Lembro-me de Dona Dulce que morava em uma casa bem simples acima da casa da esquina. A varanda já se encontrava com a calçada separada por uma mureta de cerca de um metro de altura. O chão era uma sucessão de taquinhos coloridos e quebrados de maneira irregular, um vaso de copo de leite, uma cadeira, mais nada. Andava com seu vestido até as canelas, lenço na cabeça mal disfarçando seus cabelos brancos. Gostava de ficar descalça e andava para cima e para baixo com os pés no chão. As rugas escondiam a beleza de outrora, uma pálpebra mais caída que a outra e lábios voltados para baixo. Dizia que os médicos haviam a operado e enchido seu corpo de papelão. Acreditava profundamente nisso. Por isso era saudável, não sentia mais dores, nem dor de cabeça, gripe nem sabia o que era.
Minhas lembranças percorrem o tempo onde também posso localizar Dorival. Dorival havia sido encontrado na estrada, junto a um barranco, desmaiado, inchado que nem um balão de festa. Fora levado ao hospital e do hospital ao Asilo, embora não tão idoso. Não havia onde levá-lo. A família, de Minas Gerais, o havia abandonado. Desconsolado seguiu a estrada, sem rumo, passou fome, frio, tomou chuva, enfrentou o sol escaldante, às vezes uma esmola, um olhar desconfiado. Andou até atravessar o Estado de Minas e entrar no de São Paulo. Chegou no sertão de São Paulo, sucumbiu na estrada. Recuperado, prometia viver duzentos anos. Alegre e trabalhador reconquistou seu espaço como ser humano e gerou muitas famílias, pois era querido por toda a comunidade.
Havia também o João Mosquito, rapaz mirrado, magrelo, de olhar desconfiado, filho de Dona Sebastiana, beata qual só ela; se Dona Sebastiana não fosse para o Céu mais ninguém iria. Participava de todas as missas, confessava e comungava, constrita. O povo se perguntava o que tanto tinha para confessar. Outras bocas, as miúdas, falavam do seu pecado. Relatavam que João Mosquito era filho do Padre Raimundo e que tudo tinha acontecido no confessionário.
O povo mais antigo dizia que Dona Sebastiana virava mula sem cabeça. Havia muita gente que afirmava tê-la visto passar nas noites em que só a lua iluminava as ruas. Por outro lado, outros já afirmavam que João Mosquito se transformava em lobisomem. E que ele havia dado cabo do filho de Dona Cristina, de oito anos, que a desobedecera e havia ido na fossa de madrugada. Nunca mais voltou.
Lá no fim da cidade tinha a casa de Dona Lucinda, benzedeira, negra retinta, ex-escrava, temida por toda a gente. O que ela dizia se podia escrever. Era preto no branco. Se falasse que ia morrer, podia comprar o caixão, era velório na certa. Tudo fazia com uma ramo nas mãos. Até o padre a respeitava. Dizem que quando o Padre Raimundo chegou na cidade quis bater de frente com ela. Pôs a batina, pegou a cruz e a água benta e foi até o cafofo da senhora. Entrou, ficou um tempo e saiu esbaforido. Nunca mais voltou nem se atreveu a tocar no nome da mulher. Ninguém até hoje sabe o que conversaram, mas de qualquer forma a pendenga foi resolvida.
Perto da casa da Dona Lucinda morava Maria Dalva, mulher linda qual cometa em noite de pouca estrela, recebia os “grandões” da cidade, os fazendeiros, os barões, não “bulia’ com qualquer um, tinha que ser homem endinheirado. Com o dinheiro mantinha sua casa, a mais bonita do lugar, comprava roupas finas, jóias caras e ajudava a comunidade. Era quase uma santa. Era mulher valente, capaz de dar um tiro na cara de quem mangasse com ela.
Não posso deixar de falar do João Otávio, com seus cabelos pretos escorridos no rosto, sorriso aberto, sempre de bem com a vida, que trabalhava no açougue do pai, Seu Benvindo, gordo, pitosga, apaixonado por Maria Dalva e sem chance de chegar até ela, no máximo levar as carnes que ela encomendava. Sua esposa, Janete, tinha morrido. Um zebu tinha dado fim na mulher, bem no meio do pasto. Ela tinha levado roupas para quarar na grama e deu de topo com o bicho, já era tardezinha. Alguns diziam que tinha sido a Dona Sebastiana, quando virada em mula sem cabeça, pois estava de olho no açougueiro.
João Otávio era um rapaz bonito, muito atraente, mas não se engraçava com as garotas. Nem com Juju que faltava se lançar sobre o balcão ao pedir um quilo de lingüiça de porco fina. Dizem que ele havia ficado retraído desde a noite em que pegara um facão e entrara na madrugada para matar o lobisomem. Desde, então, isso havia se tornado obsessão e nas noites escuras se embrenhava na mata, voltando ao amanhecer. Prometera livrar a cidade da fera.
O lugarejo entrou em parafuso quando Dorival e Dona Dulce anunciaram que iriam morar juntos. Ela com setenta e seis anos e ele com sessenta e oito. Dona Sebastiana caiu em oração pelas almas penitentes. Maria Dalva a presenteou com uma belíssimo arranjo floral. Fofocas e risinhos à parte eles passaram a viver juntos, passeando de mãos dadas pelas ruas aterrorizando as mentes incrédulas.
Dona Lucinda, acompanhada de sua neta Malika, foram até a mata, certa noite de lua cheia. Dizia ter obrigações a fazer. Estava acostumada com isso e nada temia, mas respeitava o sobrenatural. Em certo momento pediu que a neta ficasse em silêncio e imóvel, concentrada, e afastou-se atraída por ruídos na redondeza. Seu olhar divisou as transformações do lobisomem e a fúria de João Otávio. Na clareira da floresta, no segredo da noite, os rapazes podiam viver o que jamais poderiam publicamente.
Seis meses depois Dona Dulce concebeu Gumercindo, que recebeu o apelido de Gogo. Seu décimo segundo filho, onze do primeiro casamento. Dorival festejava anunciando que teria mais dez. Mas Dona Dulce faleceu com setenta e oito anos, ficando o menino a cargo de Dorival e da vizinha Dona Cida, solteira e de olho no viúvo.
A vida corria assim na pequena cidade, buscando se dar jeito para tudo e viver como se podia, chuleando os dias, um ponto em cruz aqui, um pé de galinha ali, despreocupados em conquistar a felicidade, mas viver o que Deus dá.
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