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Faz sete anos que Elisa faleceu, dentre eles três em que definhou misteriosamente. Diariamente venho ao seu túmulo, trago flores novas, às vezes abro um vinho, o de sua preferência, espumante e doce e juntos o saboreamos. Algumas vezes a vejo ou a ouço em nossa casa. Na cozinha onde gostava de ficar preparando sempre um prato novo ou apenas sentada ouvindo música. A ouço cantar, mexer nos pratos e panelas, empurrar cadeiras. Parece preferir ficar distante do quarto onde por meses a fio sofreu dores alucinantes, disfarçando-as com submisso sorriso e um olhar que buscava ser alegre entre as lágrimas que escorriam.
Conheci Elisa no caminho do trabalho. Com chuva ou sol eu buscava o ponto de ônibus rumo à fábrica de calçados. Em um dia chuvoso e frio, o ônibus lotado, parecendo que todos haviam decidido naquele dia fazer uso do circular, ajeitei-me como pude, empurrando um e outro e me acomodando nos restritos espaços disponíveis. Na parada próxima ao hospital uma moça desesperou-se quase impedida de chegar à saída. As pessoas não lhe davam espaço para passar, apesar de suas rogativas. Auxiliei-a, algumas vezes mal educadamente, pois algumas pessoas não se tocavam. Ela agradeceu-me apressada.
Nunca mais a vi até ferir-me na fábrica. Levado ao hospital fui atendido por ela, enfermeira de plantão. Conversamos bastante, rimos daquele dia no ônibus, falei sobre a produção de calçados femininos e de alguns modelos que iria gostar. Interessou-se em conhecer a fábrica, embora eu acreditasse que sua fala fosse apenas gentileza enquanto ela dava alguns pontos no meu braço. Mas não foi simples promessa, em um final de tarde foram me chamar dizendo que estava sendo procurado por uma moça. A moça era Elisa. Apresentei-lhe todos os setores e combinamos jantar. Havia uma pizzaria muito boa e ela declarou ser apaixonada por escarola. Nessa noite, pela primeira vez, tomamos um vinho juntos. O vinho que seria o símbolo de nossa união.
A partir desse dia intensificaram os encontros, os telefonemas e eu lhe remetia flores uma vez por semana. Gostava de flores de tons azulados ou arroxeados. Muitas vezes eu rodava a cidade toda em busca de uma flor que pudesse traduzir tudo o que sentíamos um pelo outro. Em uma das vezes enviei-lhe um colar de turquesas, belíssimo. Após ele, o noivado. Uma festa familiar, com poucos amigos, mas muito alegre. Um sonho que se materializava tão cheio de felicidade que parecia ser impossível estar acontecendo.
O casamento foi na Capela de Santo Ângelo, rodeada por um jardim de camélias, esporinhas e rosas. Viajamos para Roma. Elisa falava muito bem o italiano. Uma língua que apreciava. Ouvia suas músicas, cantarolava enquanto trabalhava em casa.
Pouco tempo depois nasceu Bertoldo, nosso menino. Bertoldinho. Ela apressou-se a ensinar-lhe as duas línguas. Como havia sido promovido e estava tendo um salário razoável, Elisa preferiu ficar junto de Bertodinho e deixou o hospital.
As coisas caminhariam bem se não fosse Rosa. Rosa era uma moça muito bonita, ambiciosa, dedicada no trabalho e que acreditou estar apaixonada por mim. Enviava cartões e presentes que eu procurava não aceitar e esclarecê-la que deveria procurar outra pessoa, alguém que gostasse dela, mas Rosa estava estranhamente fixa na ideia de que se casaria comigo. Disse uma vez que bastaria um filho. Rosa buscou tornar nossas vidas um verdadeiro inferno. Fazia ligações para Elisa, interceptava-nos quando saíamos para jantar em algum restaurante, ameaçava-me.
Para dar um basta nisso encontrei um meio de despedi-la da fábrica. Falei longamente com ela e adverti que não mais se aproximasse de nós, em especial de Elisa. Rosa deixou o escritório transtornada, em prantos e avisou-me que minha felicidade terminava ali, naquele momento.
Daquele dia em diante começamos a encontrar coisas na casa. Uma oferenda com mariscos no portão de casa, uma bonequinha de pano cheia de cabelos de Elisa e espetada de alfinetes, um gato preto morto dilacerado e tendo fincado nele o nome de Elisa. Entendemos que Rosa buscava nos aterrorizar, pressionar, invadindo nossa casa sem ser vista e deixando recados ameaçadores através de objetos que postava nos mais surpreendentes lugares. Vultos passaram a ser vistos pela casa, ruídos durante a madrugada, gargalhadas que rompiam o silêncio e a tranquilidade de nosso lar. Algumas árvores secaram sem motivo aparente e com uma rapidez inacreditável.
Elisa solicitou que o Padre Edmundo fosse benzer a casa. Confiava nele. O Padre almoçou conosco, esclareceu que se tratava apenas de pressão psicológica e que acreditássemos em Deus e não naqueles objetos que nenhum mal poderiam nos fazer. Naquela noite dormimos serenos, sem qualquer acontecimento anormal. Estamos certos de que as bênçãos haviam exorcizado quaisquer energias negativas que pudessem estar circulando pela residência.
Fomos chamados ao colégio, em uma tarde, com a informação de que Bertoldinho havia se machucado. Tinha caído do escorregador e quebrado o braço. Mas eram coisas que poderiam acontecer a qualquer criança hiperativa.
Na madrugada, contudo, Elisa despertou com fortes dores abdominais. Essas dores se ampliariam e acompanhariam Elisa até seus últimos dias. Exames inúmeros, visitas a diferentes clínicas e pareceres contraditórios dos médicos. Não se identificavam as causas das dores e emagrecimento contínuo de Elisa. A cada dia uma palidez parecia cristalizar-se em seu rosto, os olhos foram se tornando opacos e o sorriso difícil de emergir de tanto sofrimento.
Procurei Rosa. Pedi que me perdoasse, mas não a amava e se ela tivesse feito algum mal a Elisa que fosse desfeito, ela não tinha culpa do fato de eu não gostar dela. Rosa contou que sustentava a família e que perder o emprego levou a todos a uma série de privações. A mãe já idosa não resistiu a falta de comida, morreu de fome. Sua irmãzinha passou a prostituir-se para ganhar um pedaço de pão. Reafirmou que eu não seria mais feliz e Elisa morreria. Ofereci-lhe dinheiro, jóias, o que desejasse para parar com essa vingança, mas Rosa disse que apenas iria desfazer o que havia feito se fôssemos para a cama.
Saí da casa paupérrima de Rosa com um imenso nó na garganta.
Dias após Elisa recebeu a fita com as imagens do que acontecera comigo e Rosa. Elisa manteve esse segredo. Somente depois de muito tempo da morte dela é que a encontrei escondida em sua caixinha de lembranças. A preservara sem nunca tocar no assunto.
Um suspiro mais profundo e Elisa deixou este mundo fisicamente. Mas ainda continua comigo, talvez tenha me perdoado pela traição, entendendo que buscava um meio de tirá-la daquele sofrimento. Não sei de Rosa, disseram-me que havia viajado, ido embora em busca de parentes distantes.
Bertoldinho parece feliz. É estudioso, dedicado e quer cursar medicina.
Hoje trouxe hortênsias para Elisa. A tarde está clara com um leve rosa no horizonte. No túmulo ao lado, tanto quanto eu uma moça parece não se esquecer de seu falecido marido. Chama-se Lúcia Helena. Tem o jeito meigo de Elisa. Alguma coisas parece nos atrair um para o outro.
- Vejo que você, eventualmente, deixa aqui uma garrafa de vinho. Sua esposa tinha bom gosto...também aprecio muito essa marca – comentou ela olhando-me com um leve sorriso.
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