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A tarde em meio quando Edilma fitou uma vez mais o relógio dependurado na parede. Ele sempre anunciava dor e sofrimento. As horas corriam para anunciar o momento em que o marido estava para chegar. Gustavo saía cedo, sempre ruidoso, despertando a esposa e filhos com seu temperamento irascível. Retornava para o almoço, de onde extraía motivos para criticar a família. O pó nos móveis, a calçada mal varrida, a comida sem temperos, o cachorro exageradamente festivo, a criança despenteada. O final da tarde era prenúncio de outros maus tratos não apenas verbais, mas complementados com agressões físicas ou a destruição de um móvel, de uma louça ou algo que Edilma muito apreciasse. Por vezes, cortou árvores e arrancou arbustos apenas por ouvir elogios da esposa pelas flores, frutos ou viçosidade.
Exausta e abatida, com auto estima em declínio e sentindo-se o pior dos seres, Edilma decidiu botar fim aquela relação. Estava disposta a pagar todos os preços e a enfrentar todos os sofrimentos e ameaças, afinal era esse o seu cotidiano. A morte de seu pai, Angelo, deixando-lhe uma casa em lugar distante era uma esperança, embora untada com a dor e a certeza de estar realmente só.
Gustavo chegou demonstrando sinais de embriaguez, esbravejou, acusou-a de uma dezenas de coisas, examinou-a externando o quanto perdera a beleza e a sensualidade e relatou relações com outras mulheres, buscando evidenciar o quanto ele a rejeitava. Pela manhã, a mulher, com o coração aos saltos, trêmula e insegura, disse-lhe que não poderiam continuar juntos. Iria embora com os dois filhos. A reação de Gustavo era esperada. Esmurrou-a. Humilhou-a. Se fugisse seria encontrada e morta.
- Te encontrarei nem que seja no inferno!, garantiu ele fora de si, esmurrando a mesa e chutando cadeiras.
As crianças choravam amedrontadas, enquanto Gustavo deixava a casa aos passos firmes e olhar ameaçador. Edilma estava consciente de tudo que deveria enfrentar, mas atreveu-se. Juntou algumas roupas e das crianças, rumou para o ponto de ônibus. De lá, a rodoviária e, quem sabe a liberdade e a paz para si e seus filhos. Tiago, o menino, mais velho, e Luciana, a menininha. A viagem seria longa. O tempo todo os filhos perguntavam por que o pai não iria viajar também. Os olhos marejados de Edilma fitava a paisagem trazendo lembranças dos bons tempos de namoro e primeiros anos de casamento. Tudo indicava ter o casamento perfeito. Aos poucos, contudo, o homem gentil e atencioso, transformou-se. Agressivo, esnobe, infiel e sarcástico, buscando inserir a cada dia um motivo para que Edilma se acreditasse feia, inútil, péssima esposa e mãe.
Um taxi levou-a até a antiga casa. Seus pais eram separados. A mãe falecera nos primeiros meses em que Edilma se casara e seu pai se mantivera distante, pois segundo ele, conhecia a índole de Gustavo e desaprovava a união. Dessa maneira, nem Edilma, nem Gustavo conheciam a residência paterna. Era um refúgio. A casa estava localizada na mata. Era uma pequena chácara perdida no tempo. A casa simples, porém confortável, trazia promessas de felicidade.
Alguns meses se passaram e Edilma acostumara-se à nova vida. Com os parcos recursos deixados por sua mãe e seu pai poderia sobreviver por um tempo sem trabalhar, embora precisasse a pensar nisso. Passou a criar porcos e comercializá-los, além de galinhas e verduras.
Sonhos eróticos com o marido passaram a perturbar-lhe as noites. Durante o dia o odiava e a noite o desejava em seus sonhos. Despertava entre gemidos e sensações de prazer. Abrir os olhos desencadeavam todo rancor que sentia por Gustavo. Outras vezes despertava ouvindo cadeiras serem despedaçadas e pancadas fortes pela casa. Entendeu que o marido lhe localizara e procurava assustá-la na madrugada.
Enquanto arrancava ervas daninhas da horta viu aproximar um garoto. Apresentou-se com o nome de Fred, filho dos Gastão, que possuíam propriedade ao lado da chácara. Estranhamente ele passou a anunciar o que aconteceria na madrugada. Um jarro será quebrado. O espelho do banheiro irá trincar. Haverá um estouro na cozinha. Os comentários do rapaz aconteciam qual vaticínios, deixando Edilma paralisada pelo pavor.
Uma tarde Luciana adentrou a casa aflita dizendo que encontrara o pai chorando próximo do poço. Edilma enrijeceu-se perturbada. Realmente ele a localizara. Com uma faca oculta no casaco caminhou pela propriedade em busca de rastros. Retornou tensa. Nada encontrara.
Algumas noites em paz e Fred reaparecia com outras informações apavorantes. Edilma ameaçou-o, acreditando ser o causador de todos os transtornos.
- Cuide do menino! Não o deixe sozinho..., comentou se afastando com um sorriso irônico nos lábios repuxados.
Fred tinha a pele muito clara, com sardas no rosto e cabelos ruivos. Tinha o olhar muito atento, que não olha nos olhos com quem fala, não gerando confiança.
O fato é que Tiago adentrou a mata e se não fosse a chegada de Edilma teria sido picado por uma cobra. Edilma estava picando legumes para o almoço quando um arrepio percorreu-lhe o corpo qual descarga elétrica. O coração agitou-se. Tiago! Sentiu uma dor no peito e passou a buscar-lhe pela casa e adjacências. Luciana indicou a direção que o menino seguira.
Resolveu, então ir até a fazenda dos Gastão e colocar um ponto final naquela estória que já se prolongava exageradamente. Levou as crianças consigo. Foi recepcionada por três cães imensos. Um homem se aproximou indagando o que desejava. Apresentou-se como vizinha. O homem lamentou a perda do “seu” Angelo e pediu que entrasse até a casa. Uma senhora chamada Flores a recebeu entusiasmada. Filha de Ângelo.
Edilma buscou palavras até perguntar onde estava Fred. Flores a olhou atônita. O que poderia desejar com ele? Expôs que eventualmente o rapaz vai até a chácara conversar.
- Ficaria muito feliz se isso acontecesse, minha filha!, resmungou a mulher enxugando as lágrimas, - mas Fred faleceu há oito meses, picado de cobra.
O choque foi terrível. Flores mostrou-lhe as únicas três fotos que possuía dele. Uma quando bebê, outra com cerca de cinco anos e outra mais recente em um parque que visitara a cidade. Era mesmo ele. Edilma lamentou o equívoco, justificou que certamente confundira o nome e inventou algumas outras desculpas inconsistentes. Voltou à chácara perturbada, confusa e tomada pelo medo.
A madrugada trouxe novos momentos sensuais com Gustavo. Despertou nua em pleno ato sexual. Desde então passou a ver vultos pela casa.
Arrumou-se e foi até a cidade. Criou coragem e ligou para sua antiga vizinha, Leonora, que havia sido sua confidente e consoladora por anos, motivando-a a ir embora dali.
- Gustavo tentou o suicídio assim que você se foi, ingeriu veneno de rato, mas os médicos conseguiram reverter o quadro. Alguns meses depois ele foi encontrado boiando no lago. Lamento, ele está morto.
Leonora trazia informações pesadas e que se transformaram em culpa para Edilma. Se tivesse permanecido, Gustavo estaria vivo.
Quando aproximou-se da chácara visualizou Flores que a abraçou carinhosamente.
- Você pode não acreditar, minha querida, mas a alma de seu marido não está tendo descanso. Está perturbado e anseia vingança. Venha esta noite em minha casa. Mesmo que você não acredite nisso, não deixe de comparecer.
Flores saltou ágil sobre a carroça e rumou para a fazenda. Mostrava-se uma mulher forte, embora enigmática. Ponderou sobre a possibilidade de aceitar o convite. Nunca acreditara em nada sobrenatural.
Mais uma vez foi recebida pelos três cães gigantescos que zelavam pela fazenda. Flores abriu a porta sorridente e a abraçou acolhedora. Na penumbra da sala algumas pessoas rodeavam uma mesa grande de madeira. No centro um candelabro com velas de sebo bruxuleava contorcendo as imagens que a circundavam.
Um frei tomou a cabeceira da mesa. Proclamou palavras inteligíveis perante o silêncio aterrador. Mesmo os cães pararam de latir. O clima parecia pesar sobre todos, era como se pudesse apalpar a atmosfera que se criara. O frei falou em vozes estranhas ainda algumas vezes. De repente agitou-se, contorceu-se.
- Morri por você, Edilma. Quero você comigo!, a tonalidade da voz de Gustavo ressoou pelo ambiente.
Flores aproximou-se. Falou-lhe sobre perdão, paz e a necessidade de retomar seu caminho. Mas Gustavo estava inflexível. Queria Edilma morta.
A moça chorava desconsolada, incapaz de pronunciar qualquer palavra.
O encontro notívago foi encerrado sem que Gustavo fosse convencido a adotar outra postura. Flores pediu que Edilma rezasse por ele e o perdoasse.
A manhã trouxe ar puro, o gorjear dos pássaros e a venda de alguns leitões.
Flores caminhou pela chácara com um ramalhete de flores do campo. Encontrou Tiago e Luciana brincando próximos a casa. Procurou Edilma. Chamou-a. Subitamente viu Fred apontando para a represa.
Nas águas frias, Edilma boiava já sem vida.
Abraçou as crianças e levou-as para a fazenda. Talvez o sofrimento de Edilma tenha terminado.
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