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A vassoura de piaçava levantava nuvens de poeira enquanto bailava pelo terreno ao redor da escola. Terra batida onde algumas galinhas insistiam em ciscar. Vez ou outra ouvia-se o grunhir dos porcos e o mugido sonoro de uma vaca. Nós, as crianças, corríamos inquietas por todos os cantos com criatividade e contentamento invejáveis. Esconde-esconde, pega-pega, cabra-cega ou um simples corre-corre que para os adultos não tinha sentido algum. O tempo passara e já haviam esquecido a alegria de simplesmente explorar o mundo e desafiar as próprias capacidades. Crianças haviam muitas. Filhas do Coronel, dos empregados e gente que vinha de longe para aprender alguma coisa naquela escolinha, modesta e grandiosa, que se erguia solitária em um canto da fazenda.
Eram muitas crianças. Maria da Guia, Joana, Carminha, Tereza, Clarinha, José – o Zé, Sebastião – o Tião, Marçal – o Chicote, Vanderlei – o Delei. Esses eram alguns, mais próximos, brincávamos juntos, mas na hora da escola surgiam outros, mais tímidos ou donos de si, valentões e namoradeiras. Dalva era a mais namoradeira. Vangloriava-se por ter beijado todos os meninos e para entrar no clã dos meninos havia a regra de já ter beijado Dalva, com o risco de ser excluído do grupo.
Mas se tinha escola, tinha professora. Era uma. Uma que valia por muitas, por dimensão e conhecimento. Era Dona Lode. Atenciosa, avantajada e severa. Conseguia ser tudo. Ela era a escola. Se alguma criança não aparecia, ela aparecia na casa da criança e no dia seguinte lá estava, em geral com lágrimas nos olhos. A distância entre a casa e a escola era grande. Ia-se a pé. Algumas descobriam coisas interessantes pelo caminho e se esqueciam das obrigações. Mas Dona Lode não se esquecia de nenhuma. Ensinava todos juntos, o que começava a aprender, o que gaguejava na leitura e o que já lia livros.
Ao redor da escola aconteciam as festas. Duas no ano. A festa de Santo Antonio, com fogueira, balões coloridos, batata doce assada e uma mesa repleta de doces. Depois a quermesse de Nossa Senhora Aparecida. Em ambas começava-se com o terço, as aclamações, a benção do Padre Godofredo e muita diversão. Dona Lode cuidava de todos os detalhes. Ela era a festa.
A escola também servia para algumas coisas que amedrontavam as crianças. Lá eram dadas as vacinas e o médico, de tempos em tempos, ficava lá para atender a todos. O Dr. Célio, dentista, também se postava ali, sereno e sorridente, mas não enganava as crianças com aquele brilho no olhar. Sabíamos suas reais intenções. Na escola se faziam reuniões. Mas aí as crianças não participavam. Às vezes saía até briga. Aí víamos Dona Lode escorraçar com eles. Ela era a ordem.
Na nossa sala de aula também acontecia missa, batizado e até casamento. A escola era o ponto de encontro de todos.
Maria da Guia era franzina, de cabelos avermelhados escorridos, grandes óculos, meiga e divertida. Os meninos não se encantavam por ela. Era a preferida de Dona Lode. Estudiosa, comportada, dedicada. Encantei-me. À princípio conversávamos muito. Depois veio o namoro. Outros namoros também se iniciaram ali, em nossa escola da fazenda. A Carminha e o Chicote, a Tereza e o Tião. Da Carminha nada sei, a família mudou. Tinham voltado para o norte. É o que diziam todos. Não sabíamos exatamente o que isso significava. O Zé enrabichou com uma sirigaita da cidade chamada Adelina. Clarinha, muito tempo depois, soube que havia sido internada em um hospício. Louca. O Delei caiu na bebida. Perdeu-se.
Já havíamos deixado a escola quando soubemos que ela seria fechada. Dona Lode tinha momentos de fúria e de lágrimas. Ao que parece seria desativada, pois todos deveriam ir estudar na cidade e haveria um ônibus para levar as crianças até lá. Sentíamos estar em uma Sexta-feira Santa. O clima era de luto. Lembro de Dona Lode comentando com minha mãe “os sonhos são como bolinhas de sabão”. Tinha os olhos encharcados. Todos achavam que ela não iria aguentar. Se a escola fechasse, Dona Lode morreria.
Agora estou na cidade. Tenho um comércio de fertilizantes. Casado com Maria da Guia. Pai de Gustavo e Denise. Sempre levo as crianças até os escombros da antiga escola. Lugar de sonhos. Bolinhas de sabão que começam a flutuar repletas de pequenas estórias. Um laço que meus filhos nunca poderão entender. Hoje vão à escola. Uma boa escola. Vejo que surge em algum momento uma Dona Lode, mas a escola é um prédio. Diferente da escola da fazenda. A escola era cada um de nós.
Outro dia vi a Dalva no mercado. Preferiu continuar beijando outros garotos. Conversamos alegremente rememorando nossa antiga escola.
Nas ruínas da escola não há crianças brincando. Estão em casa explorando redes sociais, jogando WarCraft e navegando por outros ambientes virtuais. Uma outra relação entre as pessoas e a escola se constrói e alimentado por minhas lembranças ainda não sei precisar se são relações boas ou ruins, contudo diferentes das que pudemos viver em nossa infância e adolescência.
Soube que Dona Lode havia sido convidada para trabalhar na escola da cidade, mas não pode. Lá se exigiam vários títulos que Dona Lode não tinha. Então ela não servia. Ao que parece abriu um comércio na cidade e passou a realizar a festa junina na praça e uma grande quermesse no dia de Nossa Senhora. Ela era a força.
Em alguns momentos penso em reerguer a escolinha, mas os tempos são outros. Ela não teria o mesmo significado. Não teria Dona Lode, nem as crianças daquele tempo, nem o Padre Godofredo ou o Dr. Célio. Ela foi um momento precioso e hoje uma relíquia que cada um acalenta a seu modo, mas sempre de uma maneira feliz, algo que foi bom e nos marcou para toda a vida.
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