As máquinas cavavam incansáveis o terreno onde seria construída a praça. Estavam previstas muitas árvores, inclusive frutíferas, um coreto para apresentações, bancos e uma academia ao ar livre e pistas para corrida, e outras destinadas a passeios ciclísticos. Era de grandes proporções e ousada. Pela primeira vez um gestor público olhava para aquele bairro, que embora o mais antigo da cidade, ainda permanecia semi-abandonado com ruas esburacadas e falta de infra-estrutura. A cidade crescera e os políticos se sucederam buscando garantir sua parte naquele latifúndio, despreocupados com a população, apesar dos embates jornalísticos, seja nas rádios, seja nos jornais, disseminando sempre inverdades visando sua eleição ou reeleição.
As obras em determinado momento paralisaram. Um ataúde indígena havia sido localizado, quase que totalmente conservado. Dentro dele além dos restos mortais de um homem adulto, havia um pedaço de gnaisse de forma retangular com diversas inscrições e um ídolo do mesmo material, representando uma figura antropomorfa. A descoberta era desconcertante, não exatamente pelo ataúde, pois outros já haviam sido encontrados, mas a pedra esculpida e o ídolo revolucionavam a história e a visão que se tinha dos indígenas desde a colonização portuguesa e perpetuada pelos padres da Companhia de Jesus ressaltando a importância de educar e moralizar os silvícolas, caracterizando-os como ignorantes, sem alma, sem religião, com objetivos claramente exploratórios e de subordinação.
Em pouco tempo a cidade viu-se projetada na mídia, inclusive internacionalmente. Era um achado de valor inestimável para a cultura (agora os indígenas a tinham!). Gustavo e Adolfo, pesquisadores e estudiosos da cultura indígena, buscando resgatar a vida, a história e a dignidade dos reais donos daquelas terras, passaram a dedicar seus dias e noites para decifrarem o enigma das inscrições na pedra. Entendiam a possibilidade de ser um mapa, embora não pudessem estabelecer referências sobre isso.
A obsessão de Adolfo superava a fome, a sede e o cansaço. Quando dormia sonhava com o ídolo. Nos sonhos ele se levantava e quando o fazia mostrava-se um forte e destemido guerreiro mochica. Transtornado pelas visões que o inquietavam, decidiu embarcar para o Peru e visitar Chan Chan. Entre as ruínas meditou, entregou-se ao Deus Sol, realizou antigas oferendas, aquietou-se para uma conexão com os antepassados. Por diversas vezes acreditou ter visualizado o ídolo em pé ao seu lado, olhando-o fixamente e apontando para o norte, mostrava-se porém de carne e osso, belo e altivo.
A viagem não trouxe, aparentemente, grandes informações apesar de possíveis similaridades. O fato é que aquela figura passou a apresentar-se a ela a qualquer momento, fosse em casa, no trabalho ou em determinados lugares em que se distanciava para descansar. Algo mais intenso ainda acontecia, ele desejava aqueles momentos. Esperava que ele aparecesse. Chamou-o de Aaj Beh.
Adolfo foi tomando a frente do projeto, enquanto Gustavo se distanciava atraído por outros trabalhos que surgiram e que demonstravam maior possibilidade de êxito. A tábua de gnaisse parecia clarear, apontando para estranhas rotas. O Piauí foi uma das descobertas. Decidiu fazer um passeio por alguns pontos começando por São Thomé das Letras, em Minas Gerais, depois a Toca da Esperança na Bahia, a Serra da Capivara no Piauí, os municípios de Itapetim, Afogados da Ingazeira e Carnaíba em Pernambuco, e a Pedra Lavrada do Ingá na Paraíba. Havia um mundo a ser explorado.
Henrique e Adolfo aceitaram o desafio de criar uma rota. Estavam juntos já há onze anos. Henrique havia estudado Geografia e sua ajuda seria primordial. Haviam incríveis coincidências sobrepondo o mapa que percorreriam e as informações contidas na pedra, apesar de que outros símbolos geravam dúvidas se estavam certos. Nas visões que Adolfo tinha e que sucediam a aparição de Aaj Beh apontava cenas das aldeias e rituais dos mais diversos, incluindo uma data em que muitas tribos se reuniam para venerar o ídolo.
Esses rituais em alguns momentos assemelhavam-se aos dos mochicas, onde após as bebidas, como a chicha, entregavam-se a uma série de orgias, ou o cauim dos indígenas brasileiros. Uma tormenta de idéias sacudia a mente de Adolfo, cada vez mais concentrado no assunto. Às visões das orgias, misturavam-se cenas de sacrifício onde o sangue alimentava o ídolo. E ele conduzia os xamãs a uma viagem a outros mundos e faixas vibratórias em que ensinava o uso das ervas, das pedras, das danças e sons na cura e no transe para que tivessem distintos poderes. Através destas viagens alguns eram capazes de conversar com espíritos que habitavam a floresta e até se transformarem em animais como a onça, o jacaré, a sucuri ou o mutum.
Um livro caiu nas mãos de Adolfo : “Viagem ao Desconhecido – Os segredos da Pedra do Ingá”, de Gilvan de Brito. A coincidência do livro em suas mãos demarcava outra fronteira: caminhava para o lugar certo. As conexões existiam. Estava lendo o livro em uma praça enquanto estava em Itapetim e um ancião aproximou-se. Demonstrava-se exausto pela idade que se arrastava, as rugas marcavam dolorosamente a face de alguém que um dia gozara de plena saúde e vitalidade. Mostrava claramente sua descendência indígena.
Sentou-se ao lado sem cerimônias fumando um cigarro de palha, talvez misturado com outras ervas, pois espalhava um odor amadeirado misturado ao fumo. Olhou Adolfo demoradamente envolto na fumaça.
- Sei que não está só...comentou o índio olhando para o chão como se pudesse atravessá-lo a qualquer momento.
- É... estou com uma amigo meu, mas ele preferiu ficar no hotel para descansar um pouco...disse ressabiado, sem entender por que estava sendo observado pelo velho índio.
- Hum...resmungou parecendo pensar, falo daquele que te segue...
Adolfo começou a sentir os músculos tremerem. Realmente aquele homem sabia mais.
- O senhor pode vê-lo também ? Há momentos em que penso estar ficando louco...revelou, quase que pedindo ajuda.
- Tá vendo lá em cima ? Aquela árvore ? Hoje quando escurecer vou encontrar o senhor lá...determinou o índio sem mais explicações.
Levantou-se e seguiu vagarosamente apesar de Adolfo tentar insistir em maiores esclarecimentos. Voltou ansioso e extasiado ao hotel. Henrique o advertiu para não ir, não conhecia o lugar, não conhecia o homem, não sabia o que poderia acontecer. Uma discussão emergiu somente extinguindo por parte de Henrique revelando suas preocupações e pedindo que tomasse cuidado.
Empunhando uma lanterna, Adolfo seguiu a trilha que levava para a grande árvore. Permaneceu solitário por um bom tempo, ouvindo os ruídos da mata escura, o pio das aves e controlando o medo. O velho índio surgiu do nada como uma aparição, levando Adolfo a um incontido grito. O homem fez um gesto para que o seguisse. Havia uma aldeia ocupando uma clareira na mata e vários homens tão velhos quanto ele estavam sentados em círculo ao redor de uma fogueira. Foi convidado a sentar-se em um espaço com um simples indicar de dedos. Sentou-se, tomaram uma bebida de milho, depois fumaram. Embora Adolfo não tivesse fumado, a fumaça os odores e os cantos monótonos o levaram a um estranho torpor. Os homens falavam com ele e ele entendia, mas não conseguia comandar seu lado racional.
De repente o velho índio apresentou-lhe o ídolo. Assustou-se. Era o mesmo. Um objeto sagrado, preservado há pelo menos três mil anos, oriundo de civilizações ainda mais antigas. A aproximação do ídolo em sua testa o fez sair em uma viagem astral onde viu Aaj Beh e um portal de luz se abriu.
O ídolo tornara-se uma machadinha de pedra para acertar o crânio da pessoa a ser sacrificada em sua honra. Adolfo foi banhado com sangue e depois lavado com ervas sagradas preparadas pelos feiticeiros.
O ídolo tornara-se uma machadinha de pedra para acertar o crânio da pessoa a ser sacrificada em sua honra. Adolfo foi banhado com sangue e depois lavado com ervas sagradas preparadas pelos feiticeiros.
Adolfo despertou em sua cama no hotel, sem saber como chegara lá. Henrique roncava em sono profundo. Era hora de retornar, nada mais havia a se fazer ali. Devolveria o ídolo ao Museu e ali deveria permanecer. No Museu estaria preservado e não cairia em mãos indevidas. O ídolo abria um perigoso portal, caminho que poucos teriam condições de adentrar e percorrer. Ele, no entanto, tornara-se um xamã, conhecia, agora, o segredo, esse segredo, porém, morreria com ele.
Olhando o mapa de gnaisse percebia que ele parava ali, exatamente naquela clareira onde sua vida tomara um novo rumo. Estava em uma outra faixa vibratória, com percepções extrafísicas que com raras pessoas poderia comungar.
Olhando o mapa de gnaisse percebia que ele parava ali, exatamente naquela clareira onde sua vida tomara um novo rumo. Estava em uma outra faixa vibratória, com percepções extrafísicas que com raras pessoas poderia comungar.
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