Aproveitando a sombra da velha mangueira, Fernando escolhia bulbos de açafrão para alguns grandes vasos que havia adquirido na feira que acontecia há alguns quarteirões de sua casa, todo domingo. Gostava de passear por lá, conversar com as pessoas que já se tornaram conhecidas, comer um pastel de palmito, beber uma coca-cola. Dessa vez, comprou alguns vasos. Iria adornar sua varanda com pés de açafrão. Ao seu lado, o fiel Getúlio, seu cão.
Ouviu chamarem seu nome. Apurou os ouvidos e gritou: “Um instante ! Estou indo!”. Bateu as mãos sujas de terra na bermuda e dirigiu-se ao portão. Surpreendeu-se. Não havia ninguém. Surpreendeu-se também por que Getúlio costumava correr na frente anunciando todo seu poder. No entanto, havia permanecido curtindo seu sono. Retornou ao plantio e um novo chamado. Aguardou uns instantes e outra vez ouviu o chamarem. Olhou Getúlio adormecido. Foi novamente ao portão. A rua estava vazia. Riu-se sozinho, convencido de que estava pirando.
Tudo estaria em paz se uma manga não o tivesse atingido nas costas. Entendeu estar sendo bombardeado.
Voltou a casa para um banho morno e relaxante. Viu então um vulto passar adentrando a sala de visitas. Correu até o local e nada viu. A porta estava trancada. Não teria por onde sair ou onde se esconder. Entrou no banheiro mantendo a porta aberta, estava desconfiado de suas percepções.
Pegou “O dia da caça”, de James Patterson, acomodando-se no sofá, e mais uma vez Getúlio se acomoda no tapete próximo. Ganhara Getúlio assim que ele fora desmamado. Era um belo schipperke e estava com ele há dois anos.
As sombras do entardecer preencheram a sala e um vulto começou a materializar-se ao lado de Fernando. Os olhos profundos, com olheiras marcadas, uma túnica similar ao dos cristãos do século IV, barba bem feita e pele exageradamente alva. Tocou levemente com a ponta do dedo a testa de Fernando adormecido.
Nesse instante Fernando sentiu que seu corpo flutuava, subindo levemente como um dente-de-leão arrastado pela brisa. Houve um momento que pareceu pairar sobre o telhado da casa. Podia perceber tudo ao seu redor com muita nitidez. Uma brecha luminosa abriu-se no espaço e somente aí pôde visualizar com clareza que o acompanhava.
- Chamo-me Zaitron e temos uma tarefa a realizar. Não tenha medo, a partir de hoje você terá muitas percepções, esteja atento a elas, aprenda com elas e não se surpreenda...
Fernando estava mudo. Seguiu Zaitron mecanicamente, sentindo uma paz indescritível, algo que nunca havia sentido antes.
Com a frase “a maioria das pessoas vivem sem presenciar a vida”, despertou com Getúlio lambendo seu rosto.
Os próximos dias trouxeram acontecimentos curiosos. Percebeu que divisava uma aura ao redor das plantas, animais, pessoas e alguns objetos. Nas pessoas podia perceber uma luminescência dourada, rósea, azul, verde, cristalina em tons diversos, não apenas isso mas a partir delas conhecia um pouco das pessoas. Um pouco do que sentiam, o que as moviam, as emoções que estavam vivenciando. Uma dessas pessoas sempre encontrava quando ia para o trabalho. Percebeu que ela possuía uma aura cor de açafrão.
Ao tocar algumas pessoas imagens se sucediam em sua mente e recebia informações sobre elas. Algumas vezes arriscava-se comentar, quando eram mais próximas, e elas se impressionavam. Era alguém que, em geral, era procurado para confidências, desabafos e Fernando estava sempre pronto para ouvir, principalmente ouvir.
Instintivamente passou a cumprimentar o rapaz de aura cor de açafrão. O gelo foi sendo quebrado e logo ambos se cumprimentavam alegremente.
Tais percepções tornaram-se naturais com o tempo. Zaitron vez ou outra surgia trazendo-lhe novos “poderes”. Orientado por Zaitron fixou sua mente na casa de Cleide, sua amiga de trabalho. Passou a visualizar a casa, andar por ela, ver detalhes. Curioso, no dia seguinte disse ter sonhado com ela e descreveu o que havia visto. A colega impressionou-se pois realmente a casa onde morava possuía aquela arquitetura e decoração.
Uma oportunidade de estudar o xamanismo, participar de algumas cerimônias, passar a realizar alguns rituais ampliou ainda mais suas percepções.
O moço de aura cor de açafrão chamou-o, combinaram um chopp. Chamava-se Bruno. Uma troca espiritual intensa acontecia. Conversaram por horas. A chamada sincronicidade operava.
Passaram a se encontrar frequentemente, longos e intermináveis papos. Liam, realizavam exercícios de meditação ou de desenvolvimento psíquico. A amizade se consolidava e a experiência mágica se estruturava. O mentor de Bruno se apresentou a Fernando com o nome de Zéfiro. Pertenciam à mesma egrégora espiritual.
Não encontravam outras pessoas na cor do açafrão, por mais que buscassem.
A energia planetária os conduziu a São Thomé das Letras, onde as vivências se ampliaram. Hoje ali vivem, na simplicidade de Chico Taquara, na beleza de seu por do sol, no aroma de seus incensos. Apenas duas pessoas que encontraram um portal aberto e se decidiram mergulhar nele.
Ali esses dois seres das estrelas, Zaitron e Zéfiro, apontaram a formação de uma comunidade. Outros seres do espaço se aproximaram.
O mundo mostrou-se muito maior do que supunham.
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