O choro do bebê ecoou pela sala. Médicos e enfermeiras agitadas entreolhavam-se amargurados e buscavam a todo custo ressuscitar o corpo inerte da mãe. Não foi possível salvá-la. Uma das moças acolheu a criança, franzina, pequena, pesando cerca de um quilo e seiscentos gramas. Nada poderia garantir que ele também iria sobreviver. Imediatamente foi adotado por todos. Batizaram-no com o nome de Tomé, que de acordo com o obstetra significa “nascido do mesmo parto”. Infelizmente o mesmo parto que o separara de sua mãe e o entregara nas mãos dessas devotadas pessoas.
A mãe vivia cambaleando pelas ruas, cabelos desgrenhados, negros e longos, sempre de xale e um vestido longo, sujo e rasgado. Era figura conhecida de todos, quase parte do folclore da cidade, de alguma forma era amada e ignorada por todos. Elza. Apenas Elza. Sem sobrenome. Sem origem. Sem família. Agora jazia, quieta, pálida, mas estranhamente serena, deixando ao mundo um pequeno ser, porém não mais solitário. Incrivelmente paparicado pelas enfermeiras do Hospital “Eurósia Fabris Barban”, em um pequeno município ladeado de morros e araucárias.
O pequeno Tomé enfrentava grandes dificuldades, lutando para a vida. Sua natureza franzina denunciava cada dia mais as possibilidades de que fosse vitorioso. Alguns acreditavam estar sofrendo do mal de simioto, outros previam doenças crônicas e que já o haviam condenado. Helena, a enfermeira chefe, via sua luz púrpura dourada, e sabia que ele iria resistir. Aproximou-o junto ao seu peito, orando para que suportasse tantas provações. Cada exame exigia que o sangue fosse extraído da moleira, não havia veias que pudessem colaborar para uma atuação médica mais eficiente. De alguma forma a fome o consumia. Naquela noite, Helena sonhou que estava entrando na maternidade quando deparou-se com uma mulher e bela e altiva que a interceptou segurando-a pelo braço e disse “ele passará por muitas provas, mas sobreviverá”. Percebeu, então, que aquela mulher era Elza. Despertou intrigada e aliviada ao mesmo tempo.
Aos poucos Tomé reagia. Chegava o momento também que se separariam dele. Algumas pessoas já haviam procurado o hospital para dotá-lo e tinham conseguido contornar a situação, mas o tempo se esgotava.
A manhã era clara e silenciosa quando um homem trancafiou-se no gabinete do diretor do hospital. Tomé iria embora. Lágrimas, choros, soluços, despedidas. O menino foi carregado até um carro negro, imenso e bem lustrado estacionado logo à entrada.
A partir daquele dia a vida de Tomé mudaria. A mansão era muito grande, cercada de jardins e fontes, muitas árvores frutíferas, pândanos e uma seleção incrível de espécimes. Era a residência de Almasor. Um homem rico, poderoso e influente, em certo ponto temido, que conseguia tudo o que desejava. As pessoas mais simples acreditavam que ele teria feito um pacto com o demônio e sabiam até o nome. Era Sabazios. Diziam que ele mantinha a mão do demônio logo na entrada de sua casa. Mas por alguma trama do destino, Tomé foi parar ao seus cuidados.
Tomé crescia saudável, sendo vez ou outra contagiado apenas pela gripe, mas logo se recuperava. Assustava a todos com sua cultura. O menino parecia dormir com os livros, dominando vários assuntos e destacando-se sobremaneira na escola. Não demorou para que começasse a colecionar medalhas de Honra ao Mérito, diplomas e certificados pelo bom desempenho escolar.
Aos poucos, Almasor estimulou-o a estudar a magia, a conhecer as religiões, a buscar o domínio de seu olhar, de suas emoções e a utilização de poderes concentrados na natureza e símbolos que seu pai apresentava com periodicidade. Gradualmente Tomé se afastava da vida comum e se aprofundava nos mistérios que os meninos de sua idade zombavam ou se quer imaginavam poder existir.
Na festa de seus quinze anos, Almasor organizou um grande evento em sua mansão. Colegas de classe seriam convidados e muitos ansiavam conhecer a mansão, tão comentada e de acesso tão restrito. Esbanjou-se luxo e ostentação, com os mais caros buffets, música, dança. O traje obrigatório era do século XVI. Época em que Almasor era apaixonado. Todos compareceram impecavelmente. A festa foi divertida, descontraída, estimulada principalmente pelos trajes cuidadosamente escolhidos pelos participantes. A imprensa compareceu maciçamente fazendo a cobertura de uma das festas mais cobiçadas de todos os tempos. Ao som de músicas renascentistas como as composições de Clément Janequin deram ao evento um tom nobre e misterioso, estimulando a imaginação e gerando uma certa expectativa em todos. Mas a festa foi encerrada deixando todos ainda mergulhados no mundo onírico, vagando por entre suas fantasias.
Tomé abraçou seu pai com ternura e gratidão.
- Esse ainda não é meu presente a você. O que darei a você é para toda sua vida..., disse Almasor e sem muitas palavras fez sinal que o seguisse.
Desceram as escadas que levavam a um compartimento subterrâneo que Tomé nunca imaginou que pudesse estar ali. Era uma ampla sala, mobiliada no estilo renascentista, repleta de estantes abarrotadas de livros, papiros e pergaminhos. Alguns livros realmente gigantescos. Certamente, muitas vezes seu pai teria se refugiado ali. Era aconchegante, tranqüilo, uma energia estranha fluía...
- Veja tudo a sua volta aqui está nossa história !!!, revelou orgulhoso o poderoso homem – a história de nossa família através dos séculos....você faz parte de um elo muito antigo.
- Mas pai ! Sei que o considero como minha família, mas o senhor mesmo disse que sou adotado...não tenho o seu sangue, replicou o adolescente sem entender, em tom quase lamentoso.
- Esperei o momento certo para falar com você sobre isso. Em um certo dia, sua mãe, Elza, aproximou-se dos portões desta casa, afastou-os e entrou. Quando percebi estava estática na porta dos fundos, junto à cozinha. Ali surgiu um diálogo que impulsionou-me a pedir que se sentasse, diante do que ela relatou-me. Não sei explicar como e por que a conversa fluiu, mas quando dei por mim, estava diante de uma pessoa espetacular. Senti que ela emitia o odor de uma linhagem especial. Provinha de família abastada em cujos antepassados desfilaram condes e condessas, duques e duquesas, ligados a tradições nobres. Elza não teve muita sorte e o destino a arrastou para as ruas, depois da decadência financeira. Mas ainda era possível sentir o sangue nobre correndo por suas veias. Sua descendência não poderia extinguir-se com ela. Suplicava que sua família continuasse existindo...de minha união com Elza nasceu você. Sou verdadeiramente seu pai.
Tomé paralisou-se sentado na poltrona almofadada. Segurou-se para não desmaiar. Os anos de treinamento estavam sendo convocados naquele momento para que o sustentasse. Estava trêmulo e um nó na garganta emergia, apesar de sua luta interior para manter-se em equilíbrio. Mas maiores revelações ainda estavam por acontecer. Almasor fez uma longa apresentação sobre seus antepassados, cada quadro a óleo com personalidades que dominaram regiões, peças valiosas que atravessaram os séculos, anotações de próprio punho de pessoas já extintas há centenas de anos. Tudo era apresentado orgulhosamente.
- Que idade você atribuiria a mim ? – questionou num impulso, com olhar vítreo e profundo, como atravessando a alma de Tomé.
- Talvez quase cinqüenta..., arriscou o jovem embaraçado e ainda impactado pelos recentes diálogos.
- Você acreditaria se eu lhe dissesse que são mais de quinhentos...?, perguntou enquanto segurava a mão de Sabazios.
Tomé olhou-o sem saber o que argumentar, sorriu duvidoso. Almasor revelou-lhe sem rodeios que pertencia a um clã também antigo, que trazia os grãos de areia do Egito do tempo dos faraós. Como num conto insólito expôs que no século XVI conhecera um homem de nome Estevão. Um homem de grande influência, de um fantástico magnetismo pessoal, culto, viajara o mundo todo e conhecia o trânsito entre os mundos. Esse homem o tornara imortal. Contou-lhe que Tomé a partir de agora poderia participar dos encontros, das festas e demais atividades do clã, mas para isso deveria também deixar sua vida terrena e falível para ingressar na eternidade.
Conduzindo Tomé a uma outra sala, o rapaz deparou-se com um homem de beleza incomparável, olhar penetrante, gestos polidos, enigmático e misterioso.
- Tomé, quero apresentar-lhe, Estevão...- Almasor estava exultante, aquele seria o ritual de iniciação de seu filho, seu próprio sangue mais uma vez acessando o mundo dos semideuses.
Um odor de ervas imantava todo o lugar de forma quase sufocante. Tomé parecia entontecido, aéreo, com lapsos de inconsciência. Cumprimentou mecanicamente o homem que se apresentava com um sorriso malicioso.
Como em um sonho viu-se arrastado a um mundo sobrenatural, com imagens bizarras que saíam da penumbra. Caminhava entre vapores cinzentos e pouca luminosidade. Os sons eram como gritos e lamentações que vez ou outra rompiam a escuridão, fazendo-o buscar sua origem. Clamou por diversas vezes, chamando seu pai e Estevão, mas o silêncio sepulcral era a resposta. Sentia-se exausto.
Após seguir por entradas similares a uma gruta, viu a imagem de alguém com um manto, a princípio um vulto que parecia seguir à sua frente. O homem fez um sinal que o seguisse. O lugar metamorfoseou-se em um bosque, onde mochos, serpentes negras e panteras circulavam ameaçadoras. Em alguns momentos afundava-se na lama fétida, obrigando-o a despir-se na tentativa de livrar-se dos odores que pareciam agarra-se a sua pele.
Uma estrada, árvores colossais e um castelo pareceram brotar diante de seus olhos. Homens mal encarados davam espaço para que atravessasse. Uma mulher lindíssima sorriu-lhe. Em seu íntimo sabia que era Elza, sua mãe. Adentrou o castelo, invadindo o grande salão onde um homem o aguardava no trono. O trono era de pedra onde foram esculpidas serpentes entrelaçadas e vários símbolos mágicos. O homem estava nu com uma máscara onde ressaltava os dentes pontiagudos e chifres similares ao do wildebeest, além de outro que saía como do unicórnio, porém bem menor que os outros dois. A voz era rouca e compassada pronunciando uma espécie de cântico em língua estranha. Levantou-se e dirigiu-se a Tomé, abraçando-o, num ímpeto lançou a máscara ao longe e mordeu-lhe o pescoço.
Tomé entregou-se, como se mil imagens fluíssem em sua mente. Não foi possível controlar a ereção e o orgasmo.
- Jenouego é seu nome !, disse-lhe o homem bem junto ao ouvido.
Tomé despertou em sua cama, despido e renovado. Sentia um incrível vitalidade. Diante do espelho percebeu duas marcas em seu pescoço. Desceu às pressas procurando seu pai.
Almasor sorriu e o abraçou.
- Parabéns ! Agora você é um adulto ! Um vampiro ! Este é o maior presente que poderia lhe conceder em seu aniversário.
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