“ Não cometi iniqüidade contra os homens...
Não blasfemei contra Deus
Não pratiquei adultério...
Não matei...
Não causei dor a ninguém.
Sou puro, sou puro, sou puro, sou puro' ."
Não blasfemei contra Deus
Não pratiquei adultério...
Não matei...
Não causei dor a ninguém.
Sou puro, sou puro, sou puro, sou puro' ."
(Livro dos Mortos do Antigo Egito)
A cidade era bem pequena, perdida no meio do nada como se dizia no lugar. Para chegar até ela uma longa rodovia onde tanto às esquerda como à direita dela via-se apenas pastos e morros, e para acessá-la uma estreita estrada de terra que emergia numa subida abrupta, sem placas de localização. Somente quem a conhecia sabia como chegar até ela. O ônibus com poucas pessoas, já de idade avançada, com trajes e pele sofrida, castigada pelo sol e trabalhos rurais, demonstravam que certamente residiam no local. Estava indo visitar minha irmã, Gertrudes, já casada e com filhos, a mais velha da família, havia mudado há meses naquele lugar ermo, onde a civilização demoraria séculos para chegar.
Desci do ônibus um tanto perdido, embora com o endereço em mãos, mas alegrei-me ao avistar meu cunhado, Antônio, Tonhão como era conhecido, aliviando minha ansiedade. Estava com as duas meninas mais novas, Dália e Dalila, gêmeas. Abracei-os e entramos no jeep surrado rumo à casa de minha irmã. A casa era simples, mas bastante confortável, ampla, arejada e bem mobiliada. O quintal era grande já abarrotado de galinhas, patos e perus. Sorri, pois minha irmã era apaixonada por animais e admirei ter apenas esses sob sua guarda. Thiaguinho estava dormindo, era o mais velho.
Tonhão mudara-se para trabalhar na extração de esmeraldas, o garimpo ainda predominava na cidade, com poucas opções. Outros dedicavam-se à lavoura.
Não foi difícil conhecer a cidade. A grande praça central, alguns botecos, um mercado, uma quitanda, a prefeitura, a câmara, a matriz, a praça do cemitério e o próprio cemitério. Ladeando a cidade um rio caudaloso onde se pescava e se afogava com certa constância. Fiquei imaginando o que faria ali enquanto permanecesse em Nossa Senhora da Batida na Porta. Até o nome da cidade soava estranho, mas a santa existia e estava lá caracterizada em uma bela imagem na igreja.
Ficaria ali um bom tempo. Estava desempregado, após atravessar sérios conflitos na empresa. Precisava de um tempo para me recompor e reelaborar minha vida, traçar novos planos, buscar outras diretrizes. E não havia lugar melhor para esquecer da vida do que ali. Logo fiz várias amizades e a cervejinha no final da tarde passou a ser sagrada no Bar do Thomás onde as pessoas se reuniam ao entardecer após o trabalho. As pessoas eram bastante divertidas e hospitaleiras, em pouco tempo sentia-me em casa, como se sempre morasse ali. Foi bem identificável avaliar os valores daqueles pessoas fincados na honestidade, justiça, o respeito às pessoas e a vida após a morte, assim como a possibilidade da comunicação entre vivos e mortos. Contavam muitos causos de fantasmas e assombrações, porém convictos de que realmente as coisas haviam acontecido. Embora não acreditasse em tais coisas, envolvia-me nos temas demonstrando espanto e surpresa.
Gertrudes se alegrava vendo-me feliz e bem integrado. Já pensava em arrumar um lugar no trabalho do Tonhão e ficar para sempre por ali. Minha vida oscilava entre o Bar do Thomás, a missa – obrigatória a todos os moradores – não era conveniente desafiar a língua ferina do Padre Amâncio. A fúria do padre agora se estendia a uma família espírita que se mudara para a cidade e almejava a abertura de um Centro Espírita. Eu também costumava freqüentar a praça que ficava perto do cemitério. As pessoas aconchegavam-se aos bancos sombreados pelas árvores centenárias para prosear, em especial os mais velhos, já aposentados.
Certa vez sentado em um dos bancos, aproximou-se um homem com o qual eu estabeleceria uma grande amizade. Chamava-se Catarino.
"Vou respirar o doce hálito da tua boca. A cada dia vou contemplar tua beleza... Dê-me tuas mãos, carregadas de teu espírito, a fim de que eu te receba e viva por ele. Chama o meu nome no decorrer da eternidade: ele jamais faltará ao teu apelo!".(túmulo de Amenotep IV)
Catarino era uma pessoa peculiar, forte, de alta estatura, aproximou-se bem educado, pedindo licença para sentar-se. Mostrava um conhecimento muito grande da vida, contou-me seus sofrimentos desde a infância. Havia nascido ali mesmo, filho de uma mulher valorosa que enfrentava a dura vida na roça com alegria. Foi na roça que sua mãe, Guiomar, conhecera Juvêncio e que se tornaria seu marido. Com ele vieram onze filhos. Três morreram sem atingir um ano de idade. Ele era o mais novo.
Sentia-me bem ouvindo-o, as experiências por ele vividas de alguma forma eram absorvidas por mim, tornando uma referência. Ansiava o anoitecer, esperando que ele passasse pela praça e concedesse alguns dedos de prosa. Nem todos os dias isso era possível para ele, e eu resistia para não implorar que conversássemos. Atravessávamos horas e a lua já ia alta quando eu me despedia.
A história de Catarino cativou-me. A mãe morreu ainda jovem com câncer no fígado. A cidade isolada e com parcos recursos obrigava a todos se mobilizarem com o que as benzedeiras aconselhavam. Nesse ínterim, houve uma sucessão de mortes. Três dos irmãos faleceram. Dois afogados e um suicidou-se pesaroso com o passamento dos irmãos. O pai desaparecia entre pele e ossos, consumido pelo sofrimento. A mãe morreu aos três de maio. Com ela a família. Carmelo entregou-se à bebida e foi encontrado em uma estrada já morto. Acácio foi embora, sem que pudessem conhecer seu paradeiro. Alaíde prostituiu-se e foi assassinada em uma confusão na casa onde trabalhava. Cleonice casou-se e desapareceu. Catarino ficou só, cuidando do pai e trabalhando.
A cada três noites, Catarino ressurgia contando um pouco mais de sua vida, das grandes vicissitudes que enfrentara.
Com a aproximação do finados, Gertrudes convidou-me para irmos ao cemitério e acender algumas velas e depositar flores no cruzeiro e na Casa das Almas, reverenciando nos entes já falecidos, pois seria impossível ir até onde se encontravam seus restos mortais. Seguindo meu velho hábito de ler inscrições e nomes e ver fotos nos túmulos, vi-me paralisado ao ver a foto de Catarino em uma das sepulturas. Procurei o nome na lápide e li, trêmulo e estupefato, Catarino Amadeu Padova. Diante de minha postura, Gertrudes interveio questionando o que se passava.
- Eu conheço esse homem..., revelei inseguro e não certo do que dizia.
- Você deve conhecer alguém parecido, meu querido, veja a data, ele nasceu em 03-03-1933 e morreu em 03-03-1966...faz 33 anos que ele morreu. Coincidência, não é ? Morreu no mesmo dia do nascimento..., comentou a irmã sem perceber que eu quase desmaiava.
Ajoelhei-me, acendi uma vela, depositei algumas flores que trazia comigo e fiz uma comovida oração. Por alguma razão ele rasgara o véu do tempo para falar comigo, contar sua história, dar-me conselhos, mostrar-me o valor da vida...uma vida que continua indefinidamente.
Através de meus amigos de boteco cheguei a uma senhora que o conhecera. Ele já não tinha parentes e já não havia quem se lembrasse dele. Dona Genoveva, já com noventa e oito anos, disse tê-lo conhecido. Um jovem especial, amoroso e dedicado, que sustentou a família, cuidou do pai até o final. Morreu de forma tola. Foi pescar, um dos amigos caiu no rio e não sabia nadar, foi tentar salvá-lo e morreram os dois. Contava-se que tinha sido visto muitas vezes na beira do rio chamando pelo amigo, após sua morte. Tinha sido um bom homem, um bom espírito, uma boa alma.
Hoje o túmulo de Catarino recebe minha visita constante. Nunca mais o vi. Talvez o tempo me revele por que fui escolhido por ele para conhecer sua vida e suas lutas. Mas terei muito tempo para isso, enquanto trabalho no garimpo e espero revê-lo, quem sabe para falar muito mais e entender por que vim parar nesse fim de mundo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário