Os jardins traduziam uma inequívoca sensação de paz formando um extenso tapete de gerânios floridos. A brisa suave trazia o aroma de suas flores recentemente banhadas pelo orvalho. Os aldeões já desfilavam desde o alvorecer em suas rotinas diárias. Um cheiro de pão assando nos fornos de barro se misturava ao perfume dos gerânios, da serragem e a lama dos chiqueiros onde gordos porcos remexiam os restos de tubérculos destinados a eles. A população caminhava num ambiente extremamente pobre para alguns e estava inserida em um lugar rico e próspero onde a natureza lhes oferecia o suficiente para viverem seguros e tranquilos.
Logo ao pé da colina, um tanto afastados, residia um casal e sua filhinha que já completara cinco anos. Seus cabelos negros, cacheados, o olhar curioso e o sorriso meigo era um presente celestial que os pais agradeciam a cada manhã e a cada por do sol. Kefud era um homem solitário, criado com a rudeza de seu pai, proibido de exteriorizar sentimentos e preocupado com o sustento da família. Seu coração amava sua esposa Sorene e sua filha Zina, mas não demonstrava, fechava-se em si mesmo, cerrava as sobrancelhas e deixava sua alma deleitar-se com o que sentia. Seu sonho era enriquecer como os nobres que passavam em seus luxuosos cavalos pela aldeia e cuidar de Zina como uma princesa.
Não distante dali morava uma outra família já com seis filhos em uma modesta casa de pau a pique, rodeada de pés de abóbora, donde se fazia uma cheirosa cambuquira ou sopas perfumadas. Um dos meninos, com a idade aproximada de Zina, logo passou a ser frequentador assíduo da casa. Chamava-se Luan. Assim cresceram juntos, correndo pelos campos, escalando as mangueiras e driblando os quero-quero em permanente alegria.
A vida dessas famílias teria uma reviravolta muito grande naquela manhã em que Kefud escalava as colinas atrás de um coelho. O coelho cinzento e gordo atraiu cuidadosamente o homem para sua toca. Na verdade um buraco de pelo menos cinquenta centímetros quadrados. O buraco parecia fundo e abria-se gradualmente. Percebia que dentro uma mina formava um pequeno córrego. Esgueirou-se como pode e escorregou para dentro do túnel úmido e escuro. O odor denunciava que ali também residiam morcegos e logo confirmou suas reflexões quando um bando deles agitou-se sobre sua cabeça.
Ao fundo da estranha toca acreditou ver um pedestal onde se encontrava um baú de madeira, muito bem talhado e antigo. Arrastou-o como pôde para fora, machucando as mãos com grandes cortes e arrastando-se pelas pedras pontiagudas espalhadas pelo chão da estreita gruta. Sob a luz do sol as moedas douradas refletiram sua descoberta. Estava rico.
A riqueza revelou um lado oculto de Kefud e Sorene. Compraram terras e construíram um verdadeiro palácio. Afastaram-se da gente pobre da aldeia e proibiram que Zina continuasse se encontrando com Luan. Tornaram-se arrogantes, frios e distantes, como se uma amnésia os fizesse esquecer de todos os bons momentos vividos, as amizades, as muitas vezes que buscara a mãe de Luan e retornara com uma bela abóbora para conseguir alimentar a si e sua família.
A proibição, naturalmente, obrigou os adolescentes apaixonados a buscarem criativamente condições de se verem. Cada momento tornou-se intenso e precioso. Um passeio pelo pomar da residência, a ida ao mercado com a austera e intolerante Alfreda, quase uma guardiã de Zina, o momento da missa e o diálogo com o mercador de tecidos, um dos disfarces de Luan.
Alfreda mostrava-se sagaz e terrível, nada parecia enganá-la ou iludi-la, sempre extremamente fiel aos mandos de Sorene. Sorene tornara-se uma mulher masoquista que fazia cada serva sofrer, através de sistemas engenhosos de humilhação e desprezo. Alfreda, muitas vezes, era sua pesada mão.
Vendo a impossibilidade de isolar os dois amantes, Kefud julgou melhor interná-la em um convento. O convento de Nossa Senhora da Estrela, conhecido como Aurora da Salvação, onde meninas eram levadas para terem boa educação ou para os fins similares ao de Zina. As muralhas a protegeriam.
Logo nas primeiras semanas foi possível Luan subir os muros, arranhar-se nas roseiras e falar com Zina, até que Irmã Lucrécia a denunciasse.Desde então passou a ter uma vida mais rigorosa, com horários inflexíveis, orações, mortificações e trabalho físico, limpando as imensas instalações, carregando lenha e capinando a grama. As lágrimas, a dor, a saudade e a tristeza passaram a ser suas amigas. Apegou-se a oração e tornou-se humilde e submissa. Irmã Dorotéia a espezinhava, ofendia, agredia e testava seu silêncio a todo custo. Zina, porém, respondia com frases utilizadas por Jesus. Algumas freiras diziam que era uma santa, pois uma pessoa normal não suportaria tantas provações.
Além dos muros, Luan esperava por Zina. Sofria e acreditava encontrar um meio de retirá-la daquele lugar e viverem a felicidades que se prometeram durante anos. Tamanho seu sofrimento que foi tomado por estranha febre ficando acamado, definhando a olhos vistos e tendo momentos de delírio onde a própria Virgem anunciava que a tiraria de lá e traria para ele.
Zina, coberta de palidez, magra e exausta, não resistiu, sendo dominada pela peste cinzenta que levava dezenas de pessoas para as sepulturas.
O dia estava frio e um vento gélido parecia querer talhar como lâmina a pele das freiras. Sem abalar-se, seja com o frio, seja com a morte de Zina, Irmã Dorotéia mandou enterrá-la no jardim e determinou que fossem avisar Dona Sorene. Estranhamente, ao raiar da manhã a cova estava coberta de gerânios floridos.
Algumas madres encolheram-se na capela em oração, entre assustadas e encantadas com o fenômeno.
A mãe da menina pareceu cair em si naquele instante, perturbada, fitando a mensageira com olhos esbugalhados e agressivos. Tocou a madre como se enxotasse um cachorro de sua propriedade. Subiu as escadarias como louca até chegar ao terraço de onde fitava o convento e tornava-se mãe, deixando-se sentir a ausência de Zina. Ali sentou-se e permaneceu o resto de seus dias, com o olhar fixo, meio morta e meio viva, sem expressão, como uma múmia fitando o poente.
Kefud, como sempre cuidou para que os sentimentos fossem enterrados na mesma sepultura que Zina, para assim manter-se firme, dono de si, simulando ignorar sua consciência. Arrastou-se, contudo, para junto de amantes e sua riqueza foi sendo dilapidada até quase nada restar. Magro e transtornado, já sem forças, pelejou pela escada até aproximar-se de Sorene, muda e morta. Era outro homem, sujo e maltrapilho. De lá saltou pondo fim ao mal que o consumia.
Luan levantou-se com dificuldade para olhar o céu, onde via os olhos brilhantes de Zina. Imerso em seus sonhos sentiu as mãos leves e suaves da moça tocarem seu ombro. O perfume de gerânios o fez buscar os tempos de infância, o primeiro beijo, o primeiro afago. Olhou-a com alegria e incompreensão. Logo viu-se abraçado com Zina caminhando pelo infinito jardim de gerânios, poderiam estar juntos agora, para sempre.
Diante da cova, coberta de flores, um grupo de pessoas rezava o terço buscando uma benção, um olhar amoroso de Zina, quem sabe um milagre.
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