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Na casa grande, no alto da Rua General Freitas, acobertada por um descomunal sobreiro de raízes salientes e tronco de diâmetro impressionante, as mulheres se agitavam sob o olhar absorto de Jeremias, o cão. Ele desatento, ignorava a agitação que imperava na residência. Moravam cinco mulheres que, embora o tempo tivesse passado célere e deixado marcas visíveis, estavam entusiasmadas com a proximidade das comemorações do novo ano. Tal momento era sempre aguardado e tratado com primor. Momento este em que filhos e sobrinhos retornavam. Riam, comiam, bebiam, narravam estórias improváveis e retornavam ocasionalmente durante o ano.
Naturalmente, embora morassem juntas cada uma possuía um temperamento muito particular. Haviam nascido e crescido naquela casa enorme, alta, de cômodos amplos e um quintal que mais parecia uma chácara, emoldurado com um conjunto de árvores frutíferas e arbustos floridos. Ali Jeremias repousava. Jeremias era um perdigueiro, cuja descendência acompanhava a família. Mas enquanto ele cochilava as mulheres refletiam sobre o necessário para a ceia. Leitoa, salpicão, arroz com amêndoas, salada tailandesa. Frango cisca para trás então não convinha estar relacionado. Mau agouro. Nada de energia negativa para entrar o ano. O inevitável conflito. Duas das irmãs queriam pato. Outra carneiro. Cardápio difícil e que exigia ser bem pensado. O ano deveria ser bom.
E se o mundo acabasse? Melhor seria depois da ceia. De barriga cheia e satisfeitos. Difícil seria alçar aos céus com tamanho peso. Provavelmente herdariam uma propriedade no purgatório. Para todos os efeitos era algo previsto, muitas pessoas se preparavam para isso, com mantimentos para o caso de sobrevivência e com orações caso sobrasse apenas a alma. Dentre as irmãs, Georgina não acreditava em nada disso. Injuriava-se pelo fato de algumas pessoas se entregarem a crenças ameaçadoras fosse com inferno, fim de mundo ou um ser ameaçador e caprichoso. Isaura benzia-se aflita. A irmã queimaria nos mármores infernais. Lúcia ria. Ria desde menina. Pouco entendia das coisas da vida e muito menos das coisas da morte. Silene ocupava-se com a lista de compras, compenetrada. Laura não pendia nem para um lado nem para o outro. Na dúvida, era melhor esperar para ver.
O primeiro carro chegou abarrotado de gente. Isadora, filha de Isaura, com marido, dois filhos, a nora e um rebento de poucos meses que não fazia a menor ideia do significava toda aquela agitação. Georgina, Silene e Lúcia optaram por ficarem solteiras. Laura, após um casamento incerto e a morte do marido, reuniu-se com as velhas irmãs. Izildo, o marido, era fascinado por essa estória de final dos tempos. De alguma maneira ansiava por ele. Parecia estar nó íntimo o desejo sôfrego pelo fim. Quem sabe começasse de novo e melhor. Novo Adão, nova Eva, agora com mais experiência para repovoar o mundo. Georgina sorria pelo canto da boca. Há quanto tempo o homem perambulava pelo mundo. Civilizações começaram e diluíram. As sociedades se sucedem, tecendo uma indecifrável colcha de retalhos. Um copiar e colar onde crenças e modelos são esculpidos para atenderem novas concepções de mundo.
- Então acaba!, gritava Izildo buscando perturbar Georgina.
A velha senhora sorria complacente como que orientando uma criança. As coisas são mais antigas do que pressupomos, regurgitava ela. Mas o mundo não vai acabar. O fato é que um dia faraós foram filhos de deuses, um dia as pessoas se curvavam para Ishtar e Ixchel, um dia se acreditou que o poder da legião romana era imperecível, tudo passa, dizia parecendo mergulhar no tempo.
Mas a questão primordial era que o mundo acabaria para alguns leitões, talvez patos e carneiros que se estenderiam inertes e saborosos sobre a extensa mesa do réveillon. Lúcia queria ponche, gostava da bebida. Silene anotou champagne e vinho, refrigerantes e ingredientes para fazer meia de seda. Nunca faltava meia de seda. Tanto nela quanto na ceia.
Isaura passeava com o bebê pela casa, afinando a voz e caprichando na utilização de palavras erradas e incompletas, procurando fazer-se entender pela criança que a olhava atenta. Quem seria essa louca?, talvez questionasse. Jeremias continuava em seu cochilo, nem dignando mover-se para receber os recém-chegados. Eram da família, não havia com que se preocupar. Antes o descanso na terra úmida à sombra dos arbustos. Por outro lado, as mulheres pareciam necessitarem gritar com suas vozes agudas para se comunicarem, o que o tiraria da deliciosa letargia que buscava preservar.
Aportaram ao grande portão descascado pelo tempo, duas sobrinhas e um outro sobrinho a tiracolo com sua noiva, grávida e inchada, imensa com os pés similares a um pão feito em casa. Laura exasperou-se. A criança nasceria a meia-noite no casarão. Um ungido. Um avatar. Georgina ironizou que poderia ser o substituto de Cristo, botando fim à era cristã. Isaura benzeu-se inúmeras vezes pelo sacrilégio. Docinhos, sorrisos, muitas gargalhadas. A família se reunia para encerrar mais um ciclo. Mal se viam durante o ano. Na verdade nem compareceram quando Judite, a matriarca, mãe das cinco irmãs falecera. Os sobrinhos eram filhos de Leomar, que havia viajado para o Belém do Pará com sua mais nova amante, Conceição. Para ele o ciclo realmente estava recomeçando. A esposa havia falecido há alguns meses, mas a amante era bem mais antiga, embora negassem interrogativos e surpresos.
Como todo encontro familiar fofocas se entremeavam com lembranças, expectativas e pausa para alguma cena da televisão permanentemente ligada. Laura, entre suspiros, revelou que gostaria de passar o réveillon no mar, jogar flores e champagne no mar. Isaura benzeu-se aterrorizada. Macumba. Feitiço. Coisa de gente atrasada! A irmã perguntou se fazer uma sopa de lentilhas para dar sorte, acender a vela para o anjo de guarda, mastigar as sementes de romã – já reservada – não partia do mesmo princípio. Izildo interferiu brincando. Vamos tomar um banho de erva de cheiro e se preparar para o novo ano!
Preparativos na cozinha. O caminhão trazendo as compras estacionou na porta da casa. Caixas e caixas de mantimentos. Cada ingrediente, cada item, era acariciado entre sorrisos, como relíquias, pelas irmãs. Tudo era feito com muito carinho. Pratos perfumados que agitavam a vizinhança.
Palmas no portão. Enfim, Jeremias desperta e late, dirigindo-se à entrada da casa. Um mendigo. Pedinte. Mal cheiroso. A senhora tem alguma coisa? Estou com muita fome!, solicita com as mãos, a voz e o olhar cansado.
- Não tem nada, não, meu senhor!, dispara Silene.
O homem se afasta em alguns passos e Lúcia o persegue com um prato bem preparado nas mãos. O senhor pode levar o prato e o talher, complementa. Deus abençoe a senhora! Ele senta-se para comer à sombra do sobreiro. Jeremias acha por bem deitar-se próximo ao portão, em guarda, para o caso da casa ser invadida ou atacada pelo transeunte.
Lúcia é assim, adverte Silene. Dá até as roupas do corpo. Volta-se, então, para as compras desembalando tudo e distribuindo os alimentos pela geladeira, freezer e armário. Morde algumas uvas suculentas e decide colocar uma música. “Não tem tradução”, de Aracy de Almeida. Os sobrinhos abanam a cabeça zombeteiros. Mas as irmãs dançam num reencontro. Cantam juntas. Alegres. Georgina fala aos sobrinhos que um dia as músicas que ouvem hoje também chocarão seus filhos e netos. Mas quem viveu aqueles momentos sabem o significado delas.
Contudo, terminada a apresentação de Aracy, os mais jovens assumiram o controle e “Louquinha” ressoou pelo casarão com Mc k9. Foram, então, buscar cerveja para iniciar as celebrações do novo ano. A festa de Jano.
Jeremias recebeu um belo fêmur comprado no açougue especialmente para ele. Gargalhadas e a tristeza natural de quem tem a barriga cheia. Lúcia mantinha em seu guarda-roupas uma caixa de remédios para socorrer casos de indigestão e outros males decorrentes dos excessos das datas festivas. Apenas não eram permitidos fogos de artifício e rojões para que Jeremias não fosse perturbado.
De qualquer maneira, reunidos, mesmo que o assunto não fosse externado, cada um renovava seus compromissos consigo mesmo. Cada um a sua maneira. Em determinado momento, Laura recolheu-se ao seu quarto. Reclusa chorou. Sempre desejara ter sua própria família, com marido, filhos e netos. Com a morte rápida e trágica de Noel teve como única opção voltar para o alto da General Freitas e desistir de seus sonhos. Entretanto, um novo ano recomeçava e com ele, em sua alma sofrida, reluzia fosca uma indelével esperança.
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