“O meu galo preto do pezinho amarelo, ele pula, ele dança, ele faz o que eu quero. Galo Preto Romanisco do pezinho amarelo, ele pula, ele dança, ele faz tudo o que eu quero”
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Tocou levemente o dedo do pé na água gelada do riacho que serpenteava entre as velhas árvores da fazenda, observada por uma mulata dependurada entre cipós. Ouvia-se o cantar longínquo de uma ave e o roçar suave da brisa entre as folhas. O mágico silêncio da floresta. Inaê deixou-se caminhar pelas margens frescas atenta aos peixinhos que a acompanhavam como a um séquito. Seus cabelos negros desmaiavam pelos ombros morenos, lisos e brilhantes, avoaçados pelo vento. Em seus pensamentos vez ou outra cintilava a imagem forte de Tucumã, jovem como ela, e que também entraria em reclusão, obedecendo aos preceitos da tribo. Enquanto estivesse lá não teria mais contato com a aldeia, alimentando-se de raízes, alguns chás e alimentos rigorosamente determinados. Assim também seria com ele. Talvez mais difícil seria raspado até as carnes sangrarem, teria provas a enfrentar, demonstrando sua masculinidade e ingresso no mundo dos adultos.
No silêncio de sua reclusão, já passadas semanas, ouviu um grande alvoroço e não demorou para que Tananga a buscasse e a introduzisse na floresta, junto a gruta do Caçará, um lugar proibido de se entrar, reservado aos espíritos. Apenas Tananga podia entrar lá, outros se ali permanecessem morreriam. Contou que homens brancos haviam invadido a aldeia e estavam matando a todos, levariam os mais jovens como escravos, mas as mulheres estupravam e matavam, não tinham utilidade.
Inaê desesperou-se, devia estar lá defendendo seu povo. Seriam desnecessariamente mortos: crianças, anciãos, homens e mulheres, também Tucumã com quem se uniria após a festa da saída da reclusão. O velho pajé a tranqüilizou. Tucumã seria feiticeiro. Durante o isolamento teve sonhos, momentos de desmaio e inconsciência. Falava com a onça.
Três dias depois retornaram a aldeia. Muitos corpos espalhados. Com dificuldade levaram corpo a corpo até o fundo da caverna. Tananga invocou os espíritos e entendeu que deveriam se aprofundar na mata, onde estariam protegidos. Não encontraram o corpo de Tucumã, o que significava que o haviam levado.
Todos os dias ao se aproximar o crepúsculo, um beija-flor rodeava Inaê. O pajé comentou que um espírito desejava falar com ela. Talvez fosse o próprio Tucumã. Passou, então, a ornamentar-se com uma flor nos cabelos para recepcioná-lo. E caminhando, gradualmente, foram chegando ao mar.
Tucumã, por sua vez, sofria com os maus tratos, sendo obrigado a trabalhos forçados e pouca alimentação. Havia presenciado outros morrerem esgotados fisicamente e com violentos açoites. O surgimento da lua trazia em seus pensamentos a bela Inaê, quando a lua não vinha exasperava-se e segurava o choro que insistia abrir espaço pela garganta.
Ouvia a onça sempre rondá-lo. Apurava os ouvidos e sentia um arrepio por todo o corpo.
Em um dia ensolarado, muito quente, Tucumã, fraco e cansado desmaiou sendo duramente surrado pelo capataz Luís Floriano. Sentiu um profundo desejo de vingança. Com passos de cutia conseguiu a cinta com que fora espancado. Enrolou a cinta com cipó titica, desejando que o homem sofresse o que ele sofreu e enterrou num formigueiro. As ferroadas das formigas tucandeiras produziam intensa dor, era essa dor que ele desejava ao capataz.
Por efeito de sua magia, logo percebeu-se grande agitação. Luís Floriano aparecera com vergões vermelhos pelo corpo, os olhos inchados e pronunciando frases desconexas. Atribuíam o incidente ao calor intenso ou contato com alguma urtiga. O fato é que a febre aumentava a cada dia, não havia chá que a pudesse deter.
Tucumã foi chamado junto do capataz. Ele pediu para estar a sós com o rapaz. Disse que os bichos estavam falando com ele e uma formiga dissera que isso tinha sido feitiço e só Tucumã poderia curar. Se o curasse teria um lugar de destaque e ninguém mais o tocaria.
O jovem feiticeiro foi até a mata, fumou e foi encontrar-se com a onça. Em uma semana, o temido Luís Floriano agitava seu chicote pelos ares novamente. Tucumã, contudo, estava ao lado dele, com serviços leves e inúteis, porém seguro e protegido.
Quando a lua podia ser vista durante o dia, uma tropa chegou com mais mão de obra. Entre os capturados estava Inaê.
- Nós a trouxemos para divertir nossos homens...e eu também !!!, exclamou um dos portugueses.
O coração de Tucumã acelerou e somente não saiu em defesa dela, pois sabia que não teria chance diante de tantos homens armados. Deveria ser sábio, quieto como a urutu, saber dar o bote no momento exato.
Luís Floriano foi avaliar a nova carga que chegara e deparou-se com a índia. Apaixonou-se por ela a um simples olhar. Anunciou que ele seria o primeiro, depois a entregaria.
Inaê foi levada ao quarto mais confortável. Por vezes, Floriano a levantou por estar dormindo encolhida sobre o estreito tapete de vime ao lado da cama. Ela fugia do bem estar que ele queria proporcionar.
Nas rápidas conversas que podiam ter, Tucumã pedia a ela que tivesse paciência pois a libertaria dali.
O espírito selvagem e livre de Inaê a fez planejar uma fuga. Encontrara um ponto frágil na janela. A madrugada seguia alta quando saltou para fora e leve como o vôo da coruja correu para a mata em direção ao mar. Desejava ver o velho Tananga. Foi até a gruta onde estavam e adormeceu ouvindo o sussurro das ondas. Despertou rodeada por vários homens.
Foi violentada por todos e lançada ao mar. O corpo afundou coberto pelas ondas agitadas que batiam nas pedras.
Tucumã despertou num salto ouvindo Inaê chamá-lo. Correu até a floresta, no ponto em que podia avistar o mar. A praia estava clara e serena. Foi quando ouviu o capataz receber a notícia da morte da moça. Contaram que ela tentou fugir e para não ser presa lançou-se ao mar.
Voltou para a mata. Não havia mais sonho. Inaê não mais existia. Sentiu uma mão pesada em seu ombro, fazendo-o voltar-se apavorado. Era Tananga. O pajé iniciou um poderoso canto, monótono e hipnótico, que foi transformando o jovem pajé em onça. Agora para sempre.
Dizem que nas noites de lua cheia a onça se aproxima da praia e Inaê, bela e brilhante, dela se aproxima para selarem seu amor, eterno e indestrutível.
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