A recém mudança de emprego fez com que Augusto e Mariana chegassem a Crixás, em Goiás, onde a tia de Augusto, Dona Faustina, deixara uma casa que estava fechada e sem uso já há muitos anos. A cidade logo encantou Mariana, repleta de sonhos e expectativas, considerando a reviravolta que essas mudanças significavam. Acostumados à vida agitada da capital paulista, agora residiriam em uma cidade tranqüila, de aura muito boa e revigorante. Talvez pelo solo imantado de minérios a energia que fluía da cidade era maravilhosa. O contato com a natureza e muitos lugares agradáveis apontavam que ali era o lugar certo, em especial por Mariana estar grávida e desejava criar o filho em um ambiente mais seguro, onde pudesse brincar livremente, correr e divertir-se sem as preocupações que pressionavam os moradores de São Paulo.
A casa exigia muitos cuidados. Estava fechada há muito tempo e o último inquilino não soubera preservar a casa. A casa era imponente, arejada e espaçosa, tanto em seus cômodos quanto a ao seu redor, com áreas extensas em que o mato avançara destemidamente. Muitos ninhos se sucediam abaixo das telhas e alguns vidros das janelas estavam quebrados em razão do abandono. Alojaram-se em um hotel até que pudessem reorganizar sua nova residência. Augusto capinava e Mariana pintava as paredes, apesar dos enjôos freqüentes. Os guarda-roupas embutidos expeliam um odor de mofo e umidade.
No fundo da casa, próximo ao tanque de lavar roupas , um cachorrinho muito dócil havia feito sua morada e logo foi adotado por Mariana, apaixonada pelos animais, tanto que proibiu destruir os ninhos das muitas aves, em especial andorinhas que circundavam a casa. Escolheu com cuidado as plantas que comporiam os jardins em volta da casa. Optou por dracenas vermelhas, malvas, antúrios e pinhão roxo. A fachada foi pintada de verde, em tom de chá, vasos de rosas do deserto passaram a adornar a porta de entrada da casa. Era outra casa ! Rapidamente, Augusto e Mariana fizeram amizade com os vizinhos, excetuando Dona Etelvina, que morava em uma casa cercada de bambus já envelhecidos. A casa simples no fundo do terreno era antecedida por um gigantesco abacateiro e sobre a terra de chão batido emergiam uns poucos arbustos e percebia-se uma variedade considerável de entulhos, onde passeavam galinhas, patos e galinhas d´angola. Vivia de cara amarrada e ao que parecia morava apenas com o esposo, “Seu” Baltazar, um preto velho de testa franzida e olhar de censura permanente.
Augusto passava o dia todo fora no trabalho como geólogo e Mariana atravessava as horas do dia bordando ou tricotando, cuidando das plantas e conversando animadamente com seu cãozinho batizado de Amendoim.
Dentro dos guarda-roupas havia encontrado muitos terços e gravuras de santos, alguns irreconhecíveis. Alguns terços havia lavado e recuperado, outros estavam muito danificados e jogou fora. Havia uma certa curiosidade sobre quem havia morado ali. Apesar da boa energia da cidade, a casa parecia emanar algo desarmonizante. De repente sentia uma onda de irritação, uma tensão sem causa específica. Muitas vezes se controlava para não iniciar discussões com Augusto. Por vezes ficava inquieta, andando de um lado a outro, seguida fielmente por Amendoim, o que a irritava ainda mais.
Certa noite despertou sendo observada por um homem recostado à porta. Chapéu panamá, terno e bengala. Gritou desesperada, fazendo Augusto despertar num salto. O pobre moço rondou a casa toda e constatou estar tudo fechado. Tranquilizou-a. Havia sido apenas um sonho.
A impressão de ouvir um homem caminhando com uma bengala pela casa era eventualmente ouvido por Mariana. Percebeu ser sempre no mesmo horário. Pontualmente 18h. A partir disso, procurava acender uma vela diante da foto de Bento do Portão a quem tinha profunda devoção. A devoção começara quando caminhando a esmo pelo cemitério deparou-se com a sepultura repleta de flores e placas de agradecimentos. Estava desesperada com o problema de doença de sua mãe, recentemente desenganada pelo médico. Entre lágrimas depositou ali sua confiança. A mãe, Dona Cleise, recuperou-se misteriosamente. O médico recomendou uma série de exames, buscou ajuda de outros amigos da profissão, e sua mãe estava saudável. Era impossível. Porém, foi possível para Bento e a partir daí a ele passou a recorrer em todas as necessidades.
Agora existia algo circundando aquela casa. Somente ele poderia interferir. Augusto não acreditava em nada que não fosse visível, palpável e comprovável. Já Mariana aprendera a atentar-se ao intangível.
A vizinha da direita com a qual tivera bem mais reciprocidade dizia que a última família a morar na casa era um casal e a filha deles. Em razão de um acidente, o Sr. Osmar passara a viver em uma cadeira de rodas. O acidente trouxera vários problemas financeiros.
- Algumas vezes não passaram fome porque eu levava uma sopa no final da tarde, um pão feito em casa que fazia a mais, do contrário não tinham o que comer – comentou Dona Lina, relembrando-se dos dias amargos da família. A mocinha, coitada, sonhava com um príncipe, vivia atormentada, queria alguém para sua vida. Era bonita, até o dia em que uma doença invadiu o corpo dela. Era o que chamam fogo selvagem. Com tanto sofrimento a mãe da menina foi emagrecendo a olhos vistos e morreu ali, bem perto da paineira. Acharam ela lá, sem forças e sem vida.
A futura mãe ficou pensando nas novas atribulações que passaram vagando pelas ruas da cidade. Dona Lina não sabia do paradeiro deles ou o que havia acontecido após o despejo.
- No dia que a polícia veio botá-los para fora, tranquei-me dentro de casa, não queria ver aquilo. Sabia o quanto estavam sofrendo e precisavam de ajuda, mas a vida é isso, movida a dinheiro. A senhora me desculpe estar falando do coração de pedra de sua tia, mas foi desumano jogar aquela gente na rua... – complementou Dona Lina não conseguindo conter as lágrimas.
Apesar de conhecer a estória da família, não havia qualquer referência a um homem de terno e bengala. Continuou suas orações. Continuaram os passeios do homem às 18h pela casa.
Margarida nasceu saudável, contagiando a todos pela meiguice e alegria. Muito sorridente cativava a todos. Aos poucos ensaiou seus primeiros passos e começou vacilante a caminhar pela casa.
Aproximava-se a hora do jantar e Mariana estava debruçada na cerca, colhendo uns chuchus e conversando com Dona Cinira quando ouviu os gritos de Margarida. A cena foi traumatizante. Amendoim havia atacava a garotinha ensopada de sangue. Imediatamente a menina foi levada ao hospital.
Enraivecido e transtornado, Augusto disparou um tiro em Amendoim que caiu pesado no chão.
A menina havia sido muito ferida. Mariana rezava a Bento do Portão para que se recuperasse.
Entre as idas e vindas do hospital para preparar o almoço ao esposo deparou-se com Etelvina que olhava sua casa. Cumprimentou-a sem resposta. Irritada pelas ocorrências e a postura da mulher, questionou:
- Existe algum problema entre eu e a senhora? Disse-lhe “bom dia” e toda vez que a cumprimento a senhora me ignora, qual é o problema? – disse fitando firmemente a velha negra.
A mulher olhou-a com um leve sorriso, embora mantendo a cara de poucos amigos. Baforou de seu cachimbo, deixando um cheiro forte que parecia impregnar tudo.
- Sua filha não vai viver, assim como não vão ser felizes ninguém de sua família...- advertiu sem receios a velha senhora.
- Não entendo porque nos odeia. O que fizemos a senhora? O que minha filha inocente tem a ver com isso? O que eu ou Augusto devemos para a senhora? – perguntou indignada. Se algo acontecer a minha filha vou procurá-la, esteja certa disso.
Mariana deu as costas a mulher e adentrou a casa em prantos, tremendo todo o corpo a ponto de não conseguir segurar um copo para beber água.
Refletindo sobre as palavras da mulher relembrou os últimos dias de Faustina consumida pelo câncer, dizendo que todo seu sofrimento vinha “daquela casa”. Até então não tinha feito qualquer relação com isso, mas agora entendia que se referia a casa onde morava.
Resolveu perguntar para Dona Lina se sabia de algum parentesco entre os antigos moradores da casa e Etelvina. Ficou atônita ao saber que a mulher que morrera ao lado da paineira era filha dela. Chamava-se Nanaime. A própria Etelvina a encontrara morta e prometera vingança. Tanto que diziam ser a casa amaldiçoada. Ninguém mais morara ali durante anos.
Mariana criou coragem e foi até a casa de Etelvina. Foi recebida pelo velho Baltazar que a expulsou friamente, mas manteve-se ao portão, dizendo que só sairia dali após falar com a esposa dele. Etelvina olhou-a de soslaio pela porta da cozinha, enquanto jogava restos de alimentos para as galinhas que se atropelavam para saborear o que caía ao solo.
- Sei que sua filha é quem morava em minha casa. Quero falar com a senhora e só saio daqui após isso... – insistiu Mariana.
- Vá cuidar de sua filha, a minha já morreu. Vá cuidar da sua antes que morra também ! – ordenou a senhora.
- Sairei daqui após conversarmos – decretou Mariana resoluta.
Mas apesar da insistência a mulher não saiu e já começava escurecer. Precisava ver sua filha. Retirou-se abalada.
A menina exigia muitos cuidados e estava na U.T.I.
As coisas se tornaram mais dramáticas ao receber a notícia de que uma explosão de dinamites atingira Augusto. Agora eram dois no hospital. As notícias não eram positivas. Augusto ficaria em uma cadeira de rodas.
Mariana já estava um trapo, muito magra e triste. Ajoelhou-se diante do portão de Etelvina. Gritou por perdão em nome de Faustina. Os vizinhos tentavam arredá-la dali inutilmente.
Através de “Seu” Osvair, Mariana foi até Dona Dalva, benzedeira e vidente, bastante conhecida na região.
- A casa é guardada por uma entidade. Quem entrar ali será presa dela. Apenas desgraças podem ser esperadas. O melhor seria você ir embora dali, mas já que não pode, vamos tentar afastar de lá essa figura do mal.
Dona Dalva suava em bicas, as mãos trêmulas e lisas, mal conseguiam seguir as linhas da mão de Mariana.
A quiromante fez várias orações segurando firmemente as mãos interpostas de Mariana e prometeu que o problema seria resolvido. Fez um descarrego de pólvora e apenas pediu vinte e uma velas brancas e que defumasse a casa com folhas de eucalipto, casca de alho, bagaço de cana e folhas de bambu e pinhão roxo.
Margarida saiu do hospital e o diagnóstico de outro médico apontou uma possível recuperação de Augusto, lenta e gradual.
Passados alguns anos, Augusto retomou a agilidade e encontra-se plenamente disposto ao trabalho.
Enquanto conversa com Mariana e afaga a barriga com o novo bebê que se aproxima, mantém seu segredo. Adotou um novo cachorrinho, agora chamado Algodão. Etelvina continua alimentando seu desprezo.
Uma vela seria acesa a Bento do Portão, certamente ele guiara até Dalva e apontara os melhores caminhos para a felicidade da família.
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