O cachecol, alaranjado adornado com fios dourados, balouçava agitado pelo vento. A paisagem alva e fria, dava um ar de solidão e isolamento.Não havia movimento, a não a ser a neve que se derramava silenciosa. Ninguém pelas ruas escorregadias, apenas aquele homem, agasalhado com um pesado sobretudo, gorro e passos firmes apesar da inconsistência do solo. Entrou num rompante em uma casa de madeira armazenada entre pinheiros. Uma casa simples, aquecida por uma lareira e decorada com cabeças de animais caçados. Aproximou-se rapidamente do fogo buscando um pouco mais de calor diante daquele lugar inóspito. Sorria enquanto mantinha as palmas das mãos voltadas para as labaredas. Uma dezena de pensamentos percorriam suas memórias naquele momento. Do casaco retirou uma faca ricamente talhada e ainda marcada pelo sangue da vítima. Passou a língua pela lâmina como querendo saborear o que ainda pudesse haver de vida ali, nas rubras marcas que permaneceram untando o objeto.
Recostou-se a cadeira, já antiga, onde seu pai e seu avô, antes permaneceram sentados, dando-lhe os principais ensinamentos. De certa forma, era como se ali ainda estivessem. Sobre a lareira seus objetos pessoais emitiam as vibrações de suas vidas em uma estranha psicometria. A faca, que manuseava, analisando as inscrições e sorvendo o sangue, traduzia ecos de um passado distante, sem que os elos se quebrassem. Evidentemente a morte, conceituada como fim de um percurso, não existia. Talvez a imersão em um outro ambiente como se deixássemos de viver na terra para viver na água. Para outras pessoas isso poderia gerar dúvidas e se mostrar apenas como crença ou argumentações filosóficas, para ele era real e vivenciava o trânsito entre essas dimensões constante ou para não dizer permanentemente.
Esborrachado naquela cadeira um dia seu avô o chamara. Tinha quatro ou cinco anos. Disse-lhe que precisava aprender algumas coisas importantes. Levou-o para caçar e começou ensiná-lo a empalhar e embalsamar, assim como seu pai o fizera e assim como ensinara ao pai dele. Naquela região abandonada pelos deuses era preciso sobreviver, portanto tudo que pudesse se converter em alimento deveria ser aproveitado.
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Uma confusão no mapa e a falta de referências na paisagem fizeram com que Callum, Owen e Shannon se desviassem de seu destino. O veículo avançou pelo gelo sob os protestos da moça. Shannon, universitária, desinibida, alegre, cobiçada pelos colegas, era namorada de Callum. Owen era irmão mais novo de Callum. Aproveitando as férias escolares decidiram viver uma aventura pela região gelada da Noruega. Apesar de todos os alertas sobre as devidas precauções que deveriam ter, o espírito aventureiro e desafiador de todos se impôs.
O frio era intenso.
Owen propôs verificarem a existência de alguma habitação, uma vez que o carro atolado na neve não conseguiria prosseguir. Shannon começou a demonstrar desespero, receando morrerem congelados, no que era motivada pelo namorado, embora também compartilhasse dos mesmos temores. Caminhar por ali não era tarefa fácil, reservando muitos tombos, além de momentos em que uma cortina branca os impedia de visualizar o que se aproximava.
Apesar da dificuldade foi possível vislumbrar uma cidadezinha alva desenhada na neve. As ruas estavam desertas. Umas poucas casas, certamente abandonadas. Refugiaram-se em uma delas que mantinha a porta entreaberta. O abandono da casa era visível, embora incompreensível pelo fato dos habitantes terem deixado tudo na residência, móveis e utensílios encontravam-se à disposição de qualquer um que chegasse. Se não fosse a desordem poderia se acreditar que retornariam a qualquer momento. Aproveitaram para acender a lareira e aquecer-se.
A noite corria longa quando um ruído surdo estampou pela casa. Shannon e Callum saltaram da cama assustados. Baques e arrastar de móveis, pancadas e golpes na escuridão não davam a idéia certa do que estava acontecendo.
- Owen !? – clamou Callum preocupado, acendendo rapidamente a lanterna e se dirigindo em direção ao outro quarto.
O silêncio passou a imperar desesperador. Owen havia desaparecido nas trevas. Arriscar-se pela madrugada fria apenas faria mais vítimas. Com os ouvidos apurados, buscando captar os raros sons, os namorados encolheram-se próximos a lareira munidos de facas que encontraram na cozinha e assim permaneceram até o raiar do dia.
A claridade da manhã trouxe alívio e terror. Não havia indícios do que poderia ter acontecido a Owen. Pegadas afundadas no gelo mostravam a presença de mais alguém. Partiram em busca do rapaz, vasculhando as casas e estabelecimentos de comércio. O dia avançava sem pistas. Uma casa mais afastada e emitindo fumaça pela chaminé chamou a atenção. Rumaram para ela, localizada no sopé da montanha.
A caminhada foi estafante. À medida que seguiam a casa parecia ficar mais distante. A paisagem branca mostrava-se desgastante e desesperadora. Callum chegou com o costumeiro “tem alguém aí?”, seguido pela namorada “estamos perdidos, precisamos de ajuda”. Não houve resposta. Empurraram a porta que se abriu num ruído rouco, irritante. A lareira acesa. Um bafo morno os abraçou. Adentraram cautelosos. Um novo “tem alguém aí?!” ressoou mudo pelos cômodos.
Na grande mesa da cozinha havia pedaços de um corpo, com sangue abundante pelo chão. A cena os impactou terrivelmente. O ventre expondo os órgãos sexuais demonstrava tratar-se de um homem. O medo daquele corpo ser de Owen crescia a cada momento, porém não havia roupas ou a cabeça. A sensação de estarem sendo observados, o odor de sangue, o corpo mutilado, começou a gerar sentimentos pavorosos. Saíram às pressas da casa. Sem saber para onde ir retornaram à casa onde haviam passado a noite.
Dentro da casa, sobre a lareira, a cabeça de Owen mostrava-se como um ornamento. Gritos e choro convulsivo, “porque Owen !?” ecoava tristemente. Um golpe fez Callum se calar e Shannon foi arrastada até o pé da montanha. Um quarto no subsolo da casa a aguardava. O homem queria se reproduzir. Estava só e envelhecia. Precisava de um filho, um filho homem, que seguisse a tradição solitária da família qual havia sido com seu pai, seu avô, seu tataravô e tantos outros que se arrastavam em sua ancestralidade. A moça permaneceria com ele até que gerasse o filho e este se tornasse suficientemente independente. Ela seria tratada com chás especiais e teria o que precisasse para gerar e parir o rebento. Desmaiada foi depositada sobre a cama fofa e o travesseiro de penas de ganso. Uma grade a manteria segura.
Callum acordou atordoado. O homem levara Shannon. Armou-se como pôde e foi em direção a casa. Seu irmão estava morto, mas certamente a namorada sobreviveria ao monstro. Procurou as portas do fundo da casa, olhou pelas janelas e procurou ter certeza de que estava seguro. Mais uma vez reinava silêncio sepulcral no interior da casa. Entrou, sobre a mesa já não havia os pedaços de corpo. Os pedaços estavam salgados e dependurados ou dentro de baldes, certamente com sal e temperos, buscando conservar a carne por mais tempo. Lamentou pelo irmão. A cozinha estava limpa. Olhou os três quartos: um parecia um laboratório químico, onde o homem guardava os ingredientes para empalhar e embalsamar os corpos. No outro quarto Callum estacou vendo embalsamados dois homens sentados, como se conversassem sentados em suas cadeiras. O lugar, com muitos livros, demonstrava ser uma biblioteca centenária. No terceiro o quarto propriamente dito, composto de uma cama, um criado-mudo e um guarda-roupas.
Atreveu-se a chamar por Shannon. Várias vezes e nada. E novamente tudo escureceu. Outro golpe o calara. Despertou vendo a umidade do teto. Por entre as grades, viu que um homem sentado em uma grande cadeira o observava como que esperando que acordasse. Era um homem de aparência esguia, mas forte, cabelos negros reluzentes e olhar penetrante, de alguém muito observador, seu olhar parecia atingir afiado como lâmina e penetrar a alma.
Os xingamentos e agressividade de Callum pareceu não perturbá-lo. Apontou para uma tigela ao lado onde um guizado cheiroso exalava intensa fumaça. Callum lançou a tigela contra a parede. “Não vou me alimentar do meu irmão !” berrou enfurecido.
Da outra cela, Owen vociferou: “É você, Callum?”. “Owen !”, gritou o irmão em prantos. “Você está vivo?”, “Está bem ?”, “Está ferido ?“...”Estou inteiro, apenas zonzo”, disse o rapaz, em tom tranqüilizador. Somente então, Callum pôde raciocinar e lembrar-se de que a cabeça sobre a lareira não era do irmão, o desespero o fez acreditar e enxergar algo que não era. Havia sido disposta com o rosto voltado para a parede. Não tinha visto o rosto. Apenas concluíra.
Os dias se sucederam impacientes. Callum relutou o quanto pôde, mas acabou cedendo e se alimentando mesmo sabendo que aquela carne era humana.
Algumas vezes, Callum acreditou que vistoriava as celas os homens que havia visto embalsamados. Talvez aquela carnificina tinha como objetivo manter vivos o pai e o avô do homem de cachecol. Por outras vezes, entendia ser tudo aquilo apenas fruto de sua imaginação apavorada.
Algumas vezes, Callum acreditou que vistoriava as celas os homens que havia visto embalsamados. Talvez aquela carnificina tinha como objetivo manter vivos o pai e o avô do homem de cachecol. Por outras vezes, entendia ser tudo aquilo apenas fruto de sua imaginação apavorada.
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Sem perceber as nuances entre o dia e a noite, logo se perderam no tempo. Ansiavam descobrir uma saída, mas a cada momento percebiam que estavam definitivamente prisioneiros daquele lunático. Religiosamente o homem os visitava, sentava-se em sua cadeira e ficava observando os dois, como se assistisse a um reality show. Passava horas analisando as reações e demonstrava-se impassível aos gritos, murros e ofensas que cada um poderia externar. Dessa forma, ele passou a conhecer muito bem a cada um.
Certa manhã Callum despertou tendo ao seu lado uma faca. Junto dela um bilhete, escrito em letras góticas, “se deseja sair, mate seu irmão”. Segurando o bilhete sentou-se na cama e chorou. Passou muito tempo lendo e relendo as letras desenhadas.
Na penumbra, aparentemente drogado, Owen foi introduzido na cela de Callum. Callum acolheu-o e o fez deitar-se. Lágrimas escorriam pelo seu rosto, não poderia executar aquela ordem. Latejava em sua mente “se deseja sair, mate seu irmão...ou morrerá”. Um ou outro teria que sobreviver. Pensou em matar-se a si mesmo, mas faltava-lhe coragem. Assim como faltava coragem para matar seu próprio irmão.
O homem chegou. Sentou-se como que buscando apreciar as cenas dos próximos capítulos.
- Mate-me, determinou Callum agarrando-se às grades.
Acariciando seu cachecol, o homem não demonstrava qualquer reação. Apenas olhava. aproximaram-se dois homens. O pai e o avô dele que conversavam entre olhares.
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Callum acordou trêmulo e rígido, nu no meio da neve. A morte se aconchegava a ele, somente o hálito dela o aquecia. Arriscou-se caminhar por aquele deserto gelado, mas era questão de tempo. Não chegaria a lugar algum.
Em pouco tempo, seu corpo estava novamente na casa, agora apenas para servir de alimento.
Enquanto isso, Shannon se fortalecia. A barriga crescia com o desenvolvimento do bebê. Tudo demonstrava que não demoraria a vir ao mundo.
Owen, atordoado pelas drogas servida pelo homem, atendia as necessidades sexuais do insaciável algoz. Porém, foi isso que inspirou o garoto. Percebendo que estava ingerindo algo que o tirava da realidade, resolveu fingir que tomava o chá e não tomou. Simulando estar no costumeiro transe, manifestou interesse em prolongar o ato, dessa vez possuindo o homem. Embora surpreso, concedeu. Utilizando a cinta e um pontiagudo caco da tigela feriu-lhe gravemente a jugular.
Rapidamente apanhou as chaves e passou a buscar desesperadamente Callum e Shannon. Deparou-se com a cela da moça, alienada e sem perceber o que estava acontecendo.
Na parede da cozinha a cabeça de Callum decorava a parede. Saíram em busca da rua. A paisagem estava transformada e o sol iluminava tudo.
A comunidade aturdiu-se com a notícia do homem de cachecol e as vítimas que fizera. Provavelmente tenha sido o autor do desaparecimento de cada pessoa daquela cidadezinha. Em um poço no fundo da casa incontáveis ossos forravam o fundo.
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O bebê nasceu forte e não poderia ser responsabilizado pelos atos hediondos do pai. Era alegre e sorridente, de olhar muito vivo e carismático.
Sua verdadeira personalidade seria revelada com o tempo...a alma do homem de cachecol revivia nele.
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