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Estrada de terra apenas marcada pela luz clara da lua. Em meio a mata nativa, a estrada forma uma encruzilhada. Terra macia, arenosa. Raramente transitada. Apenas o vento em ritmo dançante movendo os galhos altos. Vez ou outra uma coruja ou alguns morcegos. De resto é silêncio. Silêncio pesado. Cortado apenas pelo murmúrio de três pessoas. Com barro e a terra de uma sepultura uma bonequinha estava sendo, cuidadosamente, modelada. Na região da barriga, em uma cavidade, depositou-se um objeto pertencente a moça ali representada. Um redemoinho circulou a oferenda onde a boneca repousava. Palavras firmes.
- Se acredita em Deus apoie-se nele, pois vai precisar. Se é que Ele poderá ajudá-la...este é o meu presente de Natal...
Em sua casa a moça não supõe o que acontece. Está estendida em sua cama, satisfeita. De certa forma, acredita-se invulnerável tanto com relação à influências espirituais, quanto em suas ações profissionais. O marido ronca ao seu lado. Em outro quarto os filhos adormecidos mal se movem. Uma gata no cio sobre a casa promove certa histeria, emitindo sons assustadores. No meio da madrugada uma janela começa a bater ritmada pela pressão do vento. Levanta-se, olha a casa, sorri para a janela.
Está acostumada ao cumprimento social de ir à missa, mostrar-se bem vestida e revelar-se penitente e devota aos olhos de seus amigos e clientes. Em sua mesa, na gerência da empresa, uma imagem da Virgem e um terço estão visíveis e sempre são tocados, teatralmente, no atendimento às pessoas, comovendo-as, em especial as senhoras mais velhas que percebe vulneráveis e que se encantam com estes gestos premeditados.
O dia amanhece como todos os outros e outros se sucedem. “Entre o plantio e a colheita há um tempo de espera”. Assim, confiante ela prossegue acreditando-se senhora plena de seu destino e do destino de várias outras pessoas, manipulando dados e informações, fornecendo relatos parciais ou mentindo para atingir seus objetivos. A imagem de boa moça, dedicada e espiritualizada alicerça suas ações calculadas e desonestas.
Meses atrás ela deparou-se com homem que julgou também fácil de utilizar para seus projetos. Mentiu, enganou, sorriu, desejou Feliz Natal : “Aproveito para desejar Boas Festas a você a sua mãe, que é muito querida por nós aqui na agência”. Olhar piedoso e certa de seu convencimento. Naquele momento, contudo, traçara seu destino. Estava diante de um feiticeiro. Alguém que lia além das palavras, dos gestos. Lia a alma. Em pouco tempo teve ele em mãos vários dados que poderiam criar-lhe vários problemas administrativos, mas perder o emprego ou iniciar um processo seria pouco. Ele desejava-lhe todo o mal.
Foi assim que retirou de sua mesa um objeto que talvez nem percebesse ou valorizasse. Mas o objeto estava impregnado de sua energia.
“Os chineses têm igualmente perfeita consciência da possibilidade de fazer mal a um homem causando dano ou lançando uma maldição sobre uma imagem dele, especialmente se nela estiver escrito seu nome” (O Ramo de Ouro – Sir James George Frazer)
E assim cada ingrediente foi selecionado para que atuassem sobre a vida dela. Gradativamente, como se apenas uma sucessão de desgraças, um período mal que pudesse estar atravessando. Como seu socorro seria o padre, estava convicto de que o mal não seria desfeito e iria consumi-la dia a dia.
O toque no telefone na empresa e voz atribulada do outro lado da linha denunciou que algo grave ocorria. O filho se engasgara na escola enquanto comia uma coxinha. Na coxinha um osso de frango. Pronto-Socorro. Apenas um susto. Estava bem. O pequeno osso fora removido com êxito. Ao saírem do hospital, um devaneio e a criança foi atirada ao longe por um veículo em alta velocidade. Novo corre-corre, lágrimas, grito, desespero. A criança não resiste.
A mulher cai em prostração. O marido a acusa por negligência. O menino estava assustado, atordoado, deveria ter estado próxima dele. Passa a ignorá-la. Cria horários para não encontrá-la. Entra e sai da casa sem vê-la. Passa a dormir no quarto do menino.
Meses de turbulência. Clientes agressivos entram em cena, onde seu ar teatralizado não convence. O marido anuncia que deixará a casa. Conhecera uma pessoa. Não a amava mais. Familiares interferem, o padre o procura, amigos aconselham. Ele a abandona.
Casa enorme, em espaço e silêncio. A vida pouco a pouco lhe arrancava o que mais amava. Um sentimento profundo de tristeza a devassava. O toque do telefone parecia-lhe um tormento. Sinal de más notícias. Prenúncio de tragédias. E realmente foi. Sua mãe fora internada às pressas. Idosa, parecia não resistir.
A moça clamava aos céus para que também não retirasse quem mais amava. Mas os céus silenciaram. O féretro seguiu com poucos presentes.
Pensou em deixar o trabalho, mas ele lhe dava vida. Apesar dos sofrimentos adquirira vícios, com seus clientes continuava agindo dissimuladamente.
O homem retorna à agência. Finalizações. Conversas fúteis e profissionais. Ele a observa. Está magra e abatida. Possível divisar as olheiras, as mãos trêmulas. Esforça-se para ser natural. Ele lhe cumprimenta. Mão firme. Olhos nos olhos, que ela disfarça. Nunca olha nos olhos. Sente o calor dele. Mãos ásperas. Fortes.
- Você deveria deixar a agência..., comenta ele reticente.
Ela ignora. Tem o controle de tudo. Não depende da aprovação de ninguém. Ela decide. Ela age. Ela faz as regras.
O homem sai com o tercinho que ela mantém em sua mesa. Imperceptível. Horas mais tarde ela o procurará, mas não vai encontrá-lo. Ele será útil.
Pesadelos tomam conta de suas noites. Acorda suada, febril, agitada. O filho pede ajuda está em um lugar sombrio e lodoso, sente fome e frio, sofre com a solidão e teme a escuridão. Outras noites o marido é esfaqueado pela nova esposa. Em outras ao chegar do trabalho encontra a casa em chamas.
Algumas amigas aconselham que adote um cachorrinho ou gatinho para suprir sua tristeza. Mas não gosta de animais. A casa é bonita, seus tapetes e sofás custaram caro – desvio da conta de clientes – entre outros meios lucrativos que encontrou.
“Há pessoas que nós nunca podemos ofender com impunidade, e se nós o fizermos o dano é mortal, nós começamos a morrer em seguida da ação impensada” (Dogma e Ritual de Alta Magia - Eliphas Levi)
O psiquiatra passou-lhe a ministrar drogas potentes, deu-lhe afastamento. A mulher, contudo, não se sentia tranquila em deixar sua posição. Fosse pelo status, fosse para que um possível sucessor não identificasse os procedimentos ilícitos que sempre adotara. Seu interior latejava, ardia em fogo, sentia-se acuada. Sua vida ruía sem que pudesse se apegar a qualquer coisa que construíra até então. Onde pisava se tornava areia movediça.
Um cartão chegou à sua caixa de correios. Esquecera-se de seu aniversário. Um belo cartão. A mensagem. Celebre os dias que lhe faltam. Feliz Aniversário. Sentou-se trêmula e fatigada. Talvez faltassem poucos dias. O suicídio começara a fazer parte de seus pensamentos, de seus planos.
Ele acaricia uma grande rosa vermelha e aveludada. Junto a ela tangerinas e outras oferendas. A lua cheia brilha. Intensa. Apenas o ruído dos grilos e pererecas.
- Aqui findam seus dias, Eliane...para você uma rosa...
A mulher tenta dormir em um sono agitado. Uma vela que lhe aconselharam acender para seu anjo de guarda tomba com o vento e suas chamas se alastram pelas cortinas. O fogo se propaga rapidamente. A dose exagerada de calmantes lhe bloqueia a percepção. Em pouco tempo é consumida pelas labaredas.
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