Um tanto perturbada, Samira saiu sem rumo. Queria andar. Quando tinha problemas andava até cansar, quando voltava estava mais tranqüila, segura e com propostas para superar as adversidades.
- Se a moda pega !, sua irmã brincava com seu estranho modo de digerir situações desgradáveis.
Mas o fato é que funcionava, ao menos para ela. Silena reagia de outra maneira. Gritava, xingava, esmurrava, num ciclone emocional incontrolável. Mesma educação, mesmo pai e mesma mãe, pessoas tão diferentes. Silena era temperamental, cheia de tirar satisfações com as pessoas, sua postura intimidava, as pessoas a engoliam para evitar os barracos que costumava fazer. Quando a situação se mostrava mais complexa, para fugir de confrontos que sabia não ter ascendência, mudava a estratégia e mostrava-se amiga ou vítima, sempre temperando com algumas lágrimas ou coitadismo.
Samira era diferente. Quieta, calada, explodia por dentro. Tentava ser agradável, amiga, disponível. Dentro de si um turbilhão rodopiava incessantemente com sonhos, autocrítica, censuras e uma boa dose de falta de auto-estima. Seu refúgio era a região dos lagos em sua cidade. Um lugar tranqüilo onde as pessoas faziam suas caminhadas, exercícios, pescarias informais ou simples contemplação da natureza. Lá se sentava, acolhida pela grama verdejante e voava com as garças, se encantava com as flores do aguapé, deixava-se levar pela brisa.
Naquele dia, em particular, soubera que Alexandre a traía e não apenas traía, saía com sua melhor amiga, ou pelo menos assim a havia considerado até então. Saía com Devanice. Magra, cabelos volumosos e vermelhos tingidos, sempre com uma calça muito justa. Gostava de parecer o que não era, dizer o que não tinha, enfim contava vantagens o tempo todo, fazia-se de dengosa, cheia de trejeitos, conquistou o moço. O pior é que ninguém contou, Samira viu. Por uma estranha intuição, decidiu ir almoçar tomando outra rua. Passou em frente ao trabalho de Devanice. Era atendente de uma Clínica Odontológica. Estavam agarrados embaixo de uma árvore. Chamam essa árvore de Mimosa. Pura ironia, quase uma afronta. A rua é Rua dos Prazeres. Tudo se encaixava, inclusive os dois. Passou na outra calçada, sem coragem de ir até eles. Dentro de Samira havia um desejo insuportável de espancá-los, dar na cara dos dois, esbravejar, arrancar todos os cabelos de Devanice. Preferiu seguir em frente, remoendo os três anos, cinco meses e dois dias de namoro.
Em sua caminhada reconstituiu seus dias com Alexandre. Esteve desempregado, ajudou-o financeiramente, assumiu as prestações de sua moto, da faculdade e outras despesas que lamentava possuir. Agora a moto estava paga, a faculdade concluída e namorada nova. Os primeiros dias foram inesquecíveis, os primeiros meses intensos, esfriando gradualmente com a sobrecarga financeira arcada por Samira, que se ocupava em horas extras para dar conta das responsabilidades que assumira em nome do namorado. Chegava em casa exausta e ele mostrava-se altamente compreensivo, não se estendendo muito, já que ela precisava descansar. Alguns beijos e abraços e seguia com sua moto, acompanhado pelo sorriso complacente de Samira. Alexandre evitava o sexo, dizia que a queria por completo após o casamento, o que fazia com que dezenas de sonhos se empilhassem, românticos e inefáveis.
Sentada à beira do lago, Samira se repreendia, julgando-se idiota e incapaz de perceber o quanto havia sido usada. Há quanto tempo ele estaria com Devanice ? Talvez desde o início. Em geral saíam os três juntos, organizavam almoços juntos, churrasquinhos juntos, passeios juntos e, muitas vezes, se oferecia para dar uma carona e levá-la para casa. Como teria conseguido ser tão tola, durante tanto tempo ?
Decidiu andar pelas margens. Precisava andar. Pensou em se atirar nas águas, não sabia nadar, talvez morresse afogada, se tivesse sorte de não ser salva por algum transeunte. Voltava a refletir e não percebia as vantagens de morrer. Ele estava com ela, nem sentiria falta, pelo contrário, seria um alívio, o ajudaria mais uma vez livrando-se desse peso, agora inútil. Olhou as capivaras passeando. Devia ter nascido uma capivara, seria procurada em seu cio, iria parir e que se dane se seu parceiro a estava traindo ou não. Nadaria, pastaria e a vida seria quase perfeita. Quase por que poderia aparecer alguém e matá-la para comer. Mas estava sendo devorada viva por todos esses anos e sentia-se feliz, qual o problema de um tiro certeiro ?
Inconscientemente devorava suas unhas na ânsia de engolir-se, agredir-se, machucar-se. Era inadmissível que tenha permanecido cega a todo cenário tão transparente que se apresentava. Paixão cega e burra. Deixara de estudar, desconsiderou o sonho de seu carro, de suas expectativas de futura esposa de Alexandre e mãe de seus filhos. Agora ele estava formado, com sua moto e com Devanice. Samira estava na ponte olhando o rio e pensando em se lançar nas águas. Investira seu dinheiro nas alegrias e necessidades de seu ex-namorado.
Uma capivara, a grande matriarca, estava olhando fixamente para Samira, como se acompanhasse seus pensamentos e aflições. Samira fitou-a. Olhos nos olhos.
- Você é que é feliz, minha amiga !, considerou Samira tristemente, não conseguindo conter uma pesada lágrima que se lançou ao chão.
Uma centena de pensamentos se debatiam conflituosos. Respirou profundamente. Uma vez mais olhou para a matriarca. Pegou o celular e alegou um problema que a impediria de retornar no período da tarde. Uma desculpa esfarrapada que não faria diferença, ao longo dos anos trabalhara feito uma camela, sem faltar um dia se quer, com chuva, frio ou sol.
Parou no salão da Alzira. Queria passar por uma transformação, novo corte e coloração dos cabelos, unhas das mãos e pés. Renovaria seu guarda-roupas. Depois disso, compraria seu carro, financiado, mas seria seu carro.
Eram quase nove horas da noite quando Alexandre parou sua moto em frente a casa de Samira. A moça segurou a ebulição que se formou dentro de si, antes de ouvir o ronco da moto estava segura e decidida, agora temia abrir a porta. Mais um suspiro e saiu na varanda. Estava deslumbrante, uma beleza que até então estivera escondida. Alexandre surpreendeu-se. Com modos machistas a censurou, não queria a mulher dele daquele jeito. Mas Samira estava forte, mais forte que imaginava. Com elegância soube pontuar cada momento em que viveram juntos. Não cobrou nada, mas deixou clara sua importância na vida dele. Depois revelou que o tinha visto com Devanice. Negou. Vergonhosamente negou.
- Não é preciso mentir ou se justificar, não sou mais necessária, agora é o momento de você viver com Devanice. Você a ama, não ama ?
Alexandre estava confuso. Ameaçou, intimidou, dissimulou. Samira estava impassível. Alexandre afirmou que ela não viveria sem ele. Gritou. Esmurrou a árvore. Uma grande Santa Bárbara. Declarou que Samira iria se arrepender. Saiu a toda velocidade.
Dentro de casa, a moça rendeu-se às emoções.
Por dias mostrou-se no emprego de Samira, na entrada ou na saída, e algumas noites, talvez bêbado ou drogado.
Cinicamente, Devanice a procurou com ares ameaçadores de uma pessoa ofendida, dizendo que jamais trairia sua melhor amiga. Samira a ignorou, comportando-se como se a moça não existisse.
A surpresa de Samira, no entanto, foi quando seu chefe, Sr. Ademar, anunciou a abertura de uma filial em outro Estado e a convidou para gerente. Era o desafio que precisava para sentir-se ainda mais viva. Aceitou.
Coincidência ou não seu apartamento fica próximo a um lago onde desfilam capivaras. Da janela de seu quarto, as segue com o olhar, talvez haja um elo, uma ligação, uma mensagem subliminar, de qualquer forma houve uma conversa muda naquele dia no lago, onde a matriarca implantou algo em Samira que a fez mudar e não se abater por alguém que não se fazia merecedor de sua dedicação.
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