A tarde estava quieta, com o ar parado, sem vento, o sol espargia raios alaranjados pelas nuvens em curiosa dança de cores enquanto a noite começava aproximar-se. Os pássaros, seguindo o instinto, alardeavam pelo céu na busca de um lugar para repousar. As galinhas se empoleiravam pelas árvores, tentando proteger-se de algum predador noturno. O fogão a lenha de Domingas preparava o último repasto. Uma casinha na mata, de chão batido, poucos móveis, de madeira, ultrajados pelo tempo, tudo evidenciava a antiguidade do lugar, inclusive a moradora. A casa estava ocupada desde sempre num histórico confuso onde as gerações se contorciam passando da tataravó, ou antes disso, até chegar ao presente.
Domingas beirava os cem anos, há quem dissesse que tinha mil anos, a considerar sua aparência, apesar de demonstrar inacreditável vitalidade. Muito ativa. Recolhia-se com as galinhas e despertava pela madrugada, religiosamente. Não tinha medo de nada, nem do futuro incerto, era rabugenta, brava, ranzinza, sem qualquer senso de humor. Olhava as pessoas como se conhecesse cada dia de seu destino, para onde estavam se dirigindo e somente nestes momentos esboçava um leve sorriso. Parecia não entender como as pessoas podiam ser tolas e cometer erros triviais, escolhendo caminhos inseguros e desastrosos. Em hipótese alguma aceitava opiniões contrárias as suas, até mesmo por que o tempo lhe ensinara e muito as surpresas e desafios da vida, por essa razão era avessa a qualquer mudança.
Tinha um filho, Aristides, com nítidos problemas mentais, que as pessoas especulavam ter nascido de um romance de Domingas com um demônio. Já se mostrava também bastante velho e a ajudava nos serviços mais corriqueiros como cortar a lenha, cuidar dos animais e alguns cultivos de subsistência. Domingas evitava a todo custo afastar-se de cada e ir até a vila. Num pacto silencioso as pessoas mantinham-se afastadas, entre respeito e medo, recheado por lendas e superstições. Aristides apresentava certa dificuldade de locomoção, cambaleando pela mata em busca de lenha ou atrás de alguma galinha para ser sacrificada e servir de alimento, assim como limitações em sua coordenação motora e alto nível de ansiedade, com repentinas mudanças de humor, refugiando-se pelos arredores quando algo o contrariava. Apenas Domingas conseguia entender o que dizia e talvez. seu companheiro Jambo, um enorme cão da raça Kurzhaar.
A vila flutuava pela interpretação dos acontecimentos relacionando-os a Domingas. Uma boa colheita e Domingas estava feliz e satisfeita. Um gado que morria era devido a alguma praga lançada pela mulher; sempre encontrando-se razões para isso ou para aquilo. Essa era a rotina e o assunto da vila. As mulheres debruçavam-se nas cercas protegidas pelos chuchuzeiros e tinham como assunto principal Domingas e Aristides, apesar de muitos nunca a terem visto.
As chuvas chegaram associadas a um calor descomunal. Naquele ano, porém, algo estranho também passou a acontecer. Primeiro foram as aves de Dona Marupa, que residia no fim da vila, perto do brejo. Ela criava cabras, porcos, galinhas, patos, perus, angolas, gansos, uma variedade abastada de animais. As galinhas e galos começaram a mostrar a crista inchada, soltar uma gosma estranha pelo bico e eliminar fezes meio verde e amareladas. Morriam. Em seguida os perus, os patos e a coisa se espalhou. Logo foram as galinhas da Dona Ponciana e da Dona Ritinha. Todas lá de onde chamavam “Água Espraiada”. As mulheres horrorizadas tentavam identificar em que haviam ofendido Domingas.
O filho de Dona Ponciana, Adamastor, criou coragem e decidiu acabar com aquilo. Era preciso enfrentar Domingas. Passou a visitar casa a casa onde havia homens que podiam juntar-se ao grupo. Estavam reunidos na Igreja de Santa Apolônia, uma construção infiltrada entre árvores centenárias na parte mais alta da vila. O céu plúmbeo era entrecortado por raios e o ribombar atemorizador dos trovões. Vários anunciavam que Domingas já conhecia suas intenções e que seria prudente retroceder. Adamastor, contudo, encorajava a cada um. Não poderiam continuar vivendo à mercê dos humores de uma bruxa. As esposas estimulavam, as mais idosas alertavam para os males que estavam atraindo para a vila.
O Padre Nicolau acolheu os nobres homens nesta luta a favor de Deus. Dona Ponciana, tomando coragem, contestou-o citando o “não matarás”, no que foi veementemente rebatida. O padre complementou com “a feiticeira não deixarás viver”, estampado em Êxodo 22,18 e abençoou a todos para que tivessem pleno êxito.
Após o temporal, a madrugada estava calma. Liderados por Adamastor dez homens adentraram a mata rumo a casa de Domingas. Desejavam surpreendê-la dormindo. Ateariam fogo a casa e aguardariam até que tudo se queimasse. Caso ela ou o filho reagissem os matariam a golpes de machados, foices e outros utensílios que levavam consigo. As chuvas haviam criado poços de lama, como se o brejo tivesse se expandido. Entendiam que as artes mágicas de Domingas estavam em ação. Deviam estar preparados. Vez ou outra um uivo, um ruflar de asas e pisadelas no mato os faziam estacionar, inseguros.
Aproximando-se da casa, Jambo os localizou com presteza, latindo ameaçador, despertando os moradores. A porta abriu-se e Domingas emergiu das sombras. A visão paralisou a todos, imprimindo profundo silêncio.
- O que vocês querem aqui?, questionou a velha encarando-os, vão embora !
- Só saímos daqui depois de termos certeza de que estiver morta !, gritou Adamastor encorajando o grupo.
Um dos homens, mais influenciados, avançou na direção da mulher com uma foice. Domingas ergueu a mão direita e a foice elevou-se aos ares.
- Vão embora daqui...recomendou a senhora ameaçadora.
Três dos homens correram para atingir a mulher, quando Aristides apareceu arrancando as armas das mãos deles e torcendo-lhes o pescoço como se fossem frangos. Um golpe de machado, contudo, atingiu o crânio de Aristides, derrubando-o. Num gesto de Domingas o homem caiu segurando o próprio pescoço sendo asfixiado lentamente.
Um vendaval assustador se iniciou, enquanto a mulher fazia invocações. Saíram todos mergulhando na mata fechada. Apenas Adamastor e mais dois homens conseguiram retornar a vila. Os outros foram tragados pelo pântano, picados por serpentes ou rolaram pelo despenhadeiro.
Domingas recolheu o corpo do filho, consternada e vivificada pelo ódio. Preparou um misterioso ritual. O coração pulsante de uma onça passou a bater no peito de Aristides. Restos mortais dos homens que atacaram a casa permitiram que a bruxa ligasse olhos ao redor da cabeça do filho de maneira que ele poderia enxergar por todos os lados. Ao abrir um pote de barro manifestou-se uma entidade sobrenatural, como um elemental, que cicatrizou os ferimentos e deu vida a cada órgão. Em recompensa ganhou a liberdade da floresta. Aristides agora era um monstro, com instintos apurados, a audição de uma onça, a percepção aguçada, a visão em 360º, dono de uma força descomunal.
A vila estava em pânico. Não haviam conseguido a mulher e ainda haviam matado seu filho. Haveriam terríveis represálias.
O marceneiro, Bento, após um dia intenso de serviços chegou em sua casa no escurecer da noite. Na porta da casa estava pendurada sua cadelinha vira-latas. Trêmulo adentrou a casa e na sala deparou-se com sua esposa, Denilce, degolada, visivelmente torturada antes de da execução. Na cozinha assando no fogão a lenha seus dois filhos, Maria Branca e Milton Brando, gêmeos de seis anos de idade. Em estado de choque, lançou uma corda em uma viga do telhado da cozinha e enforcou-se ali mesmo.
O próximo foi Lazor, o barbeiro, que estava transtornado em razão da morte do amigo há três meses. Diziam que a bruxa havia transformado o filho num ser sobrenatural. Preparava-se para sair quando ouviu a porta se fechar. Como morava nos fundos foi ver quem era, talvez fosse um cliente e realmente alguém estava sentado na cadeira pronto para ser barbeado ou cortar o cabelo. Suas pernas bambearam, no entanto, ao ver que Aristides o aguardava. Terrivelmente feio, com face nos dois lados da cabeça, olhos de sucuri, segurou Lazor pelo pescoço e lançou-o contra a parede. Sua voz parecia um mugido saído dos infernos.
-Você não vai matar a minha mãe...alertou Aristides, enquanto empunhava a lâmina de barbear terrivelmente afiada.
Dona Ester encontrou o marido vazio, as vísceras haviam sido retiradas e levadas. Achou-o sentado na cadeira na barbearia, olhando-se no espelho. Aos poucos Dona Ester consumiu-se, não mais se alimentava, chorava e falava sozinha pelos cantos. Morreu, certamente de fome. Tempos depois sua filha faleceu vítima de queda de um cavalo. O cavalo espantou-se e a moça não resistiu.
A esposa de Adamastor, Elenice, exigia que fossem embora dali. Temia pela vida de todos. Ele seria o próximo e não apenas ele, mas a família pagaria o preço da ousadia. Domingas parecia nutrir-se pela ansiedade de cada um, o medo de ser o próximo, que fim os aguardava, como seriam mortos, em que circunstância. Apavoravam-se em ficar e em sair de casa, em dormir e acordar.
Uma noite de sono profundo daria o primeiro sinal a Adamastor de que Aristides se aproximava. Ao acordarem pela manhã não localizaram Mateus, seu filho de oito anos. Ele estava dependurado de ponta cabeça na mangueira do quintal. Seu cãozinho estava postado ao lado, esperando que o menino descesse. Elenice somente conseguia gritar desesperadamente. Haviam levado os olhos e a língua, extraídos com o menino ainda vivo.
A fúria de Elenice voltou-se contra Adamastor. Ele era o causador de tudo aquilo. Pagavam com a vida de tantas pessoas apenas por causa de algumas galinhas mortas. No enterro do garoto, Elenice enterrou um punhal no peito do marido. Sorria feito louca e louca passou a viver, andando pela vila, morando entre as árvores e se alimentando de restos que mãos caridosas lhe ofereciam.
Antes Domingas era apenas uma bruxa solitária, agora anualmente exigia o sacrifício de uma pessoa, cujo sangue mantinha seu filho vivo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário