De nihilo nihil. (Lucrécio)
O vento rodopiava uma folhinha seca e amarelada, junto com grãos de poeira próximo ao portão de entrada da velha casa. A pintura há tempos não era renovada, fazendo prevalecer as marcas do tempo, com manchas escuras contracenando com as cores originais. O chão de terra batida circundava a casa rodeada de algumas plantas que provavelmente nasceram, cresceram e se mantém sozinhas. No quintal sobravam quinquilharias amontoadas que fariam a felicidade de qualquer ferro-velho. Dois cães, de raça indefinível, emagrecidos, faziam a guarda da casa de maneira displicente, largados a um canto presos a uma corrente curta e sem muitas opções para se protegerem do sol escaldante.
Ednair casou-se muito cedo, num arranjo familiar, empurrando-a para um dos amigos de seu pai. Cabelos revoltos, um falar fanho e grandes quadris, de alguma maneira reproduzia a maneira de ser de sua mãe, embora cultivasse em seu íntimo uma mágoa muito grande por ter sido obrigada àquele casamento. Definitivamente não gostava dele. Disseram que o amor vinha depois, mas passados tantos anos ele ainda não havia chegado. Talvez se distraído com outras coisas pelo caminho. Em sua mocidade era entusiasmada pelo seu vizinho, Ademar. Belo e pomposo, de mesma idade que ela. Sabendo os horários em que ele passava indo ao trabalho, ao almoço, o retorno ao trabalho, a volta do trabalho...lá estava Ednair na janela ou no portão, fingindo estar esperando alguém, que não era ele. Ele passava e às vezes cumprimentava. Quando isso acontecia um tufo de felicidade a inundava. Ademar estava engraçado com Leonor, do fim da rua. Sortuda. Ele certamente a beijava e esse pensamento corroia o sossego da moça.
Quando se casaram, Ademar estava com trinta e dois anos e Ednair, 14. Até então era um solteirão trancafiado na casa dos pais, saindo apenas para trabalhar. Casaram-se virgens. Um homem pacato, que não bebia, nem fumava. De acordo com os conceitos e a percepção de seus pais e dos pais de Ednair era um homem honesto, trabalhador e precisava se casar. Todo homem precisava se casar, antes que chegasse a velhice. Precisava ter uma esposa e filhos que cuidassem dele, quando assim precisasse. Envergonhado foi apresentado a futura esposa. Não demorou para o casório. Com as economias de Ademar foi comprada a casa onde residiam.
Primeiro nasceu Ordália, depois Sebastiana e por fim Amadeu. Os pais de Ednair achavam que deveriam ter mais filhos. Quem sabe nasceriam outros meninos, somente eles poderiam perpetuar o nome da família. Mas Ednair e Ademar não quiseram. Faziam sexo para terem filhos, não fariam mais. Os pais de Ademar tiveram óbitos sucessivos, primeiro morreu Zenaide, a mãe, e dois meses depois foi a vez de Nicanor, o pai. Com a morte dos pais, sua tia Hermelinda, que morava com eles foi transferida para a casa de Ademar.
Hermelinda em algum momento surtou. Passou a não falar coisa com coisa. Dizia falar com os santos e a cada dia trazia notícias deles. Era comum surpreendê-la com longos papos na sala de estar com São Francisco de Assis, Santo Antonio, Santo Expedito e outros. Ia à missa religiosamente, confessava, comungava e seguia procissões.
Ajeitaram o quarto para Hermelinda junto com os filhos. Uma cama a mais. Aperta aqui e ali e estava devidamente instalada. O problema é que despertava no meio da noite e se levantava para acordar Ademar com notícias de algum santo. Com o tempo tudo se tornou corriqueiro. Acostumaram-se. Assustavam quando não havia mensagens.
Enquanto o vento rodopiava na entrada da casa, Ordália revelava que estava grávida. Tinha pegado cria de um tal João Catira, homem de fama nada boa e que havia feito mal a outras moças. Definitivamente não prestava. Ordália se engraçou e foi levada no bico. Agora a família estava envergonhada. Ademar chorou desconsolado. Ednair deu-lhe alguns tapas no rosto e rezou-lhe um sermão. Mas de qualquer forma a semente estava plantava e iria crescer, seguindo o curso natural das coisas. Ednair queria que Ademar fosse falar com o folgado do João Catira. Ademar esbravejou, pegou um facão, amaldiçoou o homem e se trancou no quarto. Alguns meses e Ordália paria. Nasceu um menino. Puseram o nome de Manuel, por sugestão do médico, Dr. Plínio, que atendia a família a qualquer hora, sendo quase um santo para Ednair. O pai dele se chamava Manuel.
Enfim, Manuel cresceu cuidado por todos, em especial por Sebastiana. Faltavam alguns parafusos em Sebastiana, mas ela adotou o menino como se fosse seu. Parecia uma macaca carregando o menino para cima e para baixo, tendo-o agarrado em si.
Nesse ponto da estória, precisamos falar um pouco de Amadeu. Amadeu era dono de uma loucura inteligente. Passou a escrever para o jornal da cidade e era dono de posições radicais. Dizia-se de esquerda e cultivava consigo conceitos revolucionários. Ele sabia como tornar o mundo melhor. Questionava a distribuição de renda, os privilégios, a elite. Criava versos quase satânicos para os políticos locais. Sem dúvida era uma pedra no sapato. Somente não era pior por que sua loucura algumas vezes despontava com vigor e delirava em posicionamentos inexeqüíveis.
A segunda gravidez de Ordália trouxe Jacy Lua. Era filha de um advogado da cidade, Dr. Carmelo. Ele não quis se casar, mas passou a enviar mensalmente dinheiro para cuidar da menina. O nome foi sugestão dele mesmo. Acompanhou o parto e batizou com seu sobrenome.
Enquanto Manuel vivia aos cantos com essa ou aquela garota, Jacy Lua tornou-se poetisa. Escrevia versos magníficos.
Um dia Ednair acordou morta. Amanheceu, o sol raiou, o cachorro latiu e ednair não se moveu. Acorreram-se todos. Chamaram Dr. Plínio. Alguma coisa tinha parado, certamente o coração. Ademar estava desconsolado. Homem não podia viver sem mulher, seu pai lhe tinha ensinado isso. Onde poderia arrumar outra ?
Três anos depois ele se encorajou e conversou com Dona Maria Tristeza, dona de um botequinho. Também sozinha e viúva. Começaram a se ver um dia, outro e logo Dona Tristeza estava na sua casa e sua cama. Ednair estava morta e não se importaria. No finados receberia as devidas flores.
Dona Tristeza pôs ordem na casa, apesar do tsunami que representava. Pôs Ordália para trabalhar no boteco, Sebastiana cuidava da casa e a ajudava na preparação da comida. Tornaram-se boas amigas. Amadeu foi para a capital tentar a vida e colocar seus projetos políticos e ideológicos em funcionamento. Arrumou encrenca com Manuel arrumando emprego para ele. Jacy Lua foi estudar. Via nela um grande futuro. Escrevia coisas lindas. Nas noites, Jacy Lua lia suas poesias para ela e Maria Tristeza chorava, emocionada. Enquanto isso Hermelinda resmungava com os vizinhos, no auge de seu desvario, que ninguém tratava dela, que passava fome e frio.
Mas Maria Tristeza não queria filhos, mas queria Ademar. Ele foi claramente convocado a exercer suas funções de marido, que extrapolavam a questão de trazer dinheiro para o lar. Os domingos eram festivos, reunindo os filhos de Ademar e os filhos de Maria Tristeza. Cinco filhos, já com netos. Até os cachorros foram soltos.
Enquanto o vento rodopiava uma folhinha seca e amarelada, a vida seguia agora com a ponta firme de Maria Tristeza. Doce e dura. Nordestina. Firme que nem rapadura.
Na formatura de Jacy Lua, Maria Tristeza estava empetecada, parecia a dona da festa. Chorava abraçada a Ademar, que também se debulhava em lágrimas. Nesse dia Amadeu tinha sido preso, mas nada abalou a comemoração.
Ao abraçá-la comovida, Hermelinda lhe diz:
- São José mandou dar-lhe os parabéns ! Disse que a Ednair também está muito feliz, que ela entende que na vida tudo tem seu momento e sua importância. Ela teve o dela, agora é sua vez, até chegar sua filha Morena Flor...
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