Mais uma vez chegou esbaforido, lançando a mochila na cama, arrancando as roupas e dispersando-as pela casa rumo ao quarto. A internet havia se tornado um vício alucinante, mal conseguia absorver o conteúdo das aulas flutuando no mundo virtual: ansiava chegar em casa para ligar o computador e começar a conversar, inclusive com o colega que se sentava ao seu lado na classe. Ali passava o dia, buscando alguma refeição rápida, um refrigerante, uma tarefa de escola da qual não poderia se safar, uma paradinha para o banheiro. Assim transcorriam os dias de Felipe, dezesseis anos, olhos esverdeados, louro, pele alva e alto, bem desenvolvido.
A madrugada avançava ao som do teclado, quando na sala de bate-papo se apresentou Olívia. Uma garota de boa conversa e que logo chamou a atenção de Felipe. O objetivo do rapaz agora era chegar em casa e aguardar, roendo as unhas, que Olívia entrasse. Os meses correram velozmente. Olívia passou a ser um doce devaneio na mente daquele jovem. Aos poucos, revelou que era bem mais velha que ele, com trinta e cinco anos. Idade para ser mãe dele. Apesar de que Olívia nunca cedera às investidas do garoto, mantendo o bom papo, e uma curiosa sedução que enlouquecia o adolescente.
Olívia narrou que estava separada há muito tempo. O marido a deixara em troca de uma garota que conhecera na estrada. Era caminhoneiro e, entre tantas aventuras, conhecera Zuleide, menina ainda, mas o suficiente grande para arrancar-lhe o esposo. Ficara com seus três filhos: Teresa, Roberto e Tadeu. Trabalhava como lavadeira, de onde tirava o sustento para ela, a mãe e os filhos. O pai havia falecido há muito tempo e não tinha parentes próximos, exceto sua mãe, sempre amiga e companheira. Era ela e ela para dar conta de tudo ! Passava madrugadas na friagem, lavando roupas, sem tempo para descanso.
O rapaz ficava cada vez mais impressionado e ao mesmo tempo encantado pelas estórias que a mulher contava, tão cheia de vida, experiências e sofrimentos. Orientado por ela é que começou a dedicar-se mais aos estudos, gerando uma certa surpresa aos colegas e professores. Em especial as redações de Felipe passaram a ser destaque na sala de aula. Nelas, ele reproduzia muitos contos que Olívia lhe ditava. Olívia sempre lhe dizia que queria ter sido escritora, mas nunca havia tido oportunidade, em geral escrevia e amassava ou depositava em uma caixa que mantinha no forro, escondida para que ninguém zombasse de suas palavras mal escritas. Alguns poemas, Felipe levou para sua professora e ela ficou entusiasmada com o futuro do garoto. Ele buscava ocultar que eram de uma mulher que conhecera pela internet. Ao mesmo tempo sentia-se mal por isso e desejava revelar a todos a origem de seu repentino sucesso. Temia a zoação dos amigos. Preferiu calar-se muitas vezes.
Os meses de contato com Olívia foram levando-o a interessar-se em conhecê-la pessoalmente. Insistia, mas ela se recusava alegando que ainda era cedo, não era o momento, entre outras desculpas que Felipe não engolia mais. Desesperava-se ao mesmo tempo em que seu coração disparava só pensando o que faria frente a frente com ela.
Após forçar muito a barra, Olívia revelou-lhe que morava num bairro distante dele. Chama-se Jardim dos Flamboyants. Era o bairro mais antigo da cidade. Casarões preservados, algumas ruas ainda conservando os blocos de granito e onde evitavam asfaltar para conservarem o perfil de outrora. O bairro passou a ser freqüentado por Felipe. Pegava sua bicicleta e passeava por lá, na expectativa de encontrar Olívia. Ele já havia enviado sua foto a ela, mas a face de Olívia ainda se mantinha oculta, envolta em um mistério que começava irritar Felipe.
Um pouco mais de insistência e foi confidenciada o nome da rua. Uma tal rua Flor de Santana. Deixando a escola dirigiu-se avidamente para lá. Assustou-se. Eram casarões antigos, porém bem mal conservados. Representava que havia ingressado no túnel do tempo e vagava agora pelas ruas do passado. Compreendeu que Olívia deveria ser uma pessoa muito pobre e por essa razão se escondia. Perguntou a algumas pessoas se conheciam uma pessoa chamada Olívia que morava por ali. Nenhuma referência, ninguém a conhecia.
Felipe empertigou-se enquanto falava com Olívia e exigiu o número da casa. Iria vê-la em sua casa ou poderiam se encontrar na grande praça onde a rua terminava. Olívia disse que os mundos deles eram diferentes, já se tornara imenso desafio esse contato. Disse que o amava, mas por todas as razões nunca iriam se encontrar. Ciente do amor de Olívia, Felipe irritou-se ainda mais. Discutiu com a sua mãe por razões incoerentes, chutou cadeiras, atirou-se no sofá com expressão emburrada. Ela o havia seduzido e agora o desprezava.
Chorando mais uma vez, Felipe propôs se encontrarem.
- Diante de minha casa há uma mangueira de tronco muito grande, onde meus filhos brincavam..., explicitou Olívia reticente.
Mal soou o sinal e Felipe já estava em sua bicicleta rumo à Rua Flor de Santana no Jardim dos Flamboyants. Iniciou o trajeto logo no começo da rua e pedalou até a praça. Nenhuma mangueira ! Ela o enganara. Voltou mais lentamente, desanimado, olhando a calçada até que avistou a base de um tronco, grosso, demonstrando que ali havia existido uma grande árvore. Estava diante de uma casa muito velha. Uma mulher regava samambaias e folhagens plantadas em latas enferrujadas. Parecia muito idosa, tanto quanto aquele bairro.
Não conseguindo conter-se perguntou se ali havia existido uma mangueira. A senhora debruçou-se no muro como que contemplando o tempo.
- Sim havia, faz muito tempo...uma grande e viçosa mangueira. Ficava carregada. Mas por que quer saber isso, menino?, resmungou a anciã.
- Posso perguntar mais uma coisa ?, insistiu o rapaz.
- Pode dizer, é trabalho de escola? Muita gente vem aqui saber do bairro, e eu quase nasci com ele...disse sorrindo em tom amistoso.
- A senhora conhece alguma mulher chamada Olívia e que mora por aqui?, arriscou Felipe olhando para a face da senhora que pareceu abater-se.
- Olívia..., disse a mulher pensativa. Aqui não mora ninguém com esse nome...você sabe mais alguma coisa sobre ela?
- Não sei muita coisa, disse inocentemente o rapaz, sei apenas que ela tem 35 anos e tem três filhos...Teresa, Roberto e Tadeu...
A mulher empalideceu como se tivesse diante de um fantasma. Olhou o menino tentando raciocinar, com os olhos marejados.
- O que você sabe sobre ela?, indagou a velha como que aturdida.
- Sei apenas isso...a senhora a conhece?, persistiu.
- Ela faleceu há vinte anos. Era minha filha. Logo depois que Felipe caiu de cima da mangueira e morreu, ela não foi mais a mesma. Desgostou-se da vida. Teve uma doença no peito, tossia muito, morreu meses depois...como você sabe sobre ela?, questionou a mulher claramente perturbada.
- Acho que não estamos falando da mesma pessoa. A Olívia que estou procurando é lavadeira, a mãe dela chama-se Dora e o pai faleceu quando ela tinha cinco anos..., contou num impulso, quase levando a senhora ao desmaio.
- Dora sou eu, meu rapaz. E meu marido, Alcides, morreu quando Olívia tinha cinco anos. Não estou entendendo como você sabe de tudo isso ! Qual seu nome?
- Me chamo Felipe e converso todos os dias com a Olívia pela internet, não pode estar morta !
Ao ouvir o nome do garoto, Dora buscou um banco de cimento próximo para apoiar-se e sustentar o peso da emoção.
Dora, respirando profundamente, convidou o rapaz para entrar, mostrou a foto na sala. A foto era de uma moça belíssima.
- Esta é Olívia...não sei que jeito ela tem falado com você, mas ela morreu...a mulher começou a chorar partindo o coração de Felipe.
Num ímpeto olhou para o telhado. Buscou uma abertura e percebeu um espaço que permitiria que acessasse o forro. Pediu permissão, sob o olhar rubro e curioso da senhora. Não foi difícil divisar uma caixa de madeira oculta na poeira. Desceu-a e diante de Dora a abriu, trazendo à luz uma série de poesias carinhosamente arquivadas. entre elas muitas que haviam sido escritas para Felipe ao longo dos meses.
Num ímpeto olhou para o telhado. Buscou uma abertura e percebeu um espaço que permitiria que acessasse o forro. Pediu permissão, sob o olhar rubro e curioso da senhora. Não foi difícil divisar uma caixa de madeira oculta na poeira. Desceu-a e diante de Dora a abriu, trazendo à luz uma série de poesias carinhosamente arquivadas. entre elas muitas que haviam sido escritas para Felipe ao longo dos meses.
O marido a havia abandonado em troca de Zuleide. Nomes, acontecimentos, lugares. A caixa com as poesias. O encontro. Felipe: o mesmo nome do filho falecido dela. Morrera tuberculosa. Coincidências ?
O quadro com a foto de Olívia despenca da parede. De dentro do quadro salta um bilhete, já amarelado pelo tempo e marcado pela umidade. Nele escrito:
“Felipe, vou te amar sempre. Olívia”.
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