- “Pulvus eris et in pulvis reverteris”, declarou o ancião da Ordem diante do olhar distante de alguns poucos homens, enquanto a terra era lançada sobre o cadáver. Izaías estava de bruços, olhando para o solo, uma maneira de se garantir que todos entendessem a mensagem. Nada mais é o ser humano que o pó, por isso todos deveriam ser considerados iguais. Os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade pulsavam fortemente nas veias de cada um que ali se encontrava.
O ritual de sepultamento foi rápido. As palavras duras e fortes de Simeão reverberavam pelo ar, enquanto dois outros membros colocavam as armas antes usadas por Izaías ao lado do corpo e por cima dele a Bandeira de Sant´Anna.
Muito tempo havia se passado desde que Gregório XIII havia definido as comemorações de Sant´Anna, em 26 de julho. Há um tempo ainda mais antigo o nome da mãe de Jesus já fazia parte do culto popular. Mas a Ordem havia postulado a Santa como sua padroeira e séculos ocultavam as ações do grupo. Um dia Anna, já idosa e estéril, anunciou sua gravidez, após longas meditações de Joaquim, seu esposo, isolando-se no deserto. A Anna caberia conceber Maria, a “Senhora da Luz”. Anna havia sido o caminho, canalizando a luz divina, para que as antigas profecias se concretizassem, até a chegada do Messias.
Nos idos de 1625, Anna havia aparecido e convidado "Leva-os contigo: esta luz vos conduzirá e vós encontrareis a imagem que vos protegerá de todos os males do mundo, e o mundo conhecerá, enfim, a verdade daquilo que prometi." Desde então uma réplica da imagem fulgurava no brasão da Ordem e estava estampada nos aventais durante as celebrações.
O grupo havia percorrido os principais pontos sagrados como a Basílica da Anunciação, a Igreja de Sant´Anna, em Jerusalém, Santiago de Compostela, Igreja do Santo Sepulcro, entre outros. Izaías foi além e daí ser honrado com um sepultamento que lhe permitiu ser coberto com a bandeira da padroeira.
O deserto trás suas provações e suas bençãos. Buscando proteger-se dos ataques dos beduínos, Izaías foi avançando pelas dunas. O calor escaldante dos dias e o frio cortante da noite desafiavam seu raciocínio e equilíbrio. A água escasseava, os alimentos eram encontrados num golpe de sorte, constituindo de tâmaras e cobras. O medo de encontrar seu fim naquela imensidão se ampliava com o por e o nascer do sol.
Caminhando há dias encontrou uma mulher que seguia persistente com um jarro de barro na cabeça. Alegrou-se, pois, certamente haviam pessoas acampadas nas proximidades. A mulher, demonstrando o avançado na idade, condoeu-se. Serviu-lhe água e ofereceu alguns pães redondos sem fermento e tâmaras, um verdadeiro banquete para alguém que perambulava pelos areais. Ela fez-lhe um sinal para que avançasse a oeste e logo após desapareceu entre as dunas.
Passados alguns dias e uma cidadezinha floresceu às suas vistas. Lá reencontrou seus sete companheiros que haviam sido lapidados pelos homens do deserto. Contou-lhes de sua saga e da abençoada mulher que havia encontrado. Mediante a estranheza e incredulidade de todos, arrancou de sua sacola o último pão que havia restado embrulhado no tecido que a anciã lhe entregara. Seu coração pulsou descompassadamente. No tecido estava bordado “Hannah”, que significa graça em hebraico. O tecido havia se tornado um mapa curioso. O pão tornara-se uma hóstia de ouro com inscrições místicas. Todos se ajoelharam em reverência. Concebia-se naquele instante a Ordem de Sant´Anna.
Por dias e noites os cinco homens se debruçaram estudando e analisando o estranho mapa. Algumas vezes desistiam, irritavam-se, desiludiam-se. Talvez fossem rotas sem significado. Izaías insistia que Sant´Anna não apareceria a ele apenas para salvá-lo, não era digno suficiente para isso, o mapa deveria ser revelado. De súbito, pensou em associar a hóstia dourada ao tecido. Tentaram de diversas maneiras, parecia, contudo, não serem complementares.
Dias e dias se sucederam. Em uma madrugada, incomodado e sem sono, chamou seu companheiro Martinho para mais uma análise do precioso tesouro que tinham em mãos. Sob a luz das velas, olhando o tecido contra a luz, e aproximando a hóstia, posteriormente por debaixo das inscrições, via-se Jerusalém e seus arredores. Yerushaláyim. Para lá estavam sendo convocados. Por sorte, João havia ocultado junto aos genitais valor suficiente para a viagem, escondendo dos assaltantes do deserto. Compraram camelos e suprimento suficiente para a longa viagem.
A viagem era arriscada, desgastante e temerosa. Estavam sujeitos a tudo, da variação do tempo, às tempestades no deserto e pessoas com as mais variadas intenções. A cada por do sol e a cada amanhecer Sant´Anna era invocada para que os protegesse e guiasse.
No avançado da noite foram surpreendidos por uma grupo de cerca de vinte e sete homens que cercaram o humilde acampamento. Queriam os camelos. Queriam e levaram. Estavam armados com sabres cortantes. Não resistiram, apesar do desespero. Obrigaram-se a caminhar a pé. Algumas provisões seguiram com os camelos. Deveriam restringir a alimentação e água o necessário para sobreviverem. Havia muita dúvida se conseguiriam chegar ao destino.
Policarpo era o mais descrente, vacilando continuamente e entregando-se a lamentações, protestos e dúvidas. Os demais procuravam contê-lo, embora muitas vezes fosse exatamente o que pensavam e sentiam. Temiam, contudo, exteriorizar o que se passava em seu interior, temendo a Deus e a Santa.
Vencendo as limitações físicas os homens pisaram na Terra Santa. Buscaram acomodações e decidiram descansar. O corpo não mais os obedecia.
Uma vez em Jerusalém fazia-se importante localizar o mapa na cidade, identificando os pontos que constavam e buscar para o que ele apontava. Novas noites de observação caminhando pela cidade e confrontando o mapa.
Naquele ano, John Coustos, Jacques Mouton e outros homens foram torturados cruelmente pela Santa Inquisição em Lisboa. Tempos difíceis em Portugal.
As coincidências pareciam levá-los ao encontro misterioso que ansiavam. Assim passaram a realizar cálculos e fazer desenhos, tentando aproximar-se do mapa, a partir de sete pontos conhecidos: a Porta Dourada, a Porta de Santo Estevão, a Porta de Herodes, a Porta de Damasco, a Porta Nova, a Porta de Sião e a Porta de Dung. Sete Portas ! No mapa havia uma oitava. Isso passou a intrigar os homens.
Dividiram-se. Agustín, Izaías e Estevan foram explorar a região em que se localiza a Torre de David e os caminhos definidos pelo Portão de Jaffa. Policarpo e João a Porta Dourada e seu caminho até Nossa senhora de Josafate. Martinho, Paco e Uchoa o Portal de Santo Estevão até o leprosário.
Já era meio da tarde quando Estevan avistou a Igreja de Sant´Anna. Excetuando Policarpo e João, todos sorriram ao avistarem uns aos outros nas proximidades da Igreja. De lá podia-se vislumbrar o Monte Sião. Aconchegaram-se a porta da Igreja para suas orações. Seguiram, então, rumo à piscina probática, quando Izaías aproximou-se de uma abertura no chão, como a entrada de uma gruta. Algo que havia desbarrancado. Teve a nítida impressão de ver a hóstia dourada cintilar lá dentro, em meio à escuridão. Embora sob os alertas dos amigos, entrou arrastando-se pela restrita abertura no solo.
A entrada alargava-se gradualmente até uma pequena sala. Talvez fosse uma cripta abandonada. Fria e úmida, silenciosa, divorciada do mundo. Tocou as paredes sentindo a poeira que se acumulou há séculos. Parecia estar completamente vazia e em desuso há muito tempo. Pretendia retirar-se quando percebeu uma outra porta protegida pela penumbra. Aproximou-se e viu apenas trevas.
- Procurando alguma coisa, irmão ?!, ressoou uma voz perfurando o silêncio.
Izaías tremulou, voltando-se para o quarto, na tentativa de localizar o autor da voz. Talvez um mendigo que se aproveitou do lugar para sua moradia.
Um homem muito velho arrastou-se para diante dele, curvado cruelmente pelo tempo, de maneira a ter as longas barbas quase tocando o chão. Usava um manto, como um eremita. Somente muito próximo e banhado pela luz que incidia pela abertura da cova, é que pode notar o olhar acolhedor, bondoso e amigo do velho.
- Muitas vezes somos chamados e não ouvimos, sentimos e não entendemos o fervilhar de nossas emoções, nascemos e morremos na expectativa de entendermos o mundo. Há pessoas que vagam pela vida como uma folha que se arrasta pelo vento. O coração fala mais que as palavras. Mas bem poucos compreendem a linguagem do coração..., disse o homem como desejando despertar uma maior reflexão em Izaías.
- Hoje este lugar está vazio, continuou, mas um dia abrigou o corpo de uma grande mulher. O corpo, porém, retorna ao pó. Permanecem intocáveis os atos. Permanece a capacidade de estar conscientemente ligado a todas as coisas, da simples poeira àquela estrela que passa cortando o céu. Tudo é uma mesma coisa. Tudo é a ação inteligente e misteriosa do Supremo...prosseguiu, sem dar oportunidade a Izaías para que falasse.
- Tudo retorna ao pó, por essa razão este cintilar tão rápido que você avistou aqui é o que importa. Esse cintilar é a vida. Começa, mas seu terminar está ligado à força que pudemos dar à sua luz...é preciso fazer de nossas vidas um facho de luz incessante. Vocês estão sendo chamados para zelar por essa luz, cuidar dela e despertá-la nas pessoas.
- Suas palavras são sábias, interferiu Izaías, mas não imagino como poderemos fazer isso...
- Um dia Anna trouxe ao mundo uma menina-luz, e através de Anna vocês tecerão uma Ordem luminosa.
O homem parou, como que mergulhado em seu interior, olhou ao redor, suspirou, como que fortalecendo-se e prosseguiu.
- Vocês devem construir essa Ordem sob três princípios: a igualdade entre todos, pois não há raça, cor, crença, religião ou geografia que faça com que um seja superior ao outro; a liberdade para que cada um deixe brilhar a sua luz, em sua própria intensidade, pois todo conhecimento, toda manifestação, todo pensamento flui de uma única fonte que provém do Grande Arquiteto; e a fraternidade, pois sem que nos ajudemos verdadeiramente uns aos outros seremos apenas como a areia do deserto que se move confusa pelo vento. A fraternidade é a manifestação do amor, tão aclamado pelos grandes homens e pelas grandes mulheres que canalizaram a luz do Alto. A partir destes princípios vocês devem tecer todo funcionamento da Ordem.
Izaías estava boquiaberto. Queria chamar os amigos que o aguardavam, mas parecia estar em estado hipnótico.
- Você foi trazido a esta catacumba para morrer para sua vida anterior e ingressar neste novo Caminho. Receba isto.
O ancião entregou a ele um tecido dobrado e o beijou na face.
- Posso saber seu nome ?, indagou vacilante.
- Chama-me de Durando, mas nomes são simplesmente nomes. Pense que há coisas mais importantes que nomes. Concentre-se na verdade. Não na sua verdade, mas na verdade eterna...
Sem que pudesse ser perguntado, o homem mergulhou novamente na escuridão do quarto. Izaías olhou o tecido em suas mãos, ainda estupefato, e quando voltou o olhar novamente ao quarto deparou-se apenas com a parede da cripta.
Saiu da cova como que atordoado, parecia que haviam sugado seus pensamentos, seu raciocínio...parecia vazio, porém sentia-se bem, renovado, transformado. Diante dos amigos desdobrou o tecido. Era a bandeira de Sant´Anna. Todos ajoelharam não contendo as lágrimas.
A partir daquele dia os amigos tornar-se-iam membros da Ordem e teriam como sobrenome de Sant´Anna.
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