A manhã corria serena quando Isabel sentiu as primeiras contrações. O corre-corre natural do momento e Laura vinha ao mundo, pequena, raquítica, aos sete meses da gestação, exigindo todos os cuidados de alguém frágil e com pouco mais de um quilo.
Os dias transcorriam com grandes preocupações por parte dos pais, Laura não se desenvolvia. O diagnóstico veio catastrófico quando o Dr. Adauto informou que a menina não iria sobreviver. Os pais se desesperaram. Leonardo ameaçou o médico caso algum mal acontecesse a ela, descontrolado e inconformado.
Expondo sua tristeza a uma amiga, Isabel recebeu um sopro de esperança. Teresa relatou-lhe a atuação de um outro médico e que atendera a uma outra amiga em situação similar. Era Dr. Acácio Rômulo. Uma possibilidade, mais um recurso e rumaram até a cidade próxima onde poderiam ter uma consulta. Laura fica internada no hospital daquela cidade, aos cuidados de seu novo cuidador. Exames são feitos, dias se sucedem e os pais são chamados. O problema está solucionado. Laura estava morrendo...de fome ! Novos cuidados, nova alimentação e Laura se reergue, fortalecendo-se a cada dia para uma vida normal e saudável.
Os dias de infância de Laura foram tranqüilos, com as brincadeiras com as crianças vizinhas. Destacando-se a aguçada inteligência da garota. Perspicaz, atenta, muito argumentativa, embora tímida e reservada. Não demorou para revelar sua paixão pelas plantas e animais, a vida simples junto a natureza, embora residisse em centro urbano agitado e conturbado como toda grande cidade.
O relacionamento entre Leonardo e Isabel sempre foi tumultuado, estando ele sempre às voltas com amantes e cultivando ares autoritários e violentos. Era comum Leonardo ter rompantes de raiva querendo colocar fogo na casa, chutando e agredindo violentamente o cachorro, quebrando móveis e outras posturas intimidadoras, na busca de proteger-se de acusações e resguardar-se de sua vida dúbia. Laura assistia a tudo assustada e incompreendendo as situações. Emergia um desejo estranho de morrer, como que acreditando que a morte a devolveria a um lugar de paz e sossego, talvez o próprio útero materno. Embora em seus pensamentos se solidificassem idéias da vida após a morte, dedicando-se a constantes orações a uma dezena de santos, obedecendo a criação católica.
Havia uma atração incrível ao mundo mágico dos pajés, revelado pelos programas de televisão, livros e revistas. Esse mundo a cativava.
O ingresso à escola a fez deparar-se com outras realidades. Pessoas com os mais diferentes pensamentos e comportamentos. Em certo momento enquanto lia sobre o Budismo foi surpreendida por alguns colegas que a ridicularizaram ativamente. Só havia um deus e esse deus era Jesus. Nessa época, porém, Laura já havia lido bastante e sabia que os ensinamentos de Buda antecediam os de Jesus e eram os mesmos em sua essência. Passou, então, mais fielmente estudar outras crenças em especial aquelas que apresentavam outros paradigmas, outras concepções de vida e de morte. Isso permitiu-lhe avançar no mundo da filosofia e seus grandes representantes e os livros sagrados das diversas religiões.
Gradativamente, Laura passou a conhecer outras pessoas com uma visão mais holística e universal, conheceu grupos que cultivavam uma mente mais aberta e respeitosa diante dos ensinamentos das religiões.
De uma certa maneira, Laura também passou a resguardar suas crenças interiores firmadas na existência de uma força ou poder superior, sem nome, vivo, uma energia que interpenetra e vivifica a tudo, que rege e mantém as leis universais, sem sexo, composta pelo equilíbrio, harmonia, amor e paz.
Um lado a ser trabalhado em sua vida era a amorosa, sempre desastrosa, alimentando uma certa carência e um vazio a ser preenchido. Sucederam-se relacionamentos traumáticos e desgastantes. Isso causava extremo sofrimento em Laura, embora insistisse arduamente na busca de alguém com que compartilhasse seus ideais, crenças e sonhos.
Esse encontro aconteceu quando despretensiosamente saboreava um frango a passarinho e uma cerveja com amigas. Ele chegou com outros amigos, se apresentaram. Ele estava indo para a capital em busca de emprego. Embora distante mantiveram contato. Thiago sempre ligava dando informações sobre seus sucessos, insucessos e romances. Até que anunciou sua volta. A tentativa na capital havia se frustrado. Um reencontro e os dois passaram a viver juntos.
Thiago expressava exatamente o que Laura almejava. Os dois passaram a ser complemento um do outro.
A vida profissional de Laura também deslanchava repleta de coincidências. Embora seu foco inicial tenha sido Antropologia, questões financeiras a impediram de concluir o curso. Embrenhou-se na História como professora. Seu curso de Magistério permitiu que ela garantisse sua licenciatura. Opções de trabalho passaram a acontecer, contatos com professores e instituições e a carreira de Laura se consolidava: professora, coordenadora, diretora...
Laura passou a escrever livros, participar de congressos e conferências, enfatizando uma rotina de palestras e viagens pelo mundo.
Em uma viagem com Thiago, Laura conheceu Phaim. Phaim era um velho índio, de olhos muito vivos apesar da avançada idade, alegre, ávido em conhecer pessoas. Houve uma identificação incrível entre ambos. Com ele aprendeu muitas coisas sobre os valores e crenças de sua tribo. Naquele momento algo ecoou em sua alma. Entrava em sintonia com algo que sua alma almejava há anos. Mudou-se para a cidade, objetivando estar próxima daquele ancião que tanto a preenchia com seus ensinamentos.
Aos oitenta e dois anos, Laura era uma pessoa realizada. Ao lado de seu fiel companheiro completava um ciclo curioso de existência. Rememorava os incríveis momentos que vivera, a interligação maravilhosa e sábia de cada acontecimento, as razões das portas abertas e daquelas que se fecharam, dos caminhos tortuosos e que a levaram diretamente a encontros importantes e decisivos, tudo havia seguido um curso misterioso e apaixonante. Tudo parecia ter obedecido a um plano perfeito. Uma curiosa sincronicidade.
Lentamente caminhou para sua cadeira favorita, onde permitia-se fitar as paisagens ao redor de sua residência e brincar com seus gatos e sua cachorrinha Helena. Um sono profundo a dominou. No quarto próximo, Thiago em sua cama, descansando também abateu-se com um sono persistente. Um sono para a eternidade. Não mais acordariam, ao menos para esta vida.
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