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Rosária era uma mulher
valente, corajosa, destemida disposta a enfrentar as vicissitudes e celebrar
alegrias com a mesma intensidade. Rosária do Mangue. Dona Rosária. Mulher
solitária. Aprendera a rudeza da vida, sem muitos sonhos ou ilusões. Sua vida
era sinônima de trabalho desde a mais tenra idade, quando sua mãe já impunha
tarefas específicas para cada filho, definindo responsabilidades e fazendo cada
um responder por seus atos. Falhas eram severamente punidas. Com catorze anos
estava casada e aos quinze acalentava a filha, rachava lenha e despertava de
madrugada para preparar comida. O marido saía cedo para a roça. Desse casamento
nasceu Cândida.
O marido morreu cedo.
Picado de cobra. Não deu tempo pra socorrer. Estava viúva e viúva ficou. Desde
os dezenove anos. Não quis bulir com homem nenhum. Já tivera o seu. Tinha
Cândida. Todos ouviam falar de Cândida, mas poucos a viram. Vivia trancafiada
em casa. Defendida pelo mau gênio e cenho cerrado. Poucas palavras. Um grito,
uma maldição e tudo voltava ao normal. Ninguém enfrentava Rosária. Alguns
moços sonharam conhecer a moça e quem sabe desposá-la. Encontraram a expressão
furiosa da octogenária.
O quintal de Rosária
era tentador para os moleques da redondeza. Repleto de mexericas graúdas,
figos, peras, bananas, caquis e jabuticabas. Vez ou outra o berro de Rosária
ressoava espantando a molecada que atravessava a cerca sem olhar para trás. Há quem
comentasse em surdina que todo mistério e clausura de Cândida dava-se em razão
de sua aparência física. Possuía cascos e chifres. Era filha do demônio. Isso
explicava a postura arredia, isolada e antissocial da anciã.
A pequena vila untada
em lendas e superstições talhava comportamentos e acontecimentos conforme sua
interpretação. Rosária não acompanhava as procissões e nem frequentava a missa
aos domingos. Sua vida resumia-se aos limites de sua propriedade. Cuidava da
horta, do pomar, das galinhas e de sua filha. Rosária realmente não professava
qualquer fé religiosa. A vida lhe mostrara que tudo se resumia a nascer, viver
e morrer. Morrer como morre a beldroega, a mangueira, o porco, o pardal.
Entendia vida como dura, inflexível, até má algumas vezes. Havia também
alegrias e compensações, mas a sobrevivência exigia mais energia do que
perder-se em bobagens. Não havia o bem ou o mal enquanto forças superiores. O
bem e o mal eram ações que as pessoas produziam a seu bel prazer. Assim como a vespa
pica e o gato acaricia.
Quando se via obrigada
a sair, com sua roupa irrepreensivelmente negra, em permanente luto, era
atendida com receio e apreensão no armazém, na quitanda ou na loja de tecidos. Com
as mãos trêmulas as encomendas eram entregues. Rosária apenas observava sem
importar-se com os olhares, os cochichos ou a frieza com que era atendida. Em
geral, chegava seguida de seu fiel cão. Um buldogue francês, com suas orelhas
de morcego, lábios muito pretos e a cara achatada repleta de dobras. Seu
companheiro comprovava ainda mais as cismas das pessoas. Ela tinha pacto com o
diabo.
A pessoa mais hostil a
Rosária era Maria Madalena Augusta Antúrio da Guia. Beata renomada tomando mais
decisões que o próprio padre. Sua palavra era uma ordem similar ao do Vaticano.
Nada acontecia sem seu conhecimento e aprovação. Não havia terço em que
Madalena não rogasse pela pobre alma de Rosária, entregue ao demônio e
necessitando ser recuperada. Apesar da pretensa preocupação com a alma da pagã
o objetivo era reforçar na comunidade a imagem de uma pessoa indesejada. O ódio
de Madalena foi se alicerçando década a década desde quando era jovem e apaixonada
por Everaldo.
Everaldo foi aquele que
comprou um pequeno lote de terra de seu pai em plena falência intermediado pela
doçura de Madalena. Sua indignação emergiu quando soube que o moço havia
comprado as terras para desposar Rosária. A trocara por ela! Remoeu essa dor
por anos a fio. Decidiu por fim quem sua infelicidade seria compartilhada. Se
Everaldo não era seu, também não seria dela. Pensou em contratar algum jagunço
para uma cilada. Planejou envenenar o poço da casa dos recém-casados. Imaginou
sequestrar e dar fim à criança que estava para nascer. Delineou a possibilidade
de adentrar a casa e matar a todos com a arma de seu pai. Optou por capturar
uma cobra e inserir no embornal de Everaldo, furtivamente, enquanto trabalhava
no cafezal.
Seu coração quase
explodiu quando a notícia da morte de Everaldo reverberou por todo vilarejo.
Tinha sido picado por uma cobra. Encheu-se de remorso. O remorso travestiu-se em
ódio. Desde então sob a égide da igreja articulava todas as maldades possíveis
contra Rosária. E Rosária não entraria mais na igreja.
De alguma forma
insuflava a população a crer nas artes mágicas da anciã. A seca ou a inundação,
a falta de alimentos ou a morte de um bezerro podia ter sido provocada pela
mulher. Houve um longo tempo de estiagem. A terra ficou seca e nuvens de poeira
circulavam pelas ruas arenosas. Muitas novenas e nada revertia aquela situação
inóspita. Os mais antigos olhavam a lua esperando um sinal de mudança no tempo.
Madalena organizou uma grande procissão que saía da igreja e se dirigia ao rio
que abastecia a cidade, já bastante comprometido. O andor de São Pedro foi
adornado e muitas velas distribuídas. Diante do rio aconteceria uma missa.
Durante o sermão, na
missa, Madalena conclamou a todos para expulsarem Rosária e sua filha demoníaca
da cidade, somente assim a chuva retornaria. A seca era um castigo divino por
todos aceitarem passivamente a presença daquelas pessoas. Estavam todos
furiosos. Alguns clamavam a morte a elas. Outros se ajoelhavam em penitência
sob o sol causticante rogando a misericórdia de Deus.
Dali rumaram para a
casa de Rosária. Estacaram diante do muro e passaram a gritar para que fossem
embora.
- Maldita sejas tu, Madalena!,
ressoou grave uma voz vinda de dentro da casa de Rosária.
- Maldita seja, mulher
do mal! Já não bastou ter assassinado Everaldo, queimado plantações, espalhado
a peste entre animais buscando causar-me o mal?, Rosária surgia como vinda do
mundo subterrâneo.
- Agora me acusas da estiagem?
E manipula essa gente para acreditar nisso? Malditos sejam todos! Merecem a
fome e a sede!
Um silêncio mortal caiu
entre todos, até que uma voz o rompeu, denunciando:
- Veem?! Ela nos
amaldiçoa com a fome e a sede! É ela a bruxa! A esposa do demônio!
Madalena aproximou-se
vitoriosa.
- Pois bem, Rosária. Nos
entregue sua filha e a deixaremos em paz!
Todos começaram a
gritar, alguns histericamente para que a filha fosse dada em sacrifício. Seria linchada
pela turba inconsciente.
- Terá de frequentar
muitas missas, seguir muitas procissões e participar de muitos terços,
Madalena, para que Deus aceite sua alma... não sou eu o demônio, mas você, lobo
com pele de cordeiro...jamais daria a minha filha, fruto eterno de meu amor com
Everaldo.
Rosária lançava as
palavras para atingir Madalena. Há muito havia perdido os medos. E continuou:
- Se desejam invadir
minha casa e matar a mim e minha filha, estejam à vontade, mas reflitam se é o
seu Deus que os ordena... ou carregarão um peso sobre-humano sobre vocês até que
a terra os consuma...
- Que saiam da cidade!,
gritava um.
- Vamos queimar sua
casa e tudo o que é teu, não queremos o demônio aqui!, resmungava outro.
E sem que alguém
pudesse conter um grupo rompeu a multidão e avançou para a casa, abrindo o
portão e derrubando a mulher. O velho buldogue rosnou, atacou, defendeu como
pode, até ser morto. Tochas foram acesas e o fogo alastrou-se. Escondida e
assustada no quarto, Cândida não compreendia o que estava acontecendo. Cândida
possuía os olhos amendoados, nariz achatado, cabelos lisos e um aparente
retardo mental.
Ao vê-la Madalena
sorriu e fechou a porta de madeira de modo a garantir que o incêndio iria
consumi-la. O que não esperava era uma viga despencar à sua frente impedindo
sua saída. As pessoas incontroladas haviam destruído a casa e ateado fogo aos móveis.
Na parede um quadro com
a fotografia de Everaldo. Madalena olhou súplice, mas ele parecia sorrir para a
desgraça dela.
No outro dia grossos
pingos de chuva inundaram a terra.
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