A morte rondava a floresta.
Apenas árvores centenárias pareciam desafiá-la. O silêncio era ensurdecedor.
Nenhum canto de ave ou o sussurro do bugio. Nem mesmo a cigarra ou estrilar dos
grilos. A água estava morta. Estagnada. Salobra. Sem vida. Os brotos
desapareceram e redemoinhos secos rodopiavam entre as raízes desgastadas das
gigantescas árvores. À noite o local parecia ainda mais pesado, sufocante,
insuportável.
O menino foi lavado com ervas
relacionadas a Chacoth, foi incensado com tufos de fumaça de cheiro forte e
estonteante. Juaci entrou em uma espécie de transe ao ingerir um preparado
feito por Jurecê, a mais antiga.
A gruta ficava distante, no alto
da montanha sagrada, onde vivia o deus em sua solidão no meio da floresta. O
silêncio era aterrador. Nem a capivara, nem a paca, nem os tuins fazendo
algazarra. Postaram-se todos diante da entrada. Apenas o pajé podia entrar
naquele mundo e falar frente a frente com Chacoth. Era noite e não havia lua.
Ninguém ousava se quer respirar. Estavam ansiosos. Deveriam deixar para morrer
a míngua o pequeno Juaci. Em seu cesto podiam-se contar cerca de doze castanhas
de caju, ali depositadas anualmente, assim que o cajueiro frutificava e o
menino saboreava uma das frutas suculentas. Também nutriam em si a esperança de
dias melhores com fartura de alimentos e água fresca. Que os animais
retornassem e pudessem alimentar a todos.
Ao amanhecer retornaram à aldeia
sob os sinais do ancião. Mantinha-se calado. Fitando o nada e mascando o cipó
que o mantinha conectado ao mundo dos espíritos. De repente ele parou.
Ajoelhou-se e chorou. Indicou que seguissem. A aldeia ardia em chamas. Foram
recebidos com tiros. As mulheres e meninas estupradas e mortas. Os homens
degolados ou mortos com os tiros de arcabuz..
- Reservem os meninos, não façam
nada com eles! Serão convertidos, deixarão a animalidade e conhecerão a deus!,
determinou um daqueles que compunha o grande grupo de homens.
- Vamos devolver essas almas a
deus, exclamou outro com ar penitente e convicto de suas palavras,
ajoelhando-se e benzendo-se, ordenando a morte de algumas anciãs que ainda
restavam.
Em pouco tempo corpos cobriam o
chão. No lugar de água fresca, haviam poças de sangue. O silêncio estava
quebrado. Crianças gritavam e choravam. Homens riam alto, faziam comentários
obscenos e davam tiros para o céu informando sua presença.
O velho pajé retornou à gruta às
pressas e resgatou Juaci. Ambos embrenharam-se mata a dentro na busca de um
esconderijo que pudesse mantê-los seguros. O velho tentava compreender o
estranho silêncio de Chacoth. Nada falara. De tanto andar na intenção de
proteger o menino deparou-se com um rio caudaloso, saciando a sede e fazendo-o
vislumbrar bananeiras com cachos dourados. Novamente o som. O borbulhar das
águas e as conversas dos macacos prego.
Do outro lado da floresta, o
grupo de homens armados montaram uma cruz na aldeia e rezaram ao seu deus. A
fome e a sede também os esgotavam, exauriam, desgastavam. A água dos cantis
secava rapidamente. Não muito distante decidiram acampar. A fraqueza e o
silêncio asfixiante os fizeram todos adormecer.
O grito de um deles despertou a
todos. Estavam cercados. Desarmados. Eram os Ibyrá-Gusú. Violentos, nada
amistosos, sanguinários. Espreitadores, vigiaram o bando até sorrateiramente
desarmá-los e torná-los vulneráveis ao seu ataque. Os que reagiram foram mortos
a flechadas, ou comas potentes bordunas. Foram zelosamente conduzidos. Os
meninos foram distribuídos às mulheres. Seriam criados como seus filhos. Os
homens foram despidos, amarrados e enjaulados. O mais velho caminhou atento
examinando todos os corpos ali expostos. Escolheu um deles. Parecia o mais
forte, atlético e saudável. Imediatamente três moças rindo muito o levaram para
uma das casas. Dariam a ele alimento, uma bebida alcoólica e ofereceriam seus
corpos ao prisioneiro.
No meio da tarde ele saiu da
cabana. Levemente embriagado. O chamavam de Huibert. Nascera de família nobre.
Louro, olhos verdes, cabelos longos e bem cuidado, atraiu-se pelas expedições,
as aventuras e a descoberta de novas terras. A riqueza não o atraía tanto
quanto aos seus colegas. Era movido pelo desafio. O contato com alguns homens
que conhecera na taverna o empolgaram. Homens sem muitos valores, dispostos a adquirir
riquezas amplamente anunciadas nas novas terras. Ouro e pedras preciosas
brotavam do chão, segundo se comentava. Até aquele momento apenas enfrentara a
fome, a sede e os mosquitos. Somente eles já haviam exterminado uma boa
quantidade de homens. Outros por aranhas e serpentes. Flechas envenenadas
puseram fim à vida de outros. Ali era o anunciado paraíso. Talvez o tivesse
agora encontrado. Boa comida, banho e belas mulheres. Assim caminhava quando
viu o chão aproximar-se. Uma borduna o desmaiara. Sob as vistas aterrorizadas dos
colegas, Huibert foi cortado aos pedaços para ser cozinhado. Os aldeões selecionavam,
hierarquicamente, as partes.
Da jaula de madeira alguns
ajoelhavam e rezavam, outros tentavam encontrar uma saída, mas estavam todos em
um estranho estado de torpor em razão da bebida que ingeriam.
Na aldeia incendiada, Ubiraci
despertou no meio do capinzal. Atordoado lembrou-se de alguém dar com a borduna
em sua cabeça. Talvez Jamari tentando preservá-lo de ser morto. Viu com
tristeza seu povo dizimado. Caminhou entre os corpos. Agachou-se pensativo esperando
uma resposta diante do silêncio sepulcral que o envolvia. A voz veio não longe
dali. Jacicoê lhe contou o que acontecera. Falou do massacre e dos meninos
prisioneiros. Falou da presença dos Ibyrá-Gusú por ali. Últimas palavras.
Dias se passaram. Os Ibyrá-Gusú
comemoravam a farta caçada. À noite haviam danças e cânticos. A anciã, que se
dizia encantada e que, portanto, não morreria, agradeceu a Yakecan pela
prosperidade.
A chuva anunciou que uma nova
estação chegava. Não demorou para se ouvir novamente os passos pesados da anta
e o canto do bacurau. A selva se mostrava em festa. Yakecan trouxera suas bênçãos
a todos.
Junto com a anta, porém, se
aproximava da aldeia Ubiraci liderando o povo da noite. Muito se falavam deles.
Chamavam-nos de nitioecó, pois não
tinham certeza se existiam. Eram astutos, andavam como a onça e conseguiam
desaparecer em qualquer sombra. O ataque foi fulminante, avassalador. Em pouco
tempo guerreiros foram dominados e mortos. As crianças recuperadas. As mulheres
foram levadas.
Na confusão vários homens, antes
aprisionados, mergulharam na floresta escura, em busca da liberdade.
O instinto e profundo
conhecimento da floresta levaram os nitioecó
para Juaci. O pajé agonizava sorridente. Chacoth tinha seus próprios caminhos.
No interior da mata o grupo de
fugitivos planejava. O povo da noite ostentava pingentes de ouro nas orelhas e
nos colares. Isso indicava a riqueza deles. Era um sinal. Deus os guiava para a
fortuna. Precisavam discutir cuidadosamente o ataque.
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