava-se subindo uma serra com a restrita opção de subir ou descer. O caminhão demonstrava urgência e cuidados. Embora hábil e experiente notava preocupado que algo acontecia. Ao fazer uma curva perigosa deparou-se com a estranha figura etérea que vinha lhe acompanhando. Atravessava a rodovia. Assustou-se, desviando rapidamente o veículo. Em queda livre o caminhão despencou sem chances de sobrevivência.
Na casa de Vadinho, Nando entusiasmado pelas conversas deixa escapar um elogio aos desenhos das porcelanas de Tito.Uma discussão arrebata os dois, violenta, feroz. Nando estava sem saída. Revelou que vinha se encontrando com o fotógrafo. Vadinho rompe a relação sem exigir maiores explicações.
Por dias, Nando o procura. Sem que seu arrependimento fosse considerado.
Vadinho desligou a televisão enquanto ouvia João Paulo II pedir perdão a humanidade pelos erros cometidos pela Igreja. Teria a possibilidade de visitar pessoalmente o Vaticano. Uma tournée pela Europa o clamava. Entrou no táxi e rumou ao aeroporto.
Nando exasperou-se ao saber que Tito falecera naquela manhã. Enfrentava há alguns meses alguns problemas causados pela falta de imunidade, a neurotoxoplasmose, sarcomas e diversas infecções o levaram a óbito.
Diante da casa de Patrícia, uma sombra, atenta e faminta, observava pelos vultos na janela o diálogo desesperado entre ela e Nando.
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