Chegamos à Praia do Papagaio ao amanhecer. Já havíamos ouvido falar muito daquele lugar, um Paraíso em Santa Catarina, por essa razão dispusemo-nos a mais uma aventura. Seguimos pegando carona de Bebedouro, no Estado de São Paulo, até nosso destino. Foram dias de frio, fome e alguns desencontros, situações por vezes complicadas, além das dificuldades para dormir. Chuva, sol, frio. Conhecemos pessoas gente boa e algumas que se esmeravam em humilhar e vomitar arrogância e má educação. Apesar dos momentos mais complicados, foi divertido. Meu amigo chama-se Horinando, nome nada comum e que dá margens à especulações e ironias, por isso o chamamos de Hórus, deus egípcio com cabeça de falcão, de alta importância naquela civilização.
Apenas para você conhecer alguns momentos de nossa viagem nos divertimos muito, em especial, quando diante do fato de não encontrarmos pousadas, buscávamo-nos o conforto de um motel, sob os olhares risonhos e maliciosos das atendentes. Também quando um senhor de uns sessenta anos estacionou o carro na rodovia ao nosso sinal e deparou-se com dois rapazes, de 21 e 22 anos, malhados e sorridentes. Foi ele que nos levou mais longe, mas exigiu o pagamento de maneira mais atrevida. Confesso que fizemos a alegria do velho. Houve também momentos de não encontrar carona e ter que se ajeitar embaixo de algumas pontes, comer salgados que estavam naquele boteco parado no tempo e que provavelmente estivessem ali há meses, quase embalsamados. Conhecemos Camélia, em um prostíbulo isolado, perto de um brejo sem fim. Procuramos imaginar se haviam clientes. Exageradamente maquiada, já com seus quase setenta anos, que nos acolheu com doçura. Contou-nos de sua vida e lições preciosas, que um PhD em Psicologia precisaria aprender.
Estávamos controlando todo nosso dinheiro para desfrutar lá, o hotel estava reservado. E foi isso que fizemos. Ali éramos quase marajás, vivendo as pequenas coisas com intensidade. Momentos inesquecíveis.
Sendo fora de temporada, estávamos nós e mais umas poucas pessoas, permitindo curtir e explorar ainda mais. Tudo era nosso, estava ali para nós. Lá conhecemos duas garotas, Priscila e Lena, com as quais passamos a nos encontrar e traçar roteiros para conhecermos o lugar. À noite tínhamos a praia, o luar e as meninas.
Arriscamo-nos, nós quatro, a um passeio de escuna. O mar estava belíssimo...até avançarmos mais mar a dentro. O céu fechou-se, tornando-se da cor do carvão, as ondas elevaram-se tempestuosamente, havia chegado uma tempestade. Nosso capitão, Dorinho, avisou-nos que não poderíamos voltar para a praia enquanto ela perdurasse. Deveríamos colocar nossos coletes salva-vidas e aguardar. Não demorou para que as garotas e Hórus começassem a “esgoelar o mico”. Procurei olhar para o horizonte o que fez com que não me sentisse enjoado. Enquanto isso jogavam água do mar nos meus três amigos deitados e enfraquecidos. Ondas cada vez maiores pareciam emergir do oceano. Comecei a temer o pior. Dorinho também mostrava-se apreensivo, aparentando que a tempestade não era normal.
Foi quando como num golpe, fomos arremessados ao outro lado da embarcação e ela virou, lançando-nos ao mar. Vi-me na cena do Titanic, com destroços espalhados e levados pelas ondas. A chuva, as ondas, o vento e eu não conseguia ver muito além de mim, comecei a gritar desesperadamente pelas outras pessoas e depois que me ajudassem. Apoei-me em uma grande placa de madeira e assim fui sendo tragado pelo mar, conduzido para onde ele desejava me levar.
Estava exausto, faminto e com muita sede. A tempestade havia parado e a noite estava estrelada. Não conseguia ver nada a não ser a escuridão que me cercava. Nenhuma luz a não ser das estrelas. A noite transcorreu entre cochilos e meu desespero que se acelerava cada vez mais. Se a noite estava difícil, pior foi o dia. O sol estava causticante. A sede aumentava. Apenas no meio dia uma chuvinha incidiu sobre o mar permitindo que eu matasse minha sede. Também encorajei-me e bebi minha própria urina. Temia a desidratação.
A noite retornou e o eu havia passado o dia sem me alimentar, estava trêmulo e enfraquecido. A lua estava grande, bela e prateada, comecei ouvir que uma voz feminina me chamava.
- Alexandre !...ouvi assustado olhando para os lados. Era uma voz doce, quase um cântico.
O mar continuava plácido. Silencioso.
- Alexandre !...outro chamado, mas não me sentia com forças para responder, apenas olhava. Meus músculos doíam, parecia perder a consciência de tempos em tempos...
Adormeci, apenas despertando quando a tábua pareceu bater em alguma coisa. Era areia, uma praia, levantei-me com esforço, mas feliz, sorrindo. Estava a salvo. Andei um tanto buscando reconhecer o local, ver alguma pessoa, alguma construção. Mas a mata nativa parecia dominar o lugar. Adentrei a mata e não foi preciso avançar muito para ouvir uma cachoeira. Entrei como estava, de roupa e tudo, em festa. Aos poucos despi-me, para sentir a água, sem perceber-me que as águas levavam minhas roupas.
Vi junto a um morro ao lado da cachoeira um pé de araçá, carregado de frutas. Deliciei-me. Andando ainda encontrei bananas e pitangas. Eram o suficiente naquele momento para matar a fome que me consumia.
Arrumei uma cama improvisada com algumas folhas de coqueiro e bananeira para adormecer. Não conseguia localizar minhas roupas, temia o frio da noite.
No dia seguinte consegui alguns mariscos.
Estava realmente sozinho naquele lugar. Algumas aves, o barulho das ondas. Chorei sentado em uma pedra olhando o horizonte. Talvez morresse ali, sem nunca ser encontrado. Hórus, Priscila, Lena, Dorinho...estariam todos mortos ?
Passei a caminhar pela praia, rodeando a ilha, em busca de algum indício, de um contato, almejava de todo coração encontrar uma pessoa. Contudo pude apenas me encontrar com um grimpeiro, um bicudinho-do-brejo, um corocochó, jacutingas e arapongas. O bom foi um ninho de uma pata. Engoli alguns ovos crus.
Aos poucos fui conhecendo o lugar e extraindo dele o suficiente para manter-me vivo. Meus gostos, luxos, restrições...cediam lugar a sobrevivência. De alguma forma conformei-me e adotei o lugar como lar, embora atento ao horizonte. Construí uma cabana entre quatro árvores estrategicamente nascidas como colunas. Resolvi entrar mais profundamente na mata. Havia um pico, um ponto mais alto, que eu ainda não tinha me arriscado a buscar, temia cobras e aranhas, um escorpião ou qualquer outro animal peçonhento. Aproveitando a manhã muito clara, atrevi-me ao desbravamento.
Logo ao meio da mata, no sopé do monte, uma gruta se mostrava após uma breve escalada. Antes da gruta, subi até o topo de onde podia-se ter uma vista deslumbrante de toda ilha. Um lugar encantado, com papagaios voando, o mar beijando a praia, o céu límpido. Sentei-me avaliando a beleza e potencialidades. Desci até a gruta.
Um lugar que poderia proteger-me das intempéries. Ampla, segura, confortável. Um lugar maravilhoso se não fossem três esqueletos demonstrando que três pessoas, pelo menos, já estiveram ali. Estavam petrificadas. Meu coração acelerou e tive ímpetos de sair correndo dali, mas eram apenas esqueletos, o lugar ainda era um refúgio para mim.
Após muitas tentativas consegui fazer fogo atritando duas pedras. A fogueira permitiu que eu assasse um pato. Sentia-me redescobrindo o mundo. Havia retornado à pré-história. Meus cabelos estavam se embaraçando e a barba e bigode cresciam.
Naquela noite, aquecido por minha lareira, despertei sendo observado por quatro figuras. Dois em pé, um acocorado e um sentado com as pernas cruzadas em posição de lótus. Recostei-me às rochas, assustado e temeroso, mudo, olhando as estranhas personagens que me fitavam. O que estava mais próximo tinha os cabelos num tom ocre, longos e lisos, o peito bem definido, tinha uma serpente em seu pescoço, em seu pescoço também um colar com dentes, talvez de tubarão. Estavam todos despidos. O outro em pé, tinha botas de um couro cinzento e bem feita, no pescoço uma espécie de flauta, como a de Pã, os cabelos negros e bem curtos. O que estava acocorado tinha os cabelos longos, cacheados e acobreados, parecia ter o corpo todo tatuado no mesmo tom de cobre, barbas e bigodes assemelhando-se ao Volverine. Aquele que estava em posição de lótus parecia ter cascas, como a de um pinheiro, porém como se feitas de uma pele mais resistente, que ia dos pés até o ventre e reapareciam nos ombros, cotovelos e coluna. Os cabelos castanhos mesclados de um mel brilhante. Olhar muito penetrante e fixo.
Perguntei quem eram, o que desejavam...sem qualquer tipo de resposta, nem se entreolhavam, como tivessem certeza do que faziam ali, independentemente de minhas indagações. A flauta começou a tocar, num ritmo persistente e enfadonho, comecei a cochilar, apesar de minha insistência para que não acontecesse. Quando despertei senti que podia falar com eles. Ser ouvido e ser entendido.
O que tinha as pernas de casca de árvore chamava-se Vany, o da flauta de Pã, Veloy, o tatuado, Simos, e o da Serpente, Dan. Foi Dan quem me batizou com o nome de Kavengo. Todos comemoraram meu batismo com uma espécie de bebida altamente alcoólica que retiravam de jarros que estavam enterrados. Na noite somente se ouviam nossas gargalhadas e brindes em cuias de coco. De alguma forma e por alguma razão fui adotado.
Veloy cuidou para que eu recebesse uma pasta para passar nos cabelos, que os alisavam. Tomei um delicioso banho com uma espécie de sabão muito cheiroso e um outro creme fez com que meus pêlos caíssem, inclusive barba e bigode. Fiquei lisinho e perfumado. Aos poucos fui aprendendo suas tradições, seus costumes, sua relação mítica com a natureza.
Meus cabelos loiros ficaram brilhantes descendo até as costas, minha pele como leite de cabra, recebeu manchas levemente esverdeadas, pinceladas por Simos. Minhas orelhas ficaram pontudas e não me pergunte como fizeram isso...
Foi Vany quem me levou até as frutinhas que eu provara antes de entrar na gruta. Chamou-as de “uvas da serpente”. Disse-me que poderia saboreá-las à vontade, a partir de agora.
Na gruta, meu corpo jazia fitando as estalactites. Meu esqueleto se juntara aos outros, enquanto eu caminhava pela ilha com meus novos amigos.
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