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A luz bruxuleante da vela de sebo mal iluminava o quarto imerso nas sombras. O movimento oscilante da chama criava imagens bizarras na parede de madeira. O lugar, rústico e sóbrio, traduzia uma cama já antiga, um criado mudo e um baú avantajado onde certamente as roupas eram acomodadas, além de outros objetos pessoais. A pobreza se revelava à medida que adentrando a casa se via na cozinha o fogão à lenha, sem se quer uma brasa acesa e sobre a mesa descansava uma fruteira empoeirada despojada de alimento. Duas ou três panelas com as tampas surradas jaziam a um canto em desuso. Duas pessoas encolhidas no estreito espaço entre a cama e a parede estavam atentas ao som do trotar dos cavalos lá fora. A madrugada ia em meio e como em todas elas ouvia-se as rodas da carruagem e os cascos dos alazões.
De olhos arregalados e coração descompassado, Alzira e a pequena Inês aguardavam que o silêncio retornasse denunciando que haviam sobrevivido. Mas naquela noite a sege pareceu estacionar em frente ao casebre. Alguns passos ao redor da casa, uma pressão na janela tentando abri-la e a voz de escárnio da senhora:
- Serás a próxima !
Aquele vaticínio gelou por inteiro o corpo franzino de Alzira. Uma lágrima escorreu de seus olhos, enquanto aproximava o mais que podia Inês de seu corpo, tentando protegê-la ou proteger-se. De qualquer forma fora escolhida e estava definitivamente condenada. Os passos se distanciaram e novamente ouviu-se afastar a Marquesa.
Alzira benzeu-se. Todos temiam a impiedosa Marquesa de Gwandoya, conhecida pelo seu prazer em causar dor e sofrimento a toda vila e moradores de suas terras. Não era possível dimensionar a extensão de seu domínio. Divertia-se sarcástica com os urros, o pranto e os pedidos de absolvição que sorrindo negava. Dizia-se eterna e eterna havia se tornado. Mesmo morta passeava pela vila durante as intermináveis madrugadas. Nunca haveria paz e segurança.
Inês era muda. Filha de Alzira e um viajante. Um forasteiro errante que perdido buscou abrigo na pobre casa. Recebeu um canto para dormir, se refazer, tomar uma sopa de nabos e aquecer-se ao calor dos seios da moça carente e frágil. A mãe morrera quando ainda pequena. Criada pelo pai sem muito afeto aprendera rapidamente as tarefas árduas do lar. O pai tinha rompantes histéricos, constantemente mal humorado. Nunca o viu sorrir. Mas o viu quebrar coisas, matar seu cãozinho a marteladas por ter entrado na casa e amaldiçoar a Deus a cada instante. De uma hora para outra desapareceu. Disseram-lhe que o haviam matado. Na vida sempre há alguém mais forte e não deve ter tolerado a grosseria do velho. Somente Alzira se submetia a ele.
O suor corria abundantemente, a fome formava um oco estranho no interior de cada uma. O sol despontava alheio ao sofrimento.
A Marquesa de Gwandoya conhecera a pobreza. Bela e sedutora corria pelos capinzais e plantações com a elegância de uma rainha. Apesar dos trajes sem luxo, qualquer adorno, fosse uma flor ou um cipó trançado tornavam-se especiais ornamentando seu corpo. Havia um magnetismo, uma força em seu olhar que atraía como um ímã qualquer homem que desejasse. Talvez tenha sido essa aura misteriosa que atraiu Dom João de Sudi, o poderoso senhor de Gwandoya. A crueldade da moça revelou-se aos poucos, maltratando as criadas, pisando sobre os camponeses, manipulando a vida de toda gente daquela região.
Depois vieram os flagelos, as prisões recheadas de torturas e as mais cruéis técnicas para gerar a dor, obrigando a presa a implorar piedade. Sentimento ausente na Marquesa. Contam que ela própria socou, no imenso pilão que mandara talhar, seu marido Dom João. Mesmo com idade avançava conservava a elegância, o olhar vivo e profundo, o sorriso juvenil. Não se sabe quando e de que forma morreu, mas o fato é que agora estava mais terrível que nunca. Intocável, invulnerável e dona de todas as almas.
A porta abriu-se num estrondo. Alzira levantou-se trêmula diante da sombra que se aproximava. Os olhos. Eram os belos olhos da Marquesa.
Despertou em um quarto escuro e lodoso. O frio congelava os ossos. Tateou até perceber a tramela da porta de madeira. A escuridão já não era tão intensa. Percebeu que estava nua. Arrancou com asco algumas lesmas negras e luzidias que deslizavam pelo seu corpo. Olhou ao redor buscando alguma referência. Parecia um bosque. Pisava em algo como que barro. Talvez fosse um pântano. Gritou por socorro. Nem um som. Nem eco. Estava definitivamente só naquele lugar ermo. Lembrou-se de Inês.
Chamou-a muitas vezes. Insistiu. Nada. Tentou correr, mas a lama não permitia. Seguiu adiante, sem rumo.
Talvez estivesse morta. Desesperou-se. Apalpou-se. Sentia seu corpo. Respirava. Beliscou-se. Sentia dor. Estava viva. Exausta. Faminta. Precisava de algo para comer. Não distante viu o vulto de alguém que passava. Chamou. Apressou o passo como pode. Ele seguia alguns metros à frente. Acelerava os passos à medida que Alzira se aproximava. Desapareceu em uma grande encruzilhada. Lembrou-se de seu pai. Apesar de todas as lembranças seria uma benção encontrá-lo. Seguiu um dos braços da estrada atraída por sons desconexos. A cada passo os sons se tornavam gemidos, lamentos, murmúrios de orações. Uma brisa leve e quente percorria o lugar. Um manguezal. Na lama homens e mulheres rastejavam aparentemente cegos. A falta de luz os tornara qualquer coisa que não era humana. Fugiu como pode das mãos que tentavam agarrá-la ou pedir ajuda. Alzira não se deteve para descobrir. Afastou-se aos prantos, tomada pelo pânico, confusa e assustada. Que lugar era aquele? Como chegara ali?
Encolheu-se atrás de um muro vencido pelo tempo ao ouvir, mais uma vez, a carruagem maldita da Marquesa. Teve a certeza de ter visto Inês junto da anciã perversa. Esgueirando-se seguiu as marcas das rodas. Distanciou-se até estacar-se impactada pela suntuosidade de um castelo de quartzo fumê. Glicínias floridas em cachos pendentes destacavam-se no cenário desolado. Um lago. Álamos frondosos. Um cenário que oscilava entre a beleza e o terror. O vento gélido parecia defender a fortaleza de possíveis intrusos. Tanto deus quanto o demônio podiam residir ali.
Vagueando entre as sombras adentrou o espaço ciceroneado pelo brasão de Gwandoya. Dois galos combatentes digladiando tendo uma lua negra entre eles com duas espadas cruzadas emcimadas por uma coroa de marquês. O eco era intenso. Quase impossível andar sem gerar ruído. O salão imenso mostrava uma escada em espiral logarítmica e várias estátuas. Pessoas petrificadas pelas artes secretas. O cheiro da morte volitava quase palpável, denso, acariciando o dorso de Alzira.
As mãos suaves da Marquesa seguraram com firmeza o pescoço da moça. De olhos esbugalhados viu turvar-se o rosto da poderosa anciã. Desmaiou.
Tateou o chão em busca de si mesma. As pequenas mãos de Inês justapostas denunciavam que estava mergulhada em oração. Uma ratazana cruzou o quarto farejando algo. A porta fechou-se bruscamente. Ouviu o coche afastar-se.
Conferiu o pescoço. Olhou Inês assombrada. A Marquesa às deixara viver? O que acontecera? Abraçou-se à imagem da Madona Negra estática em seu criado mudo. Levantou-se vacilante. Estava nua, enlameada, ferida. A um canto vislumbrou seu corpo estendido. Quieto. Mudo. Morto.
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