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Olhando hoje no espelho vejo o quanto envelheci. “Meus Deus!”, clamo num sussurro incontido. Apalpo meu rosto delineado por rugas que se acumularam ao longo do tempo. Não havia as percebido com a intensidade que as vejo agora. Os cabelos brancos desalinhados, despenteados, rebelando-se a figura que se apresenta ali desenhada. Ainda ontem estava provando meu vestido de menina. Caminhando com graça e repleta de expectativas. Tantos sonhos modelados e tantas desilusões que se enfileiraram dia a dia, aguardando apenas sua vez de se anunciar.
Família rica? De forma alguma. Mamãe passara um bom tempo dedicando-se à família, depois decidiu que queria conquistar o mundo. Gostava de cantar, de dançar, de escrever versos. Uma artista. Acordamos uma manhã sem ela. Apenas um bilhete para meu pai que em seu silêncio nos sustentou. Era possível ver em alguns momentos uma lágrima que rompia a fortaleza e se apinchava resoluta denunciando sua dor e seu amor por aquela que o abandonara. Ele não se casou. Talvez o sofrimento tenha sido similar a uma espécie de ferrugem que o foi corroendo lentamente até comprometer sua vida. Definhou e morreu.
Assumi o desafio de viver sozinha. Muitos erros e muitos acertos. Caixa de mercado, atendente de loja de tecidos, faxineira de um Banco. No Banco passei a ser sistematicamente assediada pelo gerente, Felipe Jeremias. Acabei cedendo. Dali a gravidez. Totalmente indesejada. Relutei aceitá-la. Relutei mantê-la. Mas nasceu Robertson. A transferência de gerência me trouxe paz e ódio. Naturalmente Felipe não assumiu a paternidade. O olhar de Robertson me encorajava. Havia se tornado o objetivo, minha razão de existir.
Busquei de todas as formas oferecer o melhor a ele. Desdobrava-me. Pude ampliar meu salário mudando de trabalho. Na verdade o mesmo trabalho, mas em outro lugar. Um hotel de luxo, com contatos internacionais.
Naquela época não tinha essa aparência. Era jovem, bela, atraente. Cabelos negros e olhar profundo. Os olhos de Robertson são os meus olhos. Lembro-me de quando o levava para a escola, uniforme, lancheira e sua maleta sempre muito organizada. Muitas vezes ele se lamentou da ausência do pai, em especial nas datas onde as famílias se reuniam na escola ou nos momentos em que o foco era os pais dos alunos. Dia dos Pais, por exemplo. Nesses momentos ele se mantinha isolado, sentindo-se excluído e até culpado por não poder entregar um presente e receber um abraço. Para amenizar a dor dele reforçava que havia morrido, que estava com Deus. Esse meu descuido fez dele um ateu convicto. Se Deus o fazia sofrer não merecia sua atenção.
O sonho de Robertson era tornar-se médico. Empenhava-se para isso. Estudava muito. Na realidade vivia para o estudo. Acumulou desde pequeno vários certificados de “Honra ao Mérito” e medalhas que se traduziam em grande orgulho, em especial, para mim.
Aos poucos ele conseguiu contornar os obstáculos naturais de um menino pobre que alimentava um grande sonho. Na faculdade conheceu Lídia, que também cursava Medicina, e houve uma sintonia muito grande entre ambos. Lídia era de família abastada. Apaixonou-se por Robertson. Por ele e não por mim. Eu era uma faxineira e não tinha espaço nos ambientes que frequentavam. Gradualmente meu filho se afastou. Surgia para me entregar o boleto a ser pago, a relação de livros a ser comprada, a roupa o sapato que necessitava. Percebi que se envergonhava de mim e do meu trabalho. Eu o compreendia, embora sofresse.
No dia da formatura procurei colocar o melhor vestido, fazer-me bela para comemorar aquela conquista. O salão era luxuoso. Homens de terno e mulheres com joias caríssimas, contracenando com minhas parcas bijuterias. Robertson olhou-me com surpresa e puxou-me a um canto indagando o que eu fazia ali. Perguntou-me como ficaria sua reputação se soubessem de quem era filho. Disse saber como eu havia conseguido cada centavo. Pediu que eu me retirasse discretamente.
Entendi. O dinheiro da faxina sempre havia sido insuficiente. Minha beleza permitia ganhar mais diante da oferta de alguns hóspedes que generosamente propunham uma noite com eles. Confesso que realmente aceitei. Uma, duas, muitas vezes. Cada boleto, cada obra, cada necessidade de Robertson foi atendida. Estava ali agora, sorrindo e celebrando algo que acalentava desde moleque.
Há anos não o vejo. Nunca mais me procurou. Deve estar envolvido com muitas clientes, plantões e outros cursos. Sempre fora estudioso. Não iria se contentar em parar por ali.
Estou aqui agora diante do espelho com o qual converso cada dia. Ele me ouve e compreende minha amargura. Não me condena, não questiona. Apenas me observa. Ele acompanhou meu declínio, testemunhando o surgimento de cada ruga, de cada cabelo branco que despontava. Talvez tenha sido acusador algumas vezes e insensível, pois nunca enxugou minhas lágrimas. Ficou apenas olhando-as caírem.
Sinto meu coração fraquejar, estou trêmula e cansada. Creio que agora irá presenciar minha morte. Morte! Talvez eu tenha morrido há muito tempo, somente não tenha dado conta disso. É provável que eu tenha morrido com a fuga de minha mãe, com a dor de meu pai ou o descaso de Robertson. Talvez tenha morrido quando abandonei a mim mesma.
Minha imagem está cada vez mais embaçada, nublada. Será que foi sempre assim?
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