“O
tu, que habitas nos jardins, os companheiros estão atentos para ouvir a tua
voz; faze-me, pois, também ouvi-la”
Cânticos 8:13
Cânticos 8:13
Alíria Pivol. Cantora.
Famosa. Cabelos negros azulados em pele morena. Íris cor de mel realçadas pelo "dramatic
make-up". Corpo esbelto e sensual. Alíria sempre se destacou. Desde os
tempos de escola, criando penteados e acrescentando detalhes nos vestidos que
sempre produziam inveja para algumas colegas e servia de modelo para outras
tantas. Adolescente gerou estilo próprio com unhas quadradas, cabelos repicados
e batons escuros. Altamente comunicativa se fazia presente em todas as
comemorações escolares e eventos festivos, ora cantando, ora dançando, ora
dosando um e outro. Desnecessário dizer a cobiça dos rapazes. Um beijo que
fosse. Sua imagem povoava a imaginação dos garotos, com hormônios à flor da pele,
se fazendo presente nos momentos mais íntimos e secretos de cada um deles.
Enfim, Alíria sabia ser
cativante. Casou-se quase que por imposição dos pais que desejavam livrar-se
rapidamente dos filhos, amparados por valores de que a mulher devia ter um
marido que a sustentasse. O casamento, de certa forma arranjado, foi articulado
pelo padrasto, Custódio, e buscou atender a um amigo, já de sua idade,
solteirão e esquisito, de nome Jaquelino, conhecido como Jack. Jack era o tipo
do homem desleixado, despreocupado com a aparência e mal encarado. Justificavam
dizendo tratar-se de homem trabalhador. E isso parecia bastar.
Casaram na Capela de São
Filiberto em cerimônia simples. Após houve recepção no salão de quermesse da
própria Capela. Luxo que o parco dinheiro permitia. Nada de fartura. Pratos com
batatinhas temperadas para serem disputadas, maionese, arroz e refrigerantes. Tendo
Custódio se recuperado do consumo de álcool não permitiu que se fizesse
presente na festa.
Na noite de núpcias, após
exaustivas tentativas, Jack não conseguiu seu intento. O membro viril não
estava tão viril, talvez impactado pela beleza transbordante de Alíria.
Brochou. Isso custou alguns tapas no rosto da moça já assustada pelo corpo
disforme e os maus modos de seu esposo. Mas enfim, tentativas frustradas e
outras exitosas, Alíria engravidou.
O temperamento incompreensível
do marido, alterando de humor num simples piscar de olhos, motivava discussões
e agressões. A violência produziu o primeiro aborto. O primeiro porque outros
sucederam. De alguma maneira a bela rapariga também passou a produzi-los. Decidiu odiar aquele homem e recusava-se ter um filho dele. Já não era a
mulher atraente de antes. Jack exigia que não se penteasse, maquiasse, ou
usasse roupas atrativas. Andava aos molambos. Chinelo de dedos, pés sujos,
olhar para o chão, fugidia e avessa a qualquer amizade. Mesmo com as vizinhas.
Compadeciam dela. Estava sempre esfregando, varrendo, lavando roupa, cuidando
da horta, carpindo e cosendo.
O tempo parecia correr mais
acelerado para ela. Envelhecia a olhos vistos. Uma luz, contudo, venceu suas sombras. Certa manhã, quando caminhando para as compras no armazém do Sr. Abel,
deparou-se com belos tecidos expostos em loja próxima. Acariciou uma estampa. Era
como se ela lhe trouxesse vida. De súbito apareceu um belo rapaz
prontificando-se em ajudar. Seus olhares se cruzaram e uma dose fatal de endorfina,
dopamina, oxitocina e vasopressina se misturaram em fabuloso coquetel
traduzindo-se em incontrolável taquicardia. Pálida, trêmula e muda buscou o
refúgio embolorado de seu lar.
- Bom dia, meu nome é
Franco, posso ajudar?, aquela frase pulsava em seu interior, bombeando sangue
de maneira avassaladora. Lembrava-se dos olhos profundos e dos lábios grossos,
carnudos, gentis.
Esse sentimento
descontrolado fez com que se perdesse nos temperos provocando a fúria de Jack e sofresse violenta surra.
O destino, porém, parecia
desejar martirizá-la. Varrendo a calçada deu-se de frente com Franco. Tentou
disfarçar os hematomas no rosto, mas o moço a segurou fortemente.
- Quem lhe fez isto? Posso
ajudá-la?, mas Alíria vencendo a si mesma correu para seu túmulo, desejosa de
romper com tudo aquilo, voar nos braços dele e fugir para qualquer lugar que
fosse.
Franco. Franco. Franco.
Sonhos eróticos passaram a fecundar-lhe as noites. Ao abrir os olhos via Jack,
nu, olhando-a, quase ereto e intencionando possuir-lhe.
Encorajou-se e começou a
deter-se mais na contemplação dos tecidos. Franco surgia resplandecente. Um anjo.
Dias. Semanas. Meses e alguns encontros clandestinos começaram a polvilhar sua
vida de esperança. Enjoos, tonturas, a barriga crescendo. Estava grávida. Jack
chegou completamente bêbado altas horas da madrugada após celebrar que seria
pai, embora a chamando de puta vagabunda e ansioso por manter relações sexuais.
A gravidez tornara Jaquelino
excitado para o sexo. Um inferno na vida de Alíria, pois tudo era acompanhado
por humilhações e agressões físicas.
Franco desejava matá-lo.
Alíria também. Mas ao que parece a própria desgastou-se dele e o fez despencar
do alto de uma caixa d´água em seu trabalho. Mortinho da Silva. Velório. Choro.
Flores. Pêsames. Algumas semanas e Franco estava hospedado na casa de Alíria. A
casa se transformou. Foi pintada. Semearam-se flores. Nasceu Violeta. Não se
parecia nada com Jaquelino, diziam algumas vizinhas em surdina.
A voz de Alíria voltou a entoar
belas músicas. E encantou tanto que um dos amigos de Franco, Kolinka, produtor
musical resolveu investir na carreira da moça. E investiu tanto que em certa
manhã, Franco despertou solitário. Alíria havia fugido levando Violeta e uma
pequena mala de roupas.
A voz de Alíria invadiu
rádios e canais de televisão. Sua foto, com a beleza ressuscitada, passou a
estampar jornais e revistas. A fama ocorreu com rapidez de um falcão peregrino
capturando um pombo. De uma casinha com bolores, rachaduras e infiltrações,
passou a residir em uma mansão luxuosa. Por inúmeras vezes foi procurada por Franco,
mas estava inacessível, intocável, tornara-se musa. Franco a amava. As humilhações
a que se submetia parecia não ofuscar seus sentimentos. Colecionava revistas,
cartazes, jornais com os quais decorava sua casa. A casa de Alíria. Um desejo
imenso de ver e sentir violeta, sua filha, o mantinha desperto nas noites mais
frias, rondando a mansão Pivol Hadassa.
Soubera que Alíria havia
permanecido pouco tempo com Kolinka, casando-se com um milionário, já ancião.
Em uma manhã a mansão
agitou-se com a descoberta de um homem no jardim. Morto. Talvez fome e frio.
Franco. Franco tornou-se um espetáculo. Alíria queria homenagear seu amor. Sua
voz doce e aveludada penetrava os poros e arrancava lágrimas da plateia. Uma estranha
emoção contagiava a todos. O espetáculo correu o mundo.
Todas as noites, contudo,
tinha pesadelos. Algumas vezes Jack e Franco a disputavam. Outras vezes lutavam
até a exaustão. Outros a acusavam de estarem vivendo em lugares escuros e
gelados. Denunciavam ter fome, sede, frio e saudade. Os via nus, sujos,
desfigurados em certas circunstâncias. Despertava encharcada de suores, abatida
e com olheiras profundas. Amigos diziam que precisava descansar, estava vivendo
em um ritmo alucinante de shows, entrevistas e gravações.
Em desses sonhos, Alíria
excitou-se com a presença de Franco. Belo e perfumado. Sentiu seu corpo quente
e nu. Sentia seu hálito quente. Sua respiração. Seu cheiro. O balbuciar de seus
gemidos. Ele lhe revelou que conheceria seu irmão, gêmeo, assim voltaria a
estar presente.
Os meses se sucederam. A
realidade do sonho se dissipava qual nuvens em dias de vento. Convidada a
apresentar-se em um desfile de modas foi atraída pelos flashes de um fotógrafo.
Era Franco! Quase desfaleceu na passarela. Esforçou-se para manter-se natural.
Vencendo as emoções, mandou chamar o desconhecido. Chamava-se Graco. Idêntico a
Franco, se não fossem as roupas da moda e as habilidades de fotógrafo. Mesmo
olhar, mesmo sorriso, mesma voz. Graco Sabázio. Um romance se iniciava. Longe
do olhar astuto de Humberto Hadassa, seu esposo.
Aos poucos, porém, Graco
revelou-se ciumento e possessivo. O amor gerou o sentimento de posse, a posse
criou insegurança, a insegurança violência. Em alguns momentos via Jack nos
olhos dele. Em outros momentos a doçura de Franco.
Em um quarto de motel o corpo
inerte de Alíria. Vários tiros. A beleza e a sedução da musa eram vencidas.
Descontrolado e com um receio desmedido de perdê-la, Graco decidiu por fim a
tudo. Quando os policiais chegaram ele os aguardava próximo ao corpo. Não
reagiu. Mudo seguiu algemado. Distante, revivendo em sua mente o sorriso, os
lábios e a voz de Alíria Pivol.
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