Isso já faz muito tempo, ainda nem era uma cidade. Era apenas um povoado inserido no meio do mato, com uma estradinha de terra, onde a eletricidade ainda não tinha chegado e as noites eram alumiadas com lamparinas de querosene. Tempo em que se criavam galinhas à porta de casa, tempo em que a palavra era tudo.
Na casinha rústica de Seu Agenor e Dona Guiomar havia tranqüilidade. Na época em que se casaram ela tinha catorze anos e ele vinte e dois. Doze filhos. Muito trabalho para construírem a casinha onde moravam, arar a terra, carpir o mato, rachar a lenha. Tudo feito, porém, sem reclamações. A vida era assim. Reclamar seria um desrespeito, deveriam agradecer. Criaram os filhos, tinham seus netos, quase já os bisnetos. Esse era o ciclo das coisas.
Dona Guiomar era uma mulher de fibra, muito forte, diziam que era bugre. Cuidava de tudo com mão de ferro, sem muitas palavras, “a vida era dura mesmo” – essa era sua máxima. Ninguém fazia corpo mole com ela, tinham que aprender a viver, enfrentar as adversidades; chegava dando ordens e arrumando tarefa pra todo mundo. Taluda, de olhar firme, impunha medo só de se aproximar.
Seu marido, Agenor, era mais franzinho, sempre de chapéu na cabeça e cigarro de palha. De cara fechada, sério, nunca o viram sorrir, falava uma só vez e o recado estava dado. Ninguém arriscava contradizer. O almoço, muitas vezes reunindo quase trinta pessoas, era o mais profundo silêncio. Não admitia qualquer palavra durante as refeições. Era desrespeito. Até os pequenos se calavam.
Havia uma estória que circulava sobre Agenor. Algo que o fazia ainda mais temido, pelos familiares e no povoado. Quando chegava lá com sua charrete, muitos se benziam, e era tratado com reverência. Mesmo o padre, Monsenhor Alonzo Beno, o tratava com cisma. Embora não fosse de igreja, entrava, tirava o chapéu, ajoelhava junto ao Santíssimo Sacramento, rezava e saía. Tinha, contudo, batizado todos os seus filhos e netos. A preocupação com o batizado era evitar que um de seus filhos se tornasse um lobisomem ou mula sem cabeça. Também deveriam se casar com pessoas batizadas. De qualquer forma, tal maldição não havia recaído sobre a família, sendo todas pessoas honestas e trabalhadoras.
Conta-se que tudo aconteceu quando Seu Agenor e Dona Guiomar receberam as terras onde residem como presente de seu pai, Antão. Antão havia sido próspero, dono de muitas terras, mas acabou perdendo quase tudo em razão de jogos de baralho.
Quando cavava para a construção do poço, Agenor encontrou um baú muito bem decorado, de madeira maciça, trancada a chave. Ficou intrigado com sua descoberta. Tentou abri-la, mas percebeu que para conhecer o conteúdo da mesma teria que usar o machado, ao mesmo tempo em que se condoia por destruir artefato tão belo. A curiosidade venceu a contemplação. Arrebentou-a. Estupefato viu dentro dela um tubo, também de madeira, com uma tampa de rosca. Dizem que ao arrebentar a caixa o céu escureceu e tudo pareceu noite. Saíram até as estrelas, ludibriadas pela escuridão. O galo cantou três vezes e ouviu-se um uivo, quase congelante, que fez as pessoas do povoado estremecerem. Arrepiado e trêmulo, Agenor ajoelhou, rogando a Deus que o amparasse, pois percebeu que mexia com algo perigoso.
Passado um tempo, o sol voltou a brilhar. Agenor ficou segurando o cilindro um certo tempo, olhando-o, duvidando se deveria ou não abri-lo, mas mais uma vez a curiosidade foi mais forte. Rodou a tampa. Um vendaval parecia anunciar a mais feroz tempestade. Um areião subiu ao céu, que novamente escureceu. Agenor ia correr para junto de umas árvores quando ficou imobilizado diante de uma figura assustadora. Era um demônio que se apresentou com o nome de Alastor. Disse que sua missão era a vingança de um crime que acontecera naquele lugar. Anunciou que o sangue voltaria a correr naquela terra, mas Agenor receberia seu tesouro por tê-lo libertado.
Em um redemoinho o demônio desapareceu, deixando Agenor emudecido. A partir daquele dia coisas estranhas começaram acontecer. Alastor aparecia a Agenor todas as noites, exatamente a meia-noite, despertando-o num chacoalhão que o lançava fora da cama. A cada noite seguia feito um sonâmbulo para junto a uma enorme figueira próxima a casa e lá falava quase até o amanhecer. Não se lembrava do que dizia e não demonstrava sinais de cansaço.
Aos poucos Agenor enriqueceu. Adquiriu mais terras. Tornou-se conhecido e admirado. Uma das vezes em que despertou acocorado junto a figueira deparou-se com o corpo ensangüentado do pai. Ao seu lado o facão utilizado para por fim a vida do homem. Ainda consciente Antão revelou-lhe:
- É verdade, Agenor...matei Tuca Caju para ficar com essas terras. Agora são suas, mas ele voltou pra se vingar...
Depois desse dia, Alastor não mais perturbou o sono de Agenor. Desapareceu. As noites seriam ocupadas com a presença de Tuca Caju.
Tuca Caju era um homem valente, diziam ter o corpo fechado. Andava com um revólver na cintura e não levava desaforo para casa, matava ali mesmo. Andava com um cavalo branco para cima e para baixo, mal encarado e sempre envolvido em encrencas. Falavam que tinha o corpo fechado por ter vendido a alma ao diabo. O diabo lhe contava onde se escondiam seus inimigos e o que devia fazer para ficar com as posses deles.
Em uma noite de lua negra o diabo teria aparecido para ele e instruído a confeccionar a caixa. Disse que Antão tentaria matá-lo, mas isso o tornaria invulnerável, que nada temesse. Após talhar o baú, Tuca Caju abasteceu seu revólver e dirigiu-se a casa de Antão. Sem encontrá-lo, correu a cidade em busca de seu oponente. Descobriu-o em um puteiro que ficava no meio da estrada. Estava jogando cartas. Discutiram. Saíram da casa aos socos. Tiros e Tuca foi atingido. Ferido subiu em seu cavalo e buscou o baú. Precisava enterrá-lo, conforme devidamente instruído.
Morreu sobre a cova. Acharam-no muito tempo depois já consumido quase totalmente. Antão assumiu as terras como dívida de jogo.
Inconformado, Agenor debruçou-se sobre o corpo do próprio pai. Um peso que carregaria para o resto da vida.
Ao enterrá-lo no cemitério do povoado viu nitidamente Tuca Caju rindo muito recostado ao cruzeiro. Maus dias viriam. As noites eram envoltas em ruídos espantosos, os cachorros irriquietos, latindo muito, as galinhas assustadas. Algumas vezes viam-se marcas de passos de botas ao redor da casa. Outras vezes batiam violentamente na porta e nas janelas.
No auge do desespero, Guiomar procurou Bernardino, um famoso benzedor da região. Se ele não pudesse resolver, mais ninguém conseguiria. Ele benzia colocando um copo d´água na cabeça da pessoa. Aí era capaz de ler o que a água dizia. Repetiu o processo três vezes.
- Você vai tomar o chá das folhas que vou te dar durante quatro semanas. Aí você volta aqui. Dê a seu marido beber junto com você. Toda noite antes de dormir.
Assim Guiomar procedeu apesar dos protestos do marido. Um mês depois retornou. Os estrondos e problemas noturnos haviam diminuído. Bernardino descreveu a casa, cômodo a cômodo, como se fosse capaz de se transportar para lá. Falou até mesmo de pensamentos íntimos dela. Benzeu-a.
- Você vai embuchar...coloque o nome em seu filho de Salustiano. Pegue o umbigo dele e enterre junto a figueira perto de sua casa. Reze o terço todo dia, por treze dias.
Depois que Guiomar engravidou de seu primeiro filho os ruídos cessaram completamente. Quando o menino estava com treze dias sonhou que um homem a abraçava chorando e a chamava de mãe. Ao descrevê-lo para Agenor descobriu ser Tuca Caju. Mais surpresos ainda ficaram ao descobrirem que o nome de Tuca era Salustiano. Aquela criança que agora embalavam seria Tuca ?
O menino cresceu. Tinha o gênio forte, mas a disciplina de Agenor o domou. Depois dele vieram outros. Oito homens e quatro mulheres.
Em uma noite tempestuosa, Alastor voltou a chamar Agenor. Trazia consigo um pergaminho. Furou o dedo com um espinho de joá-bravo e assinou com seu próprio sangue. Era o pacto ! Depois daquele dia tudo seria possível para ele.
Há quem conte que foi assassinado por Salustiano, mas ninguém pode provar isso.
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