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As folhas secas insistiam em adentrar a varanda da casa trazidas por um vento persistente. Diante da casa o jacarandá mimoso exibia suas flores arroxeadas, aliás toda a rua em sua longa extensão era ornamentada por essa árvore. A visão era belíssima na época de seu florescer. E foi nesse cenário que cresci. A casa já pertencera a minha avó Mafalda e com seu falecimento foi herdada por minha mãe. Uma casa repleta de estórias da família. Na época de minha avó a casa era bem mais movimentada. Lá moraram também meu avô Celestino e meus tios Chico e Januário. Chico gostava de escrever poemas zelando pelo rigor das rimas e estribilhos, pegava o lápis e deixava a mão percorrer o papel que embrulhava o pão. Então guardava na gaveta de seu criado-mudo cada emanação de sua alma quase sempre turbulenta, triste e lamentosa.
Januário era homem da roça, pegava o caminhão de turma com seu embornal a tiracolo, sua marmita e saía para colher tomates, limões, goiabas conforme a época e as safras. Gostava daquilo. Após o trabalho apreciava uma branquinha. E apreciou tanto que passou a saboreá-la progressivamente mais vezes ao dia até abandonar a colheita e encontrar-se pelas sarjetas.
Enquanto Chico era recatado, preso em seu silêncio e poesia, Januário era extrovertido, cheio de contar estórias e mulherengo sendo-lhe atribuída a paternidade de muitas crianças em diferentes pontos da vila. Minha mãe era a caçula, Verônica, assim batizada por ter nascido em uma Sexta-feira Santa e em homenagem àquela que limpou o rosto de Jesus.
Apesar da época minha avó mostrava-se revolucionária e altamente feminista, inclusive na religião católica que seguia a seu modo. Segundo ela o trabalho de Jesus não fora evidenciado pelos doze apóstolos, mas por figuras femininas delicadamente olvidadas pela Igreja. Sempre nos reunia para falar sobre isso. Dissertava longamente sobre a importância delas com a Bíblia nas mãos e abrindo-a solenemente repetia “ ...e Joana, mulher de Cuza, procurador de Herodes, e Susana, e muitas outras que o serviam com seus bens”, em Lucas 8:3. A citação “e muitas outras” a perturbava, dizia que se fossem homens seriam citados um a um. Dizia que essas mulheres o patrocinaram e sem elas nada teria atingido as proporções que tomaram a divulgação da crença.
Em outros momentos falava de Maria Madalena ressaltando João 19:25 “ e junto a cruz de Jesus estava sua mãe, e a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Clopas, e Maria Madalena”. Questionava em que lugar estariam escondidos os homens. Depois relatava a aparição de Jesus a Maria Madalena. Na sala da casa havia um quadro onde se via a cena da aparição, onde Madalena exclamava “Raboni !”.
Falava de Verônica e sua lição de humildade. Traçava sérias críticas ao próprio Jesus relacionando trechos onde ele se dirigia aos apóstolos com frases ofensivas e depreciativas como “ raça de víboras, como podeis vós dizer coisas boas, sendo maus? em Mateus 12:34, e outras similares em Mateus 3:7 e 23:33, Lucas 3:7, chegando ao ápice quando rejeita a própria mãe. Ela se exaltava e dizia que as pessoas deveriam ler melhor a Bíblia.
Mas Dona Mafalda era uma boa mulher, acolhendo os vizinhos como mãe e ajudando a todos que podia com alimentos, roupas ou uma palavra amiga.
Um dia ela encontrou Chico dependurado na rancho no fundo da casa. Aparentemente sem motivos. Deixara na gaveta suas poesias. Levaria consigo seu segredo. A verdade é que Chico nutria sentimentos que considerava anormais e diabólicos. Estava sendo tentado. Um sentimento que provocaria a ira e a incompreensão de sua mãe, de Januário e de sua irmã Verônica. Sentia algo estranho por Rodolpho, filho do dono do armazém da esquina. Diante da impossibilidade de externar seus sentimentos e ser compreendido, preferiu dar fim a sua estória. Os poemas apaixonados demonstram uma paixão secreta, mas onde se lia “ela” em seus escritos, devia-se ler Rodolpho.
Januário bebeu todas as beberagens possíveis que diziam para Dona Mafalda que combatia o álcool, de coração de galinha preta torrado a rezar o Salmo 87, simpatias e benzedeiras. Nada ! Um irmão de Mafalda, Tibério, e alguns primos viviam vitimados por isso. A maioria morria em razão da bebida.
Meu pai morreu cedo em razão de uma explosão na pedreira. Trabalhava lá e foi atingido por uma rocha bem na cabeça. Eu tinha cinco anos. Minha mãe não quis arriscar-se a outro casamento. Dedicou-se a sua carreira de professora e a mim. Cresci entre livros e totalmente desinteressado por eles, embora como meu tio Chico gostasse de rabiscar no papel alguma poesia.
A influência maior, contudo, foi de meu tio Januário e sua vida boêmia. Comecei a sair cedo com amigos e a descobrir os muitos prazeres trazidos pelas bebidas, mas fui tragado pelas drogas, experimentando e experenciando cada uma delas. Os confrontos em casa passaram a tomar grandes proporções, tendo a suprema compreensão de minha mãe Verônica.
Quando o dinheiro escasseava acabava fazendo programas com homens mais velhos. E assim conheci Aderbal á com seus cinquenta anos e se apaixonou por mim. Era uma fonte inesgotável. Roupas, tênis de marca, pulseiras e correntes de ouro – que muitas vezes eu comercializava em troco da droga – ou dinheiro que recebia por meu carinho e dedicação.
Enquanto ainda saía com Aderbal conheci Mônica, uma pessoa maravilhosa e que decidiu me tirar do submundo das drogas. Naturalmente ela não sabia de outros relacionamentos que eu cultivava em especial com homens que me pagavam muito bem.
O dia que me abalou foi saber que Aderbal havia se suicidado com uma bala na boca. Havia perdido tudo. Diante da minha consciência procurei justificar que isso era problema dele, que ao invés de me dar dinheiro e bancar alimentara meu vício. Enfim virei o jogo para minha tranquilidade interior.
Passadas algumas semanas outra notícia que me desarvorou completamente. Um acidente de carro envolvendo Verônica e Mônica. Estavam mortas. As dívidas no Banco, com empréstimos feitos por minha mãe, levaram a perda da casa. Procurei inutilmente meus antigos parceiros, mas eles queriam o rapaz bonito e perfumado de outrora, e agora eu era morador de rua. Pela primeira vez senti muita falta de Verônica, Mônica e Aderbal, imagens de minha infância emergiam aos borbotões suaves e acusatórias.
Sentado na praça com muita fome, esquálido, e em busca de algo que fizesse a dura realidade extinguir, uma cigana se aproximou, sentando-se ao meu lado. Olhou-me piedosamente e entregou-me uma baguete.
- Há dois espíritos que te acompanham, seus parentes, chamam-se Januário e Tibério que te levam ao vício. Um senhor de cabelos alvos e sangrando pela boca, cujo nome não consigo entender, clama por vingança. Você deve ir a igreja e oferecer uma missa a eles. Peça que te perdoem e que se afastem...ou o pior ainda está por vir.
Sem mais palavras ela afastou-se, juntando-se a outras ciganas que interceptavam os transeuntes oferecendo-se para ler a mão.
Entrei na igreja após confirmar que todos já estavam lá dentro, caminhei quieto para não ser notado, envergonhado pelo meu cheiro e meus trajes, sob o olhar de águia do sacristão. Ajoelhei-me e pela primeira vez chorei copiosamente. Mas ao sair aproveitei as moedas para comprar drogas.
No delírio em que entrei vi minha mãe Verônica aproximar-se como se quisesse me abraçar. Despertei com um enorme cachorro preto dormindo do meu lado. Ele passou a acompanhar-me onde quer que eu fosse.
As humilhações na rua eram grandes. Cada lixo que eu remexia em busca de alimento me reportava aos apetitosos almoços que minha mãe preparava. O que conseguia dividia com meu fiel cão Ecstasy.
Sentei-me nas areias mornas da praia ouvindo o mar, a lua brilhava desafiando as luzes da cidade. Para meu espanto Ecstasy tomou a forma de Mônica. Olhou-me ternamente como sempre e segurou forte minha mão e seguimos sobre as ondas, dizendo que tudo estaria resolvido. Sobre as ondas as pétalas do jacarandá mimoso resplandeciam, era uma chuva de pétalas. Caminhamos em uma infinita estrada rodeada por estas árvores floridas e cintilantes.
Alguns dias depois localizaram meu corpo boiando próximo as pedras, sendo chicoteado pelas ondas.
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