Estou velha, mas posso me lembrar como se fosse ontem do que aconteceu ainda em minha infância. A casa é a mesma. Nasci no quarto onde hoje durmo e provavelmente onde vou morrer. Minha mãe teve onze filhos. Somente eu permaneci na casa. Meu marido faleceu já faz uns cinco anos e meus filhos ocuparam suas posições onde a vida quis. Comigo apenas Odete que preferiu não se casar, após uma grande desilusão. Haviam sido nove anos entre namoro e noivado para um dia Manoel chegar e dizer que estava se casando com outra. Odete refugiou-se na igreja. Ajuda a decorá-la, limpa e cuida, inclusive dos jardins ao seu redor.
Há muitas estórias que presenciei e outras que ouvi e que falavam de coisas fantásticas que aconteciam aqui pela redondeza. Uma das primeiras coisas que aprendi na vida, com minha mãe e minha avó, é que o dia é nosso e a noite é das almas. Por essa razão nunca saí à noite. Ao escurecer já me retiro para meu descanso, despertando ao raiar do dia para recomeçar minhas tarefas. Meus filhos brincavam que ia dormir com as galinhas, mas ensinei-os a fazer a mesma coisa. É preciso respeitar as coisas do além e não se brinca com os mortos.
Na casa da esquina desde quando morreu Catarina ela aparece lá. Morreu perturbada após sofrer com a perda dos pais, em menos de um mês faleceram os dois, deixando-a sozinha. Não dizia coisa com coisa e um dia a acharam pendurada na cozinha. Enterraram o corpo, mas ela ficou por lá. Os vizinhos dizem ainda ouvir os gritos dela. A casa está fechada até hoje e ninguém se atreve entrar lá. Quem entrou saiu que nem um tiro. Ela pergunta dos pais dela, do cachorrinho Lilás e que horas é a missa. Acredito muito que isso existe, pois todo quarteirão tem sempre uma estória pra contar.
A encruzilhada que é conservada no meio da praça é cheia de mistérios. As pessoas iam lá enterrar garrafas de pinga. Para cada pedido uma garrafa de pinga. Há quem enterrasse bens mais valiosos, por isso falam que há tesouros enterrados. A meia noite a pessoa chegava até a encruzilhada e logo um homem se aproximava. Vinha de terno preto, chapéu e fumando seu cigarro de palha. O que você queria ele fazia, tanto o bem como o mal, desde que pagasse enterrando uma garrafa de pinga. Deve ter um monte delas lá. Mas para acabar com o costume a cobriram de pedras, embora conservando-a. Agora você passa por lá durante o dia e vê as velas queimadas e as garrafas de pinga oferecidas durante a noite. O padre Jaime até propôs construir uma capelinha no lugar para desfazer esse costume da população, mas por alguma razão não vingou. Ela continua atraindo as pessoas. E se permanece é por que dá certo.
Até hoje não se sabe quem aparece lá. Uns dizem que é o “Seu” Caetano, um homem muito rico que viveu por essas terras e que vivia envolvido em malandragem. Uma tocaia deu fim a ele naquela encruzilhada. Era caminho que ele devia fazer para chegar em casa. Mas falam que morreu rindo e dizendo que “estava morto quem ficava”, ele iria viver pra sempre.
Tinha o caso também da Dona Guiomar. Na praça onde fica a igreja era antes a casa da Dona Guiomar, ex-escrava, diziam ser feiticeira. Quando foram construir a igreja cismaram que tinha que ser justo sobre a casa dela. Pegava quase todo o quarteirão na verdade. As outras poucas pessoas que residiam no local não se opuseram, mas Dona Guiomar resistiu. Era a casa dela, casa que ela amava. Foi levada para um asilo a contragosto e morreu logo em seguida de desgosto, de tristeza. A gente morre de tristeza também. Depois que morreu passou a aparecer à noite sentada no banco da praça. Muita gente conversou com ela como se falasse com uma pessoa viva. Ela lamentava terem derrubado sua casa e cortado suas árvores.
Tem também o caso do Quinzinho, um menino atentado, que vivia fazendo travessuras em toda a cidade. Um touro bravo o matou, enquanto fazia estrepolias no pasto. Agora faz milagres e no cemitério tem sempre muitas flores no túmulo dele. Há quem diga que ele também faz o mal, é só pedir e levar uns doces pra ele. Gostava muito de cocada. Cheguei a fazer pra ele enquanto estava vivo. Corria por essas ruas, ainda eram de terra e poucas casas formavam a pequena cidade.
Falavam do sacristão, “seu” Osmar contando que ele virava lobisomem e da Dona Jacira que virou pombagira. “Seu” Osmar mataram. Tem gente fanática; invadiram a casa dele e o degolaram. Depois queimaram a casa.
Antigamente tinha muito dessas coisas. Agora não se respeita mais o desconhecido, talvez por isso as pessoas sofram tanto. Andam durante a noite como se fosse o dia e não respeitam as horas fortes como o meio dia, às seis da tarde e meia-noite. São horas perigosas. Horas em que se abrem portas do além e os espíritos vagam entre nós.
Conta-se que o “Seu” Beltrão tinha o livro de São Cipriano e com ele fazia coisas extraordinárias. Tinham muito medo dele, quando morreu procuraram o livro pela casa toda e não encontraram. Como que por encanto o livro sumiu. Mas a casa também está vazia. Ouve-se gargalhadas no alto da noite. Cachorros uivam quando passam por lá.
Também me lembro de Dona Cici que recebia um preto velho muito firme e recebia de verdade. A gente chegava para ser atendida e ele já sabia de tudo. Às vezes tinha cinco pessoas esperando e ele mandava chamar primeiro a que tinha problema mais difícil. Curava da noite pro dia e o que falava estava escrito, podia esperar que acontecia. Agora muita gente finge que recebe a entidade apenas para ganhar dinheiro. Dona Cici não cobrava a gente é que insistia que ela recebesse uma galinha, umas frutas ou legumes. O preto velho também não queria nada. Tinha seu cachimbo e coité de pinga. Era o que precisava.
Também tenho vidência, algumas vezes percebendo vultos pela casa ou entidades passando próximas. Um dia vi Quinzinho passando pela janela em direção ao meu quintal. Sorri. Logo o cachorro começou a latir e ganiu como se tivessem batido nele. Era o garoto mesmo.
Eu, por minha vez, acredito que vou permanecer nessa casa. Não penso em sair daqui. Foi uma vida toda nesse lugar. Talvez se torne mais uma casa fechada, assombrada pela minha alma, assustando quem a visite, em especial em horários que não se deve, como as noites de lua cheia.
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