foto: Geraldo Bossini
Abriu
os olhos sonolentos exigindo trabalho redobrado das pálpebras. Espreguiçou-se,
lânguido, com um leve sorriso nos lábios. O calor das cobertas contracenava com
o sol que aquecia tudo lá fora. Após a higiene pessoal, aguardava-o o solene
café da manhã, repleto de opções apetitosas. Entre bons dias aconchegou-se ao
seu lugar preferido. Rapidamente, Elvis, um spitz alemão, veio ao seu encontro
no ímpeto de subtrair alguma guloseima.
Eduardo
nascera de uma família tradicional, abastada, de nome respeitado em toda
cidade. Desde pequeno percebeu o poder do sobrenome que carregava e da
influência política de seu pai e antepassados. Estudava em colégio particular
com aulas adicionais de inglês, francês e italiano. Como poucos de sua sala de
aula, conhecia várias localidades da Europa. Cada detalhe o tornava mais
admirado e fazer parte de seu círculo de amigos era algo disputado.
Distante
dali, em uma casa muito simples, residia Lucas. Casa de chão batido fincada em
meio a árvores frutíferas, rodeada por galinhas e seus pintainhos, além de
Bonaparte, um vira-latas amistoso e bonachão. O quarto de Lucas não era apenas
seu, sendo dividido com outros três irmãos menores. Em sua restrita privacidade
exibia seus sonhos através de fotos recortadas de revistas e coladas na parede
repleta de infiltrações. Automóveis, videogames, mansões e outros recortes que
fitava enquanto permanecia estendido na cama. O pai, Otacílio, era lavrador,
despertando na madrugada e retornando quando a noite já havia se instalado. A
mãe chamava-se Cleide. Lavava e passava roupas.
Lucas
acompanhara a mãe, algumas vezes, à bela casa de Rovigo Ancona, pai de Eduardo,
em seu trabalho diário. O rapaz tratava Lucas com descaso, sempre esnobe e
ignorando a presença do filho da serviçal.
Um
dia, contudo, algo afetaria de maneira significativa essa relação. Retornando
mais cedo da escola, Lucas decidiu ir até a casa dos Ancona encontrar a mãe. No
caminho surpreendeu Eduardo que havia cabulado as aulas e o salvou, por um
riste, de ser atropelado, enquanto se exibia para uma garota, distraído,
atravessando a rua. O fato fez com que Eduardo enxergasse Lucas. A tensão
inicial deu origem a gargalhadas e uma conversa animada que se prolongou por
toda à tarde. A partir desse dia passou a cumprimentá-lo e, gradualmente, o
inseriu em seu círculo de amigos.
Apesar
da censura de Dona Cleide, Lucas passou a frequentar a casa dos Ancona. Aos
finais de semana incluiu a piscina, passeios de carro e barzinhos. Vez ou outra
Lucas passou a aparecer com roupas de marca. Presente de Eduardo, justificava.
Eduardo
também recebeu alertas, veementes, de seus pais. Aquele rapaz não era pessoa
para se conviver. Esclareceram que alguns colegas estavam o repreendendo por
tal companhia e alguns familiares já os haviam procurado.
As
intervenções dos pais enraiveciam e indignavam a ambos. Em breve outras reações
eclodiram. Algumas garotas passaram a ironizar a relação entre os dois,
colocando em cheque a masculinidade de Eduardo. Risadinhas, comentários
zombeteiros, cochichos entre as colegas começaram a irritá-lo, a ponto de
maneira descontrolada, Eduardo ameaçar fisicamente uma delas.
Por
sua vez, Lucas passou a ser tachado como riquinho, em razão das roupas, tênis
de marca e ser visto em locais não frequentados pelos seus colegas.
Dois
mundos que se tangiam e faiscavam.
As
pressões os separaram. Eduardo voltou às antigas relações, embora agora as
considerassem superficiais e vazias. Lucas retornou à sua rotina, admirando as
fotos da parede e relembrando os bons momentos vividos. Dona Cleide não se
cansava de reforçar seu vaticínio: estava na cara que essa amizade não daria
certo!
O
Natal se aproximava. Comerciais de televisão enxertavam na memória de todos a
data que se aproximava e que deveria ser regada a presentes. As lojas
enchiam-se de luzes e cores, ofertas e papais noéis dos mais variados tipos.
Falava-se muito em respeito, solidariedade, caridade tudo muito untado com
músicas sentimentais e olhares piedosos. Na casa de Eduardo uma árvore soberba
foi montada em espaço especial na sala de visitas. Discussões sobre a ceia,
presentes e convites a familiares.
No
bairro conhecido como “Galo Magro”, Dona Cleide enfeitava um galho seco de
goiabeira com algumas bolas coloridas. Para a ceia teria lasanha, frango assado
e maionese. Um luxo para eles. Mas havia espaço para mais gente e muitos
familiares se reuniriam com algumas caixas de cerveja e batuque que prometia
avançar pela madrugada. Apesar da alegria reinante, as muitas conversas
animadas e gargalhadas, Lucas permanecia inerte em sua cama. As poucas economias
lhe permitiram comprar um jogo de meias e cuecas em promoção. Tendo o presente
em mãos dirigiu-se à casa do amigo.
Saudado
por Elvis, o cãozinho, adentrou a casa rumo à piscina onde ouviu vozes e o
barulho de pessoas que se lançavam na água. Eduardo o viu e correu até ele,
chamando-o de louco.
Com
as mãos trêmulas entregou-lhe o embrulho. Os olhos de Eduardo lacrimejaram. Embora
fosse ganhar um carro no natal, aquele presente tinha um significado especial.
Ganhando
espaços reservados levou-o para o quarto. Lá poderiam conversar tranquilamente.
Lá também as censuras e bloqueios se romperam. Desajeitados e tímidos a
princípio, foram dominados pelo desejo, sem entenderem exatamente o que os
impelia um ao outro.
De alguma forma, aquela tarde marcaria a
ambos. Não apenas a efusão de hormônios juvenis; não apenas uma declaração
contra a discriminação e a rejeição; não apenas um reencontro. Aquele natal
marcaria um novo rumo na vida de cada um.
A
noite teve a duração da passagem de um cometa.
-
Que noitada, heim! Feliz Natal!, recepcionou Rovigo vendo o filho chegar em
casa ao raiar do dia.
-
Passou a noite com a Natália?, perguntou curioso.
-
Outra, então?! Esse menino puxou ao pai...
comentou o homem abandonando a sala de estar, rindo com satisfação.
Eduardo
deitou-se. Acariciava dentro de si um segredo. Um presente de natal que não
poderia revelar a ninguém.
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