Não sei quanto tempo permaneci ali recostado ao banco da praça, acomodado sob as sombras de uma enorme jaqueira, cujas folhas verdes já se mesclavam à penumbra, dando uma sensação de tons amarronzados. O poste, de luz amarelada, pouco iluminava. Alguns morcegos cortavam o ar num trissar gostoso de se ouvir. Único ruído. O resto era quietude. A praça, grande e majestosa, durante o dia, resumia-se a escuridão na madrugada. Eventualmente um carro passava ou a circulava, talvez em busca de alguém solitário tanto quanto o motorista. Permaneci em meu silêncio, mergulhado num estranho nada, como se a cabeça estivesse vazia, como se os pensamentos tivessem sido chupados.
O interessante do silêncio é que comecei a perceber os detalhes. A colocação das pedras, formando desenhos através dos pequenos cubos de arenito e basalto. Os tinhorões circundando os jardins, os grandes hibiscos amarelos, o pau-ferro, sibipirunas e coqueiros. Um ambiente belamente alterado pelo manto de seda negra da noite. Se tivesse morrido minutos antes não teria percebido as nuances, metamorfoses e encantos daquela praça. Sempre atarefado, concentrado em problemas e destilando preocupações, há anos a atravessei, inúmeras vezes sentei-me em seus bancos, nunca a admirei.
Estendi minhas reflexões para os casarões que a delimitavam. Alguns muito antigos, construções modernas, edifícios. Todos acolhendo pessoas em seu repouso. Passei a viajar pela arquitetura, as tonalidades de suas pinturas, impondo-me a caminhar pela praça em uma outra perspectiva. Há centenas de anos como ela seria ? Tentei imaginar os primeiros moradores, seus trajes, seus desafios...enquanto transeuntes hoje caminham inconscientes de como tudo começou, como se as coisas estivessem estabelecidas e estruturadas como se encontram. Quantos venceriam estes primeiros obstáculos, talvez privações, impulsionando a construção de uma cidade imensa, com um números exacerbado de pessoas que se acotovelam pelas ruas.
Deparei-me com a majestosa matriz de São Policarpo, imponente, quase que ordenando que todos se ajoelhem. Ainda nos dominamos pela grandeza dos monumentos. Rica em entalhes, símbolos místicos e rodeada pelos arcanjos, cada um voltado para um dos pontos cardeais, como que a protegendo e anunciando que seus seguidores estarão seguros. A segurança é uma das importantes necessidades humanas, segundo Maslow. No princípio o perigo de animais e demônios que andavam pelas florestas na qual a pequena vila estava inserida, agora uma dezena de preocupações oscilando entre ladrões, seqüestradores e dívidas financeiras.
Quem me visse ali tiraria as mais diferentes conclusões, provavelmente nenhum acertaria o que me motivava caminhar solitário por uma praça erma no meio da madrugada. Ri das possibilidades. Imaginei algumas pessoas se consumindo na tentativa vã de identificar as razões de minha permanência naquele lugar, encostado no poste, baforando um cigarro. Também imaginei outros entregando-se a seus íntimos desejos, que provavelmente eu seria protagonista, ao mesmo tempo em que recusando tais pensamentos obscuros e que emergiam desbravando a costumeira censura imposta por seus dogmas.
Andei solto adentrando a praça. Camisa aberta, cor de palha, a calça jeans, sem cinto, o tênis de marca. O vento suave e um pouco gelado abraçou-se de forma aconchegante. Era bom estar na cidade, era bom estar na praça. Quando criança corria por ela, um pouco modificada, menos florida, antes havia uma fonte luminosa, cercada por sereias que seguravam cornucópias e de onde as águas saiam. Por alguma razão infantil eu acreditava que estavam vivas. Eram seres reais e visitá-las me fazia bem. Tanto tempo depois o cotidiano impiedoso dos dias, o trabalhar horas a fio, matar um leão por dia, as difíceis e complexas relações interpessoais com o jogo de quem pode mais, o mais esperto, geraram um certo ceticismo e todo mundo mítico antes cultivado tornou-se um protótipo do deserto de Gobi. No lugar das sereias há um coreto ocupado por andarilhos.
Naquele tempo eu também alimentava outros sonhos, outros desejos. Um carro passa várias vezes, possivelmente avaliando minhas reações e interesses. Meu corpo bem feito é ainda um poderoso chamariz e chave para inúmeras possibilidades. Detenho-me, no entanto, na observação dos morcegos disputando alguns coquinhos. Eles seguem alheios a tudo o que está a sua volta, mergulhados em suas necessidades de sobrevivência. Nós podemos extravasar um pouco mais, criando necessidades que não são.
Volto a sentar-me no banco, o mesmo banco. Identifico uma rachadura. Não tinha notado antes. Provavelmente se refizer o caminho que havia feito vou perceber outras coisas que haviam passado despercebidas. Vou refletir sobre outros conceitos, divagar em outros pensamentos, ter outras sensações e percepções. Há sempre algo novo mergulhado naquilo que acreditamos estar velho e ultrapassado, naquilo que acreditamos ser amplamente conhecido, no que é comum e corriqueiro. Se continuar assim vou me tornar um filósofo ! Nada melhor do que rir de si e consigo mesmo. Estar de bem com a vida e com sua consciência. Pensar, sentir, falar e agir com sincronicidade.
Atravesso a rua rumo a minha casa, logo na esquina. Gosto dessas reflexões na madrugada. Um momento precioso de estar comigo mesmo. Cada noite me trás novos pensamentos e reflexões, cada noite se revela nova, a praça nunca é a mesma. Cada dia não é o mesmo, algo foi inserido, algo foi diluído, algo foi modificado. Nunca somos os mesmos do dia anterior.
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