Ixchel - Deusa Maia da Procriação e da Lua
Yèyé olomi tútú
Uma libélula entrou pela janela semiaberta da ampla sala de visitas. Voou, ignorando as telas primorosamente pintadas por artistas famosos, as almofadas e a cerâmica ricamente adornada que jazia impassível no cômodo da casa. A janela se abria para um jardim de gramado verde, agapantos floridos e uma pequena fonte desativada – precauções contra a dengue que se alastrava pela cidade. Buscando algo adentrou o corredor e invadiu o quarto onde Ricarda se ocultava, a semi-luz, fosca, opaca e enterrada em suas reflexões. Estava prostrada, sentada na cama, onde cachos de flores azuladas contrastavam com o fundo caramelo da colcha. Os exames uma vez mais deram negativo. A gravidez esperada não se concretizava. Elvio, seu esposo, entre acusações, responsabilizando-a, saíra ruidosamente e, com certeza, somente retornaria altas horas da noite, bêbado e ainda mais punitivo.
Entregue ao seu desespero e frustração não notou que não estava só na penumbra do quarto. Com os olhos embaçados pelas lágrimas apenas rememorava os sonhos de ser mãe, os projetos de Élvio, as cobranças familiares e a crença na constituição da família. Tudo se tornara um peso quase insuportável. Promessas, votos, simpatias. Os médicos afirmavam que possuía um corpo perfeito, saudável, pronto, mas algo parecia atuar para que seus sonhos se diluíssem com a rapidez em que uma nuvem se desfaz no firmamento.
Como que despertando de um sono letárgico lembrou-se de sua cachorrinha Chel. Precisava conferir a água, dar-lhe a ração e checar sua caminha para a noite fria que se anunciava. Além disso, Chel estava prenha. Seria mamãe. Ricarda não percebeu, conscientemente, que havia um estranho sentimento de inveja minando o seu interior. Como que de maneira hipnótica foi atraída pelo som de passarinhos no ninho protegidos pela frondosa mangueira, clamavam pela mãe que chegava para nutri-los. Uma colmeia. Um formigueiro. Até mesmo as flores denunciavam que em breve gerariam frutos. Tudo se traduzia em maternidade. Somente a ela era negada essa faculdade, aparentemente tão simples e comum na natureza. Quantos filhos teria uma abelha rainha?
O cansaço e a decepção a levaram a mergulhar em profundo sono. O sono traçou-lhe um curioso caminho nas incertas brumas dos sonhos. Despertou em um jardim coberto de flores amarelas semelhantes a papoulas. O local era paradisíaco. O belo céu azul safirino e um vento fresco que a acolhia repleto de carícias. A sensação era de que sempre estivera ali. Uma sensação de comunhão, de plenitude. Uma cachoeira se denunciava pelo seu ruído e pássaros competiam com cantos encantadores. Uma libélula pousou em sua mão. Ricarda sentiu que algo a preenchia. Uma felicidade incomensurável se apoderava de sua alma. Sentiu que seria mãe.
Retornando de seu sonho mágico percebeu que Élvio roncava ao seu lado, vestido e cheirando a bebida. Acomodou-se em seu lado da cama e voltou ao sono, como que ouvindo “está tudo bem”.
Quando acordou o marido já havia saído para o trabalho. Aprontou-se para falar com sua médica, Dra. Noemy. Dada a intimidade contou-lhe o sonho, cheia de esperanças. Novos exames. Ricarda foi intimada a levar Elvio a fazer exames também, apesar de sua resistência e oposição a tal proposta já realizada outras vezes.
Passadas semanas, Ricarda foi visitar sua prima Alamanda. Alamanda era feita de doçura, do tipo mãezona, que se preocupava com todos e buscava oferecer sempre uma palavra de conforto a quem quer que fosse. Mais uma vez abriu seu coração.
Alamanda convidou-a para almoçarem juntas. Faria um prato especial para comemorarem o reencontro após não se verem a tanto tempo. O prato especial seria ipeté. Um alimento a base de inhame e camarões. Ligou para o esposo e disse que passaria o dia com sua amiga. Foram sorrisos, lembranças e lágrimas. Todas as coisas que são permitidas para duas amigas de verdade.
Ricarda sentia-se reconfortada como naquele sonho entre flores amarelas. Alamanda é amarela. Incríveis coincidências. Maior coincidência foi uma libélula circular enquanto saboreavam um drinque à beira da piscina. O inseto passou a ser o símbolo de esperança. Esperança de ser mãe.
Sentada na varanda via a Lua, agora Nova, em sua beleza inconfundível no céu. Amava a lua. A lua era feminina. Mulher. Mãe da Terra. Ela regia o mar, os fluidos, os líquidos. Nossa Senhora da conceição pisava sobre a lua nova. Talvez seus pés se apoiassem na bela lua naquele exato momento. Solitária como ela. Elvio havia viajado ao México, a trabalho. Tais viagens eram comuns e Ricarda havia se habituado a ter a companhia de suas plantinhas e de Chel. A cachorrinha já acariciava zelosa seus seis filhotes. Estava orgulhosa de sua cria.
O corpo de Ricarda começou a apontar que algo se transformava. Recorreu a Dra. Noemy. Mais algum tempo e a confirmação se fez: uma criança se formava em seu ventre. Elvio quase não acreditou ao receber o telefonema. Desesperou-se pois deveria permanecer no país ainda por cerca de quinze dias. Estava exultante.
Com Arthur no colo, Ricarda olhou a estatueta de Ixchel com que o marido lhe presenteara. Uma libélula entrou no quarto da maternidade, como que verificando se estava tudo bem e alçou voo de volta para fora. Só então, Elvio revelou que havia procurado ajuda médica. De qualquer forma, um milagre.
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