foto Geraldo Bossini
Após meses sem férias, Hugo e Renata decidiram conhecer o Acre. Destino: Santa Rosa do Purus. Hugo tinha verdadeiro fascínio em conhecer o Brasil, arquivando fotos coletadas na internet dos mais variados pontos turísticos. Pouco sabia sobre o Acre e a melhor maneira de conhecer seria visitá-lo. Sairiam da agitação e costumeiro corre-corre da Avenida Paulista e se refugiariam nas imediações da selva. Seria uma grande aventura, em especial para Murilo, de cinco anos, contemplado com todo arsenal de curiosidade próprio da idade. Murilo pouco conhecia além do apartamento e o zoológico, o Parque do Ibirapuera, que eventualmente buscavam para fugir do estresse do dia a dia.
Os preparativos e as expectativas, certa apreensão por parte de Renata, receosa de que algo ruim acontecesse, uma vez que sonhara várias vezes que uma anaconda engolia Murilo às margens de um igarapé. Por vezes, falou a Hugo se não deveriam buscar outro lugar, afinal poderiam ir para Fortaleza, Natal, Salvador, Recife entre outros locais em geral procurados pelos turistas. Mas não houve diálogo, a decisão havia sido tomada e Hugo era bastante intransigente.
A cidade era pequena, porém bastante aconchegante e logo encantou Renata e para Murilo foi uma festa, com espaço para correr e se divertir. Para Hugo era a realização de um sonho. Amava a natureza e a possibilidade de respirar ar puro, o cheiro da mata, de repente ver uma onça pintada, jacarés, araras e uma diversidade de outros animais o deixava sem fôlego. Ao menos era o que alardeava. A cidade ficava próxima ao Peru e as recordações de Macchu Picchu intensificavam suas emoções.
Uma caminhada pelo Porfírio de Moura, a praça e depois alguns momentos de descanso. Estavam exaustos pela viagem. Logo Hugo estreitou amizade com vários moradores da cidade, em especial João Guigó. A amizade entre as famílias se estreitou. João Guigó era amasiado com Teresa Canguçú, tinham como filhos Anajá, de seis anos, e Caiubi, de oito anos. Moravam em um casebre incrustrado na mata, isolados da cidadezinha. As visitas tornaram-se freqüentes. Murilo se deliciava.
Repentinamente, Hugo assumiu ares de caçador. Adquiriu uma arma e afirmou que iria caçar. João Guigó o advertiu, ali viviam em paz com a natureza. Respeitavam a vida da floresta, as plantas, os animais e os seres espirituais que ali residiam desde o início. Havia sim quem explorava os recursos, mas aquela família não permitia qualquer dano aos seus irmãos.
Teresa Canguçú em suas longas conversas com Renata explicava que o ser humano em nada se diferenciava dos demais seres. Haviam plantas e animais que adoeciam, competiam espaço, usavam artifícios para sobreviver e sobrepor-se, que diferença havia entre eles e o ser humano, questionava. Todos nasciam, viviam e morriam. Morrem brotos, morrem crias, morrem crianças. A dor do parto da mulher não é diferente da anta. O arranhão que fere o macaco produz a mesma dor quando fere o homem. A árvore velha cede em decrepitude como o ancião consumido pelo tempo. Animais e plantas haviam construído relações milenares, somente o homem não se considerava interdependente dos demais seres.
As comparações que Teresa fazia há princípio chocavam Renata, mas os passeios que faziam pela mata e as demonstrações, a análise vendo como tudo acontecia no mundo natural, deixou Renata reflexiva, nunca havia visto o mundo daquela forma. As plantas e cada animal passavam a demonstrar emoções, a ter uma vida como a de qualquer pessoa. Os pássaros machos exibindo-se e tentando seduzir a fêmea, que analisava e fazia charme, em outras estratégias de sedução. Os casais monogâmicos entre as aves, muito mais fiéis e comprometidos que muitos casais humanos que se inflamam de princípios e conceitos de moral e religiosos, para ocultarem o que fazem em momentos que não são vistos.
Hugo, no entanto, estava obcecado pela caça e não tendo o apoio de João Guigó decidiu embrenhar-se na mata sozinho. Havia momentos de incrível silêncio, como se todos os seres o espreitassem. A sensação de estar sendo observado era assustadora. Em outros insetos e aves emitiam sons diversos, sendo difícil identificar a origem. Os mosquitos mostravam-se também um transtorno em alguns momentos. Foi quando deparou-se com um caititu. Era o que precisava. Um tiro certeiro atravessou o crânio do animal. Pegou-o como a um troféu, subindo em um tronco de uma árvore caída e repleta de orelhas de pau e trepadeiras. Estava exultante.
Decidiu rumar de volta para a casa de João Guigó, apesar de suas repreensões. A mata parece ter mudado de posição e não conseguia mais identificar o caminho. Andou em círculos por um bom tempo. Ruídos nas folhas secas demonstravam que algum animal grande encontrava-se nas redondezas. Uma pancada na nuca e viu apenas o chão aproximar-se. Despertou amarrado em uma árvore de tronco grosso e áspero. Desesperado procurou dos cipós espinhosos que o atavam ao tronco. Com sacrifício e muitos arranhões e chagas desvencilhou-se e como que guiado chegou à casa de João Guigó já trade da noite. Em seu pescoço identificou em um cordão a bala que havia liquidado o caititu.
Embora assustado, Hugo não era pessoa de baixar a crista facilmente.
Passados alguns dias, em uma caminhada pela mata próxima, foi surpreendido pelo desejo do filho ao ter um macaquinho ao avistar a mãe macaca carregando em suas costas sua cria. Um tiro certeiro pôs fim à macaca. Diante do cadáver retirou o macaquinho indefeso e entregou ao filho.
Teresa Canguçú o repreendeu veemente, horrorizada. O macaquinho não suportaria e passados mais alguns dias realmente morreu. Hugo simplesmente lançou o corpinho do animal junto a uns arbustos. Renata o desconhecia. Aquele lugar revelava uma face de Hugo que jamais pensou que existisse. Passou a refletir sobre alguns reações violentas que demonstrava eventualmente, as reclamações dos funcionários da empresa apontando um caráter que ela não conseguia enxergar.
O dia amanheceu e Renata não viu Murilo na cama. Percorreu a casa. O passar do tempo foi deixando-a apreensiva. Hugo chegou com pães e leite. Achou que Murilo estivesse com ele. Não estava. Foram até a casa de João Guigó. Não estava lá. Entraram em pânico. Relataram o desaparecimento para a polícia. Andaram por toda a cidade. Nenhuma notícia. Ninguém havia visto o menino. Renata torturava-se com os sonhos que tivera com a anaconda. Caminharam às margens do rio. Alguns jacarés, pescadores, nenhum indício do filho.
Naquela noite, Murilo havia sido levado por Teresa Canguçú a uma família embrenhada na mata. Dona Maria Cubiu recebeu a criança. Desejava um filho, o que tivera havia sido engolido por uma anaconda. Impedida de ter outros filhos ficou realizada ao receber Murilo, que a partir daquele dia foi batizado com o nome de Camilo, o nome do filho morto. Renata nunca mais veria o filho, nunca o localizariam infiltrado na floresta. Assim como o macaquinho fora retirado da mãe, Hugo sentiria a dor da distância, da perda, do amor sem esperança.
Hugo e Renata caíram devassados pelo sofrimento. Dia a dia vasculhavam cada metro quadrado na esperança que se esgotava. Os dias de férias também esvaíam, mas não deixariam o lugar até que não tivessem informações do filho, fosse vivo ou morto.
Em uma ronda pela mata com João Guigó, Hugo irritado e cada vez mais inconseqüente disparou um tiro no crânio de uma capivara, que caiu morta instantaneamente. João Guigó abaixou-se e murmurou algo nos ouvidos do animal, acariciando a face e fixando com olhar feroz o descontrolado companheiro. Seguiram entre as árvores copadas. Até Hugo escorregar e ao tentar levantar-se sentiu o cano da arma de João Guigó em sua testa.
O homem não refletiu e disparou. O corpo de Hugo tombou pesado. João Guigó fez alguns cortes para que sangrasse e lançou-o no rio que ladeava o lugar. Ali piranhas e outros peixes iriam se banquetear.
A madrugada e o sol da manhã evidenciaram o pânico de Renata com filho e marido desaparecidos. Parecia ter enlouquecido vagueando pelas ruas da cidade e passando dias perdida na mata. Dizia que seu filho a chamava de dentro da anaconda e o espectro do marido podia ser visto preso na floresta. Passou a ter visões que impressionavam as pessoas.
Em uma casinha no seio da floresta Dona Palmira recebe diariamente dezenas de pessoas. Dizem que ela coloca a pessoa sentada em um toco e pelas costas os benze. Durante o benzimento tem visões e fala sobre a vida da pessoa fazendo curas e aconselhando sobre o hoje e o amanhã. Usa um xale feito da pele de sucuri. Não fala do seu passado. Ninguém sabe que seu verdadeiro nome é Renata e de toda tragédia que viveu naquele lugar muitos anos atrás. Os anos foram cruéis fazendo-a envelhecer terrivelmente.
Naquela manhã, Maria Cubiu preparava-se para levar o filho com estranha febre até a falada Dona Palmira. Talvez somente ela poderia curá-lo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário