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"É que Narciso acha feio o que não é espelho"
Caetano Veloso
Com o espelho nos vemos. Através dele se estabelece a nossa percepção de quem somos, como somos. Utilizando-se do espelho d´água, do metal polido ou do vidro estabelecemos uma importante relação com nós mesmos. Pelo espelho nos enxergamos. Podemos admirar nossos traços faciais, constatar a cor dos nossos olhos, o formato da boca e do nariz, definir penteados. O espelho nos faz olhar para nós mesmos. O espelho permite que nos apropriemos de nosso lugar no mundo: existimos! Me vejo, logo existo! Não utilizamos o espelho para ver os outros, para admirar o mundo, para estabelecer relações. O espelho é para nós. Uma relação íntima entre eu e o que sou. Pelo espelho também é possível o que quero me tornar. Posso modificar-me com ele. Maquiar-me, mudar o penteado, ensaiar expressões. O espelho faz parte meu mundo e com ele me interajo.
Curiosamente pude assistir ao vídeo que se segue. Indios da aldeia Kamayurá se pintam para o Kuarup Yawalapiti. Vale a pena nos determos um instante participar desse importante momento:
Não usam espelhos e como não há espelhos recorre-se um ao outro para que a pintura se estabeleça. Pode-se pintar as partes do corpo que se pode ver e tocar com mobilidade, podendo avaliar os resultados. O objetivo, além dos traços rituais e harmonia dos traços e cores, está a beleza. Vem o outro para auxiliar o homem a ficar mais bonito.
O que aconteceria se uma mulher não tivesse espelho? Como se maquiaria? Certamente buscaria outras hábeis mãos. Dependendo da complexidade da maquilagem isso já ocorre com frequência. Mesmo com espelho necessitamos das mãos competentes do cabeleireiro ou do barbeiro, já em extinção. Terrível seria cortarmos nossos próprios cabelos!
Muitas vezes esses cuidados com a estética e a beleza são ingredientes para nossa autopercepção buscando julgar-nos mais bonitos ou bonitas. Outras vezes é para que os outros nos admirem e se encantem com nosso visual. Algumas vezes nos embelezamos para o outro. Para que o outro nos veja. Conferimos esta percepção a um espelho. Alguns denominam isso vaidade. Mas o índio que é pintado quer ficar belo, mostrar-se atraente e forte. Há aí também evidências de vaidade.
“No seu coração, os homens desejam ser estimados, mas eles cuidadosamente ocultam esse desejo porque querem passar por virtuosos e porque o desejo de receber da virtude qualquer vantagem além dela mesma não seria ser virtuoso, mas amar a estima e o elogio — ou seja, ser vaidoso. Os homens são muito vaidosos, mas não há nada que eles mais detestem do que serem considerados vaidosos”. (Jean de La Bruyére, in "Os Caracteres")
E não há problema com a vaidade ao se olhar no espelho. Nele nos refletimos de alguma forma, muito distante do que Narciso apreciava. A questão maior que envolve o espelho é que deixamos de perceber o outro, ou passamos a perceber o outro para que ele nos veja. Quando abandonamos o espelho e passamos a desejar que o outro seja belo tal qual visto na Aldeia Kamayurá a vida toma outras dimensões. O outro passa a ter a mesma importância quanto aquele reflexo que observamos de nós no espelho.
Quando nos vemos exclusivamente a nós nesse espelho passamos a exacerbar nossa autoimportância, tornamo-nos arrogantes e insensíveis diante do outro e dos acontecimentos com o outro. Passamos a viver um insensato egocentrismo. E algumas vezes a imagem do espelho é tão intensa que passamos a nos preocupar em ofuscar outras imagens. Denegrir, caluniar, macular o outro toma proporções muitas vezes inconcebíveis. Seja em uma empresa de pequeno porte ou na administração de uma cidade, de um Estado ou de um País tais demonstrações mostram-se perturbadoras. O bem comum se dissipa qual fumaça entre os dedos. O ego assumiu o controle de maneira desordenada.
"Nenhum homem é livre se a sua mente não é
como uma porta de vai-e-vem, abrindo-se
para fora a fim de liberar suas próprias idéias
e para dentro a fim de receber os
bons pensamentos de outrem."
(Validivar)
Pensar coletivamente se faz sine qua non para que possamos ter a tão sonhada sociedade igualitária e quando Saúde, Segurança e Educação deixarem de ser promessas oportunistas. Quando se tornarem sonhos possíveis e sabemos que são. Quando partidos políticos deixarem de se digladiar e se unirem com o nobre objetivo de produzir uma comunidade que tenha mais que o essencial para viver e não apenas migalhas sofridas para sobreviver. Ou se sucederem em ataques ignóbeis apenas com o intuito de prevalecerem uns sobre os outros.
Quando abandonamos o espelho a cor da pele, as crenças e religiões de cada um passam a ter o mesmo valor. Não há disputa de religiões por fiéis e nem buscam sobrepor-se umas às outras apoiando-se em livros sagrados, antiguidade ou acreditando-se serem preferidos da Divindade. Se Deus tem preferências ele tem muito o que aprender com muitos humanos transitórios e mortais!
Quando abandonamos o espelho não há questões de idade. Há respeito mútuo. Emerge a humanidade em todos os cantos, pois a empatia impera dimensionando qualitativamente a caridade, a fraternidade e a solidariedade.
O que nos diferencia um dos outros? Essa pergunta é desnecessária...a questão que nos conclama é o que nos assemelha uns dos outros? O que nos faz humanos? O que nos torna gente?
Interessante olhar-me no espelho e ver que em mim há um pouco de tudo o que existe. Em mim há carbono e hidrogênio, oxigênio, nitrogênio, enxofre, fósforo, boro, halogênios e tantos outros elementos. Em mim pulsa toda a Natureza. Em mim estão todas as criaturas. E eu estou em tudo. No meu espelho há muitas faces, línguas, cores e tradições.
Olhando no espelho vejo que muitas ações se repetem, inconscientes, impensadas, irracionais. Continuamos apenas repetindo o que se aprende, sem maiores reflexões. O lado racional tantas vezes se demonstra ofuscado pela ignorância. O espelho fica embaçado pelo meu próprio hálito...
“Por acaso, surpreendo-me no espelho:
Quem é esse que me olha e é tão mais velho que eu? (...)
Parece meu velho pai - que já morreu! (...)
Nosso olhar duro interroga:
"O que fizeste de mim?" Eu pai? Tu é que me invadiste.
Lentamente, ruga a ruga... Que importa!
Eu sou ainda aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra,
Mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra!
Vi sorrir nesses cansados olhos um orgulho triste..."
(Espelho, de Mário Quintana)
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