A land rover de Caio parou na estreita faixa para estacionamento na rodovia adentrando um pouco junto à grama que crescia livre. O lugar era afastado e a noite ia alta, sem lua e sem estrelas, vultos negros de árvores envoltas em cipós adornavam a paisagem. Uma coruja piava protegida pela escuridão. Ficou inseguro com a aproximação da moça junto à janela do carro. Era muito bonita, com os cabelos louros escorridos ao redor do rosto, olhos castanhos, lábios grossos, usava um vestido que mais se assemelhava a uma camisola de cetim ocre. Imediatamente os hormônios de Caio fervilharam, deveria ser uma prostituta, somente alguém com esse propósito permaneceria na rodovia deserta. Olhou em volta tentando identificar uma casa próxima, uma luz acesa talvez indicando presença humana nas proximidades, mas visualizou apenas a noite.
- Precisa de carona, moça?, adiantou-se, entre entusiasmado e curioso, olhando para os seios da moça, que mantinha um olhar tímido e acanhado.
A loura apenas fez sinal de sim com a cabeça, olhando para o chão.
- Entra aí!, mandou ele sorrindo no canto dos lábios, já imaginando o que aconteceria em breve.
Caio tinha vinte e dois anos, filho de um empresário muito bem sucedido no ramo de produtos de limpeza. Tinha uma vida tranqüila. Filho unido, desfrutava de todas as regalias e mimos que os pais pudessem proporcionar. Sempre fora um aluno pouco dedicado, empurrado ano a ano mais por influência da família do que por suas conquistas. Aprendera apenas a usufruir a vida, namoradas, boa mesada, carro à disposição. Iniciara a faculdade de Administração e abandonara. Odiava ler, ter que pensar, acreditando poder negociar cada nota, trabalho, e irritando-se quando não tinha certos caprichos realizados. Os amigos se aproximavam como abelhas, no intento de participar dos lugares que freqüentava e poder anunciar orgulhosos que eram amigos de Caio Isidro Leitão.
A moça acomodou-se quieta no banco ao seu lado, ajeitando cuidadosamente o vestido, cobrindo os joelhos. Manteve-se com a cabeça baixa.
- Como você se chama? Mora por aqui?, questionou olhando-a, buscando puxar conversa.
A pergunta seguiu-se de longo silêncio. O que levou o moço a interrogá-la novamente com a mesma pergunta, já levemente irritado.
- Meu nome é Lavínia, moro em Pinheiro Seco.
- Não conheço esse lugar, vou passar por Vila Flores, estou indo para Nova Prata. A menos que a gente pare aí próximo a algum pinheiro, se você quiser. Eu gostaria muito!, insinuou ele tentando abrir espaço para um tema mais picante.
- Não sei desses lugares... acho que estou perdida...confidenciou Lavínia, tremendo e chorando de dar pena.
- Olha, moça, eu parei o carro achando que você queria outra coisa. Não faço idéia onde fica esse lugar que você falou. Vou te deixar ali na entrada da cidade, aí você se informa, procura a polícia e alguém te ajuda – resmungou friamente, freando o carro ao avistar o primeiro poste de luz da cidade.
A moça olhou-o com ódio, sentiu-se rejeitada diante da impiedade do moço. Tocou-o de leve com os dedos muito gelados e sorriu, olhando-o profundamente nos olhos.
- Um dia você estará como eu, sem saber para onde ir e não terá um ombro amigo para se abrigar... disse, saindo e batendo a porta.
- Ah, vá jogar praga na sua mãe, ainda te dei carona, sua infeliz, devia ter deixado você onde estava – saiu derrapando os pneus, irritado.
Ao chegar a sua cidade, parou diante do Bar do Mathias e pediu uma cerveja. Como que atraída pelos odores de Caio, não demorou para que Ivânia aparecesse com os propósitos que ansiava.
A imagem de Lavínia permanecia em sua mente por mais que tentasse dissolvê-la. Acordava a noite com pesadelos estranhos. Algumas vezes desperta dando chutes pois sonhara que Lavínia, montada em um cavalo, em cima da cama o observava maliciosamente. Outras vezes via-se andando em corredores como labirintos quando Lavínia surgia do nada para pegá-lo, de maneira assustadora. Outras vezes parecia despertar no meio da madrugada tendo a moça sentada ao lado de sua cama chacoalhando-o e pedindo que a levasse para Pinheiro Seco.
Caio passou a apresentar um comportamento irrequieto, assustado, nervoso e distante, algumas vezes, como se desligasse da tomada. Otília, sua mãe, preocupou-se procurando dialogar com o filho na busca de encontrar as causas. Acreditava ser o rompimento com alguma garota, apenas se admirava pois Caio nunca se ligara a ninguém, usando e abusando de sua beleza e corpo bem torneado. Otília também estava sofrendo. Apesar de toda vida confortável mantinha uma vida de aparências com o marido que, como Caio, não se cansava de viver aventuras fugazes. Os desprazeres, a tristeza, as decepções e a superficialidade em que vivia gerou-lhe um mau físico que a consumia gradativamente. Variando entre remédios e estados de depressão não via mais sentido na vida. Caio estava criado, poderia viver sem ela.
Semanas transcorreram até que a empregada divisou-a estendida sobre a cama desacordada. Tinha uma expressão terrível no rosto. Já era tarde.
A morte da mãe descontrolou Caio que deu maior vazão às drogas. Aos poucos sua agressividade foi ampliada, gerando brigas constantes nas ruas, sempre amparado pelo pai e seus dedicados advogados.
Certa tarde, chegou cauteloso em casa. Rosa, a empregada, estava arrumando a cama de Caio. Ele a jogou sobre a cama e a violentou, exigindo silêncio ou ela seria mandada embora sem direito a nada. E avisou que isso aconteceria sempre que ele quisesse e como ele quisesse. Insensível às súplicas e lágrimas da mulher a cada dia exigia os maiores abusos.
Rosa tinha dois filhos pequenos e seu marido estava desempregado, precisava daquele emprego. Há muito tempo na casa e sendo de confiança do Dr. Adolpho, assim o pai de Caio exigia ser chamado, gozava de certos benefícios e de um ótimo salário. As ações de Caio, porém a minavam dia-a-dia, o que foi rapidamente detectado pelo marido, Camilo. Após meses, Rosa não agüentando mais revelou aos prantos o que vinha acontecendo. Revoltado o marido determinou que ela pedisse as contas e que ele se acertaria com o “filhinho de papai”. Assim Rosa fez, embora implorando que não se sujasse por aquele rapaz. O pai dele era influente e a corda estouraria para o lado mais fraco.
Escondido na penumbra, Camilo aguardou o retorno de Caio de suas noitadas. Ele teria que abrir o portão da mansão. A luz da land rover anunciou que se aproximava. Desceu visivelmente bêbado ou drogado. Ágil e movido por intenso ódio, Camilo aproximou-se e enfiou-lhe uma faca no abdômen. Ao vê-lo cair, disparou rua abaixo enrolando a faça banhada de sangue em um lenço.
Juntamente com Rosa e os filhos, Camilo fugiram-se para Anta Gorda, onde vivia a mãe da esposa.
Caio foi hospitalizado. A recuperação foi lenta e exigiu muitos cuidados. Já era um milagre ter sobrevivido. Estando o filho envolvido com drogas e sem pistas do autor, Dr, Adolpho achou por bem definir o acontecido como um assalto. Recuperado, contudo, o moço afundou-se ainda mais no submundo das drogas, agora com mais pesadas.
Tendo um nome a zelar na cidade, Dr. Adolpho decidiu internar o filho. O local escolhido foi o temido Castelo do Uruçú. O antigo castelo funcionava como clínica, caríssima, e era voltada para atender rapazes que haviam “se perdido”. Na clínica, pais ricos internavam seus filhos drogados, bêbados, homossexuais e todos aqueles que desejassem excluir do meio social, entendendo que seriam uma mancha nos nomes de suas tradicionais famílias.
A decisão foi difícil, mas necessária no entender do poderoso homem de negócios. Provavelmente quando reencontrasse Caio, ele estaria socialmente aceitável.
Na recepção, Caio recebeu uma saudação cordial de um rapaz de olhos alegres e muito vivos, simpático e receptivo. Recebeu o pagamento pelo seu ingresso e o conduziu para o interior do Castelo. Estava apreensivo, tenso, mas dominava-se, pois se determinara provar ao pai que daria a volta por cima. Seu orgulho estava gravemente ferido. Adentrou uma sala cinzenta e mal iluminada, com armários de madeira embutidos e aparentemente bem antigos. Não demorou para que uma porta se abrisse e dois homens mal encarados, feios qual carrancas, adentrassem. O mais velho, com cara de poucos amigos e grosseiro em seus modos, encarou-o:
- Sou Dr. Cármino, sua estadia aqui terá a duração da mudança de seu comportamento. As regras são rígidas e inflexíveis. Não receamos usar métodos que venham acelerar o processo de recuperação. Este é Ferrão, ele vai estar de olho em você. Tenha certeza de que ele saberá tudo o que faz e agirá quando necessário. Agora dispa-se e o siga.
-Não vou ficar aqui e não vou obedecer ordens, você deve saber quem sou...arriscou Caio, olhando o médico bem nos olhos.
O médico sorriu sem demonstrar qualquer receio. Já estava saindo quando retornou e disse:
- Aqui você não tem nome. Você será chamado de Beta26 e não se atreva não atender rapidamente. Agora vá com Ferrão para o seu quarto.
Caio seguiu o enfermeiro pelos corredores escuros do Castelo até um cubículo com odor de mofo e grades nas portas. Dentro dele uma pequena janela muito alta e impossível de alcançar, uma cama de pedra com um colchonete fino e um travesseiro forrado de um tipo de nylon grosso e desgastado e um sanitário que mal o cabia.
- Este é seu quarto, entre!, ordenou Ferrão.
Caio sorriu indignado.
- Meu pai não está pagando esta espelunca para eu ficar num lugar desse. Leve-me para outro lugar, quero um quarto decente agora !, gritou aproximando-se bruscamente e tentando agarrar o pescoço do enfermeiro.
Caio saltou para trás, após receber uma forte picada na barriga e uma descarga elétrica.
- Não me chamo Ferrão à toa. Entre agora em seu quarto ou já vai conhecer exatamente em que lugar está, falou o homem empurrando-o.
Ao entardecer Ferrão foi buscá-lo. Abriu a grade e gritou: - Beta26, siga-me !
Caio chegou a um amplo espaço com chuveiros onde outros banhavam-se. A maioria apresentava um olhar desalentado, talvez dopados. Outros tinham algemas e correntes unindo os tornozelos. Uns bem poucos desfrutavam de aparente liberdade consciente. Recebeu uma toalha e um sabonete que mais parecia sabão caseiro.
Enquanto se banhava aproximou-se um rapaz moreno, do grupo dos lúcidos, examinando seu corpo com o olhar.
- Pode me emprestar o sabonete?, perguntou olhando-o com certa malícia.
Ao entregar, o rapaz deixou-o cair e com a explanação “que pena, caiu”, ajoelhou-se muito próximo com intenções bem definidas.
Caio agarrou-o pelo pescoço, desferindo vários socos e esbravejando dizendo que “só mulher fazia aquilo nele”. Imediatamente enfermeiros se aproximaram liderados por Ferrão e Caio caiu sonolento em razão de uma injeção com potente tranqüilizante.
Despertou em uma cela coletiva com pelo menos oito homens de diferentes idades.
- Vejam, nosso garoto está acordando...anunciou um deles.
- Quer dizer que você surrou o Aníbal ? E vocês sabem por que? Por que ninguém faz aquilo com ele ! Só mulheres ! Mas aqui não tem mulher e o que fazemos então? , esbravejou outro.
- Fique sabendo que aqui são todos iguais. Todos andam nus, não há distinção de roupa. Mudam os nossos nomes: sou Beta34, ele é Beta 45, ele é Beta69, ele é Gama 14, ele é Gama 23, ele é Gama 78, ele é Fi2, ele é Fi8. A letra grega se altera mostrando o grau de liberdade de cada um. Quem chegar a Ômega fica livre e volta para casa. Tá entendendo em que posição você está ? Os Alfa ficam presos o tempo todo em suas celas...o mais velho explicou-lhe. Você é Beta26 porque o 26 antes de você sumiu, morreu, não agüentou aqui.
- ...e você vai saber que aqui não se agride ninguém, e como castigo, disse o mais jovem sorrindo, você será nossa mulherzinha, enquanto a gente desejar...
A vida de Caio tornou-se um inferno, andando nu arrastando correntes que uniam seus tornozelos e algemado com as mãos para trás, sendo apenas liberado para o banho e refeições. A cada agressão que produzia era sedado e recebia diferentes castigos como choques elétricos, câmara escura, um lugar repleto de sapos como um brejo artificial, além de surras com chicotes.
A forte dependência o fazia ter alucinações e crises terríveis.
Aos poucos aquietou-se. Viu um rapaz ser zombado e obrigado a orar para um tal deus Cudumolo. Os enfermeiros assim agiram quando o viram pedir ajuda a Nossa Senhora. Com tapas no rosto dele disseram que ela não existia, que a crença dele era falsa e que Cudumolo era verdadeiro. Caio percebeu que o objetivo real não era levá-lo a cultuar esse deus que provavelmente nem existia, mas inferiorizá-lo e fazê-lo perder gradualmente qualquer referência: sem nome, sem religião, sem família.
A atividade no Castelo era intensa: os internos cuidavam da limpeza, da horta, da avicultura e suinocultura, estavam sempre envoltos em atividades. Um espaço, como uma capela para Cudumolo, permanecia reservada para que as pessoas perdessem suas crenças pessoais, seus valores e assim descaracterizavam-se a si mesmas, adentrando um mundo sem raízes e sem lembranças.
A atividade no Castelo era intensa: os internos cuidavam da limpeza, da horta, da avicultura e suinocultura, estavam sempre envoltos em atividades. Um espaço, como uma capela para Cudumolo, permanecia reservada para que as pessoas perdessem suas crenças pessoais, seus valores e assim descaracterizavam-se a si mesmas, adentrando um mundo sem raízes e sem lembranças.
Todos os abusos e violência contida naquele lugar aos poucos tornava a pessoa vazia. Quem chegava a Ômega e raros os que conseguiam deixavam o Castelo completamente submissos, robotizados, inúteis e assim eram devolvidos ocupando os espaços Alfa, isolados, abandonados e mortos vivos.
Somente depois de muito tempo, anos talvez, é que Caio submeteu-se a um diálogo com Dr. Cármino. Estava aterrorizado com as visões que tinha de Lavínia, sempre caminhando ao seu lado onde quer que fosse. Relatou a carona que dera a moça e tudo o que acontecera, inclusive a morte de sua mãe.
Dr. Cármino, bastante surpreso, disse que Pinheiro Seco era o antigo nome de Vila Flores. Caio não acreditou. Entendeu que talvez já soubesse disso e o encontro com Lavínia tivesse sido alguma alucinação, fruto das drogas que usava. Aproveitou a presença do médico e perguntou se já não era o momento de sair, não sentia mais a necessidade da droga. Estava calmo e já auxiliava em diversos serviços no Castelo.
O médico sorriu, simulando tristeza, e revelou que Adolpho perdera toda a fortuna com mulheres. Há meses não acertava as mensalidades. Havia desaparecido, ninguém conseguia localizá-lo, talvez tivesse sido assassinado.
A impossibilidade de voltar para casa e a idéia de estar pobre fizeram renascer a fúria e a violência em Caio, levando Ferrão a aplicar-lhe choques elétricos. As doses, porém, excederam-se e Beta26 passou a portar-se como um robô, permanecendo sentado diante de uma grande janela gradada que dava para o pátio interno do Castelo.
Com andar cauteloso, Lavínia aproximou-se e disse-lhe que voltaria para a estrada. Precisava pegar uma carona que a levasse para Pinheiro Seco.
Mensalmente, Dr. Cármino recebia vultuosas somas para manter Caio ali, sob absoluto controle do Castelo.
Caio estava só, sem um ombro amigo em que pudesse se escorar. Uma lágrima pesada escorreu-lhe pela face amargurada.
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